1 RELIGIÃO, TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS E GLOBALIZAÇÃO IV CONGRESSO INTERNACIONAL EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO – PUC-GOIÁS Realização PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS Programa stricto sensu em Ciências da Religião Apoio CAPES – PAULINAS – PAULUS – VOZES – OIKOS – SINODAL – METODISTA Parceria Universitá di Sociologia di Padova - Dipartimento di Sociologia International Society for the Sociology of Religion (ISSR) IRENE DIAS DE OLIVEIRA IVONI RICHTER REIMER SANDRA DUARTE DE SOUZA (ORGS.) 2 Anais do IV Congresso Internacional em Ciências da Religião Programa em Ciências da Religião – PUC-GO GRUPOS TEMÁTICOS E RESUMOS EDIÇÃO DIGITAL – EBOOK PAULINAS ISSN 2177 – 3963 Periodicidade: anual 3 IV CONGRESSO INTERNACIONAL EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS TEMA RELIGIÃO, TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS E GLOBALIZAÇÃO LOCAL: Pontifícia Universidade Católica de Goiás 27 a 29 de setembro de 2010 Goiânia, Goiás, Brasil 4 COMISSÃO ORGANIZADORA PRESIDENTE: Dra. Irene Dias de Oliveira MEMBROS Dra. Ivoni Richter Reimer Dr. José Carlos Avelino da Silva Dra. Maria Eliane Rosa de Souza Mndo. Adelman Soares Asevedo Dranda. Cristhyan Martins Castro Milazzo Mnda.Cilma Laurinda Freitas e Silva Mnda.Cristina Galdino de Alencar Dranda.Danielle Ventura Bandeira de Lima Drando. Eleno Marques de Araújo Dranda. Hulda Silva Cedro da Costa Mndo. Iran Lima Aragão Mndo. Israel Serique dos Santos Mnda. Luzia Ireny e Silva Dranda. Maria Cristina BonettI Mndo. Oli Santos da Costa Mnda. Sandra Célia de Oliveira Mndo. Sérgio Batista de Oliveira Ms. Uene José Gomes Drando. Welthon Rodrigues Cunha SECRETÁRIA EXECUTIVA: Geyza Pereira COMITÉ TÉCNICO CIENTÍFICO DR. AFONSO MARIA LIGÓRIO SOARES (SOTER) DR. CARLOS RIBEIRO CALDAS FILHO (UPM) DR. CRISTIAN PARKER (UNIVERSIDAD DE SANTIAGO DE CHILE) DR. ENZO PACE (UNIVERSITÁ DI PADOVA) DR. GILBRAZ DE SOUZA ARAGÃO (UNICAP) DR. GERALDO DE MORI (FAJE) DR. JUNG MO SUNG (UMESP) DR. SILAS GUERRIERO (PUC-SP) DR. MÁRIO SANCHES (PUC-PR) DR. NEY DE SOUZA (PUC-SP) DR. WILHELM WACHHOLZ (EST) DR. VALMOR DA SILVA (PUC-GO) 5 6 ÍNDICE APRESENTAÇÃO -------------------------------------------------------------------------GRUPOS TEMÁTICOS – GTs: COMUNICAÇÕES CIENTÍFICAS GT 1 - IMPACTOS DAS TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS E DA GLOBALIZAÇÃO NA (INTER)RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E SAÚDE COORD.: Drª Carolina Teles Lemos GT 2 - RELIGIÃO, VIOLÊNCIA, ETNICIDADE E GLOBALIZAÇÃO COORD.: Drª Irene Dias de Oliveira GT 3: PROTESTANTISMO E GLOBALIZAÇÃO COORD.: Dr. Eduardo Gusmão de Quadros GT 4: SANTIDADE, PROFECIA E SABEDORIA COORD.: Dr. Valmor da Silva GT 5: TRANSE E RELIGIOSIDADE PÓS-MODERNA COORD.: Drando. Welthon Rodrigues Cunha GT 6: RELIGIÃO E MODERNIDADE COORD.: Dra. Sandra Duarte de Souza GT 7: RELIGIÃO, FILOSOFIA E GLOBALIZAÇÃO COORD.: Dra. Maria Eliane Rosa de Souza GT 8:. O SAGRADO FEMININO E A GLOBALIZAÇÃO COORD.: Dr. José Carlos Avelino da Silva e Dranda. Maria Cristina Bonetti 7 GT 9: RESISTÊNCIA, ASSIMILAÇÃO E ACOMODAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE NOS INÍCIOS DA IGREJA COORD.: Dra. Ivoni Richter Reimer GT 10: DEMANDAS HISTÓRICO-SOCIAIS E CUIDADO ECOLÓGICO NA TRADIÇÃO BÍBLICA COORD.: Dr. Haroldo Reimer GT 11: TRADIÇÃO HEBRAICA: HISTÓRIA, EMERGÊNCIAS E ACOMODAÇÕES CULTURAIS COORD.: Dr. Haroldo Reimer e Drando. Claude Detienne GT 12: SOFIA COMO BUSCA DAS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS EM CORINTO COORD.: Dr. Joel Antônio Ferreira GT 13: RECUPERAÇÃO DA DIMENSÃO CRÍTICA DA FÉ DIANTE DOS DESAFIOS DA GLOBALIZAÇÃO COORD.: Dr. Élio Estanislau Gasda GT 14: JUVENTUDE E RELIGIÃO NA (PÓS) MODERNIDADE COORD.: Dr. Flávio Munhoz Sofiati GT 15: CELEBRAÇÕES FESTIVAS: A VALORIZAÇÃO DA RELIGIOSIDADE POPULAR NO BRASIL COORD.: Drando. João Guilherme da Trindade Curado e Dranda. Tereza Caroline Lobo GT 16: RELIGIOSIDADE GLOBALIZAÇÃO COORD.: Ângela Cristina Borges SERTANEJA: CULTURA IDENTIDADE E 8 RESUMOS RELIGIÃO, TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS E GLOBALIZAÇÃO O Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, após uma década de atividades voltadas para a pesquisa e a produção científica sobre o fenômeno religioso e a formação de pesquisadores (as), realizou, de 27 a 30 de setembro de 2010, o seu IV Congresso Internacional em Ciências da Religião, visando discutir o tema “Religião, transformações culturais e globalização”. Desde suas primeiras edições, esses eventos contaram com o apoio da própria instituição (PUC Goiás), de editoras e livrarias (Paulus, Paulinas, Vozes) e de outras instituições locais. A partir do formato de Congresso Internacional, a CAPES vem prestando significativo apoio, o que tornou possível dar continuidade aos eventos referidos, dando assim maior visibilidade e credibilidade às pesquisas desenvolvidas no Centro-Oeste Brasileiro, em âmbito nacional e internacional. Parcerias também foram estabelecidas com a SOTER Nacional e, nesse ano, com o Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Metodista de São Paulo e da Universidade de Bologna e a Associazione Internazionale di Sociologia della Religione (seção italiana). O IV Congresso Internacional em Ciências da Religião contou com a participação de pesquisadores e instituições renomadas em nível nacional e internacional. Todos eles pesquisam e se debruçam sobre o tema “Religião, transformações culturais e globalização” o que possibilita maior consolidação do Programa e o amadurecimento de seus docentes e alunos envolvidos em pesquisas interdisciplinares. Além do mais contribuem para o fortalecimento de laços de internacionalização do Programa e parcerias entre docentes pesquisadores (as), fatores extremamente importantes para a pesquisa no Centro-Oeste. Os Anais dos Congressos são publicados regularmente e nesse ano contamos com o apoio da REVISTA ON-LINE CIBERTEOLOGIA para publicarmos em sua seção de ANAIS todos os resumos e as melhores comunicações científicas aprovadas e apresentadas. Em breve será também publicado o livro contendo as 9 grandes conferências apresentadas por pesquisadores e pesquisadoras nacionais e internacionais que estiveram presentes em nosso Congresso. Nesse número de CIBERTEOLOGIA, apresentaremos os resultados da pesquisa de teólogos(as) e cientistas da religião que apresentaram suas comunicações distribuídas pelos vários Grupos de Trabalho multidisciplinares que, apesar de terem a religião como tema central, tentaram discutir os impactos das transformações culturais e da globalização sobre ela. Portanto, é com imensa alegria que socializamos algumas das comunicações e todos os resumos de trabalhos aprovados e apresentados por nossos (as) estudantes e pesquisadores(as) presentes no IV CONGRESSO INTERNACIONAL EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO e que se debruçam sobre a religião e seus desafios em uma sociedade em constante transformação cultural. Profa. Dra. Irene Dias de Oliveira Presidente e Coordenadora do IV CONGRESSO INTERNACIONAL EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO DA PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS 10 GRUPOS TEMÁTICOS – GTs COMUNICAÇÕES CIENTÍFICAS 11 GT 1: IMPACTOS DAS TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS E DA GLOBALIZAÇÃO NA (INTER)RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E SAÚDE Coordenação: Dra. Carolina Teles Lemos Resumo: Se a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e revisadas à luz de novas informações sobre estas próprias práticas, alterando constitutivamente seu caráter (Giddens), também a tradicional (inter)relação entre religião e saúde passa por essas revisões. Os impactos dessa reflexividade incidem tanto sobre a religião, que reconfigura seu olhar em relação à saúde, quanto sobre a área da saúde (pesquisadores da área, profissionais, pessoas acometidas de doenças graves ou não), que revisa suas concepções e buscas religiosas. Tendo presente essa conjuntura, o GT visa ser um espaço de debate sobre os impactos das transformações culturais e da globalização na (inter)relação entre religião e saúde. Palavras-chave: religião, saúde, transformações culturais. 12 A INTERFERÊNCIA DA BENZEDURA NO PROCESSO TERAPÊUTICO Filipe Gomes Gadeia Brito1 Sandra Célia C. G. S. S. Oliveira2 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo conhecer de que forma as benzedeiras contribuem para o tratamento terapêutico e a possível cura, assim como o ritual utilizado e como ele é transmitido. Para tal, foi realizado uma pesquisa quanti/qualitativa, com informações coletadas a partir de entrevista semi-estruturada. Percebe-se que existe a interferência da benzedura no processo terapêutico e vale salientar que a mesma não exclui o tratamento médico, visto que existem determinados males onde os benzimentos não podem intervir. A prática de benzimentos alcançou ao longo dos tempos lugar de grande importância, pois os que recorrem às benzedeiras sejam movidos por uma fé no ritual, palavras e objetos utilizados, tentam encontrar ali a cura de enfermidades. A constante busca pelo estado de saúde faz com que muitos indivíduos busquem métodos e formas alternativas para o alcance do bem-estar físico, psíquico e social, sendo a benzedura uma dessa formas que alcançou grande difusão ao longo dos tempos. A benzeção realiza um dos momentos mais importantes da me-dicina [sic] popular. Nela, os artifícios e estratégias do saber popular, criados e recriados pela cultura popular rural, com os conhecimentos sobre plantas, banhos, receitas, chás, sim-patias [sic], massagens, escalda-pés, suadouros, garrafadas, medicamentos caseiros e às vezes até mesmo industrializados, se corporificam nas concepções terapêuticas da benzedeira [...]. (LEMOS, 2008, p. 71-72) O presente estudo tem como objetivo conhecer de que forma as benzedeiras contribuem para o tratamento terapêutico e a possível cura, assim como o ritual utilizado e como ele é transmitido e para isso teve como campos de estudo as cidades de Brumado, Guanambi, Macaúbas e Urandi, no estado da Bahia. A IMPORTÂNCIA DA CULTURA POPULAR NO CONTEXTO DA SAÚDE Desde os primórdios da humanidade, a busca pelo estado de saúde motivou o homem a procurar meios e formas que lhe garantissem um estado de equilíbrio. 1 Graduando em Enfermagem pela Universidade do Estado da Bahia – [email protected] Mestranda em Ciências da religião da PUC - GO e Professora auxiliar da Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação, Campus XII, Guanambi : [email protected] 2 13 Segundo Parker (1995), nos mais diversos lugares os indivíduos buscam amuletos, talismãs, bênçãos, e cumprem ritos, com a finalidade de evitar os males, geralmente relacionados à saúde. O ato da benzedura é uma forma cultural muito procurada por pessoas de diferentes etnias, gêneros, classes sociais, idades e religiões, a fim de obterem um estado saudável. Este ato cultural, segundo Cavalcante & Chagas (200-), teve seu início no período colonial brasileiro, bem como outras práticas médicas. Segundo Ximenes (2000, p. 273), cultura é um conjunto de costumes, atitudes, comportamentos, crenças, instituições, produções artísticas e intelectuais que caracterizam um povo. Dessa forma, a cultura popular é algo de grande importância para a formação da identidade de um povo e Gorzoni (2005, p. 69) ainda acrescenta que os benzimentos são realizados por diversas culturas, de diferentes formas possíveis e contam com o auxílio dos elementos da natureza e da religião, e todos têm o mesmo objetivo: curar, abençoar e proteger as pessoas de forças negativas do universo. A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO E FÉ NO PROCESSO DE CURA O homem sempre procurou o auxílio de uma força maior que o ajudasse a superar os desafios encontrados no decorrer de sua vida, isso pode ser evidenciado nas tentativas de superação das doenças, sendo estas sinônimo de caos e desordem, além de ser considerada um castigo divino. Neste sentido a religião se encontra numa concepção de intermediária entre os homens e deus(es), para assim obterem a almejada graça, como a cura da doença. Para Priori (2007apud Cavalcante & Chagas, 2000, p.4) A enfermidade era vista por muitos pregadores e padres, e também por médicos da época, como um remédio salutar para os desregramentos do espírito. Nessa perspectiva, a doença nada mais era do que o justo castigo por infrações e infidelidades perpetradas pelos seres humanos. Mesmo nos dias atuais, com o intenso desenvolvimento tecnológico e o grande avanço na área da medicina, percebe-se que uma considerável parcela da população ainda vê na religião uma forma de alcançarem a solução para os seus problemas. A relação entre saúde e religião pode ser demonstrada de diversas formas, como os ritos de imposição das mãos, benzeduras, exorcismos, curandeirismo, xamanismo, pajelança, entre outros, cada um com sua crença, mas todos convergem a um mesmo ponto: a cura das enfermidades. 14 No contexto de religião e saúde, a fé desempenha um papel crucial, pois acredita-se que a partir dela é que os indivíduos têm a esperança de alcançar o benefício esperado. Afirma Santo Agostinho que a fé se baseia na crença e na aceitação do que não é manifesto à razão, sendo seu objeto próprio os mistérios. Sendo assim, podemos perceber a forte relação entre o tripé religião, fé e cura, pois a religião não pode ser entendida como uma razão pura, mas sim por meio da fé, e é esta fé que impulsiona o homem a crer nos mais diversos métodos que tenham por objetivo alcançar a cura. A PRÁTICA DE BENZIMENTOS NO PROCESSO TERAPÊUTICO Parece contraditório nos dias atuais, que apesar de tantos avanços na área médica e de pesquisas no campo da saúde existirem ainda as práticas de benzedura. Comenta Cavalcante & Chagas (2000, p. 3) Diante dos avanços do saber médico-científico[...] deveria supor que práticas mágicas de intervenção no corpo estariam superadas, restando a elas o espaço da literatura ou praticadas em comunidades tradicionais. No entanto, isso não é o que a realidade mostra. O ato da benzedura, uma prática cultural que atravessou os séculos e está presente no cotidiano de muitas pessoas, consiste de um ritual em que se utilizam símbolos, palavras e gestos, e tem por finalidade o restabelecimento da saúde. As benzedeiras, também chamadas de rezadeiras, realizam o ritual de cura, motivadas pela fé. Com relação a benzeção, afirma Aguiar (200-, p. 50): As práticas de cura das mulheres benzedeiras não são um saber especializado no mesmo sentido do saber dos médicos [...] a prática das benzedeiras faz parte de uma vivência que é social, religiosa, econômica e moral ao mesmo tempo. O exercício da benzedura envolve todos os aspectos da vida da comunidade. As benzedeiras são pessoas conhecidas das famílias da comunidade, donas de casa, mães e avós, vizinhas, que, para retribuir o dom recebido de Deus, rezam e curam. Percebe-se que existe a interferência da benzedura no processo terapêutico e vale salientar que a mesma não exclui o tratamento médico, visto que existem determinados males onde os benzimentos não podem intervir. Neste caso, segundo 15 relatos das benzedeiras, as mesmas aconselham os clientes a procurarem o médico. A cura das enfermidades, obtidas por meio dos benzimentos, é a responsável pelo reconhecimento do ofício das benzedeiras. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS Trata-se de uma pesquisa quanti/qualitativa, com informações coletadas por meio de entrevista semi-estruturada, realizada com quatro benzedeiras e quarenta entrevistados que recorreram às práticas de benzimentos, distribuídos nas cidades de Brumado, Guanambi, Macaúbas e Urandi, no estado da Bahia. Levando-se em consideração como as benzedeiras adquiriram o dom do benzimento e de como ele pode ser transmitido, nota-se que 100% das entrevistadas adquiriram atráves de herança familiar, podendo ser transmitido a qualquer pessoa que tenha interesse em aprender. Com relação às enfermidades em que se recorrem aos benzimentos, mau-olhado e quebranto são as mais comuns. De acordo com as benzedeiras entrevistadas, as pessoas recorrem aos benzimentos porque se sentem bem com a oração que elas praticam. E as mesmas afirmam que há uma relação da cura com a fé. Quanto ao dia e horário em que realiza-se os rituais verificou-se algumas diferenças existentes. Dona Maria não reza aos domingos e nos outros dias só até às 9 hs da noite. Dona Joana reza aos domingos só em caso de urgência e nos outros dias reza normalmente, mas não às 18 hs e às 24 horas. Dona Norma e Ana rezam qualquer dia e horário, não havendo restrições. Com relação ao ritual utilizado, Dona Norma antigamente fazia uso dos ramos e após ser integrante da Renovação Carismática Católica (RCC) passou a adotar a imposição das mãos, citando passagem do Evangelho (Mc. 16), oração única e válida para todos os tipos de enfermidades. As outras utilizam ramos no seu ritual, fazendo o sinal da cruz. Dona Maria usa fitas, cartelinhas que contém as orações e cordão de São Francisco para pessoas muito neuróticas. Dona Joana usa também faca de ponta, algodão e galho seco. Dona Ana para realizar o ritual precisa de três ramos. Segundo Gorzoni (2005) os benzimentos auxiliam na superação de situações de caos, como no caso de patologias e grande parte das benzedeiras utilizam ervas, utensílios domésticos e rezas no seu ritual. 16 O último aspecto abordado diz respeito ao público que recorre às práticas de benzedura. Verificou-se que 75% das entrevistadas (Brumado, Guanambi e Macaúbas) atendem todos os públicos de todas as classes sociais. Entretanto, a entrevistada de Urandi atende apenas crianças, não importando a classe social pertencente. Na entrevista realizada com as dez pessoas de cada cidade que já recorreram aos benzimentos, verificou-se que a média de idade era 46 anos e são predominantemente católicos. Tratando-se de gênero, a maior parte são mulheres, representando um total de 72,5%. Com relação à obtenção de cura por parte dos benzimentos, foi constatado que 37 pessoas afirmaram ter alcançado. No quesito de enfermidades mais comuns, notou-se que a predominância era mau-olhado, vermes, dor de estômago, alcoolismo e quebranto. Foi questionado também à quem as pessoas atribuem a cura e notou-se que a maioria atribui a fé do cliente, a Deus e a fé da benzedeira. Vale salientar que os nomes citados são todos fictícios. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante das entrevistas e levantamento bibliográfico realizado, pode-se constatar que realmente as práticas de benzimento contribuem de forma positiva no processo terapêutico, isto, pois a maioria dos entrevistados relataram ter alcançado a cura por meio do ritual e também foi possível detectar que há uma forte relação da cura com a fé, seja por parte da benzedeira ou por parte do cliente. Vale salientar que por meio dos dados coletados nos questionários feitos com as benzedeiras, existem alguns malefícios onde os benzimentos não podem intervir, neste caso aconselha-se o acompanhamento médico para a realização do devido tratamento da patologia. REFERÊNCIAS AGUIAR, Gilberto Orácio de. Mulheres negras da montanha: as benzedeiras de Rio de Contas, Bahia, na recuperação da saúde. Ciberteologia - Revista de Teologia e Cultura. [S.l.]. Ano III, n. 21, p. 48-51, [200-]. CAVALCANTE, Joel Martins; CHAGAS, Waldeci Ferreira. As mulheres benzedeiras: entre o sagrado, a saúde e a política. p.1-11, [2000]. GORZONI, Priscila. Mulheres de fé. Raízes, [S.l.], p.69-76, dez. 2005. 17 LEMOS, Carolina Teles. Religião e Saúde: (re)significando as dores na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Descubra, 2008. PARKER, Cristián. Religião popular e modernização capitalista: outra lógica na América Latina. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. XIMENES, Sérgio. Minidicionário da língua portuguesa. 2.ed. São Paulo: Ediouro, 2000. 980 p. 18 PRINCÍPIOS E PRÁTICAS DE SAÚDE NO MOVIMENTO ADVENTISTA: A RELAÇÃO ENTRE SAÚDE E RELIGIÃO Francisco Luiz Gomes de Carvalho (PUC-SP)3 Nailton Santos de Matos (UNINOVE)4 RESUMO Este trabalho visa discutir os princípios e as práticas de saúde dentro do movimento adventista na segunda metade do século XIX. Neste período, os hábitos alimentares dos norte-americanos já não propiciavam melhores condições físicas. Os princípios fundamentais de saúde abraçados pelos adventistas vem de sua percepção da estreita relação entre saúde física e saúde espiritual. Tais princípios estão alicerçados nos trabalhos dos reformadores, médicos e fisiologistas do século XIX. Segundo White (1997: 346 ), ―tudo que nos diminui a força física enfraquece a mente e a torna menos capaz de discernir entre o bem e o mal. Ficamos menos aptos para escolher o bem, e temos menos força de vontade para fazer aquilo que sabemos ser justo‖. Compreender as práticas de saúde dentro do movimento adventista é entender o modo como este movimento vê o homem e sua relação com seu Criador. Palavras-chave: adventismo, saúde, religião, princípios, reflexividade Movimento Adventista no século XIX e seus desdobramentos no século XX O movimento adventista tem nos Estados Unidos da América o seu berço de nascimento, em um período histórico em que o ambiente político foi marcado pelo fenômeno social com as relações raciais, polarizações sociais, questões escravistas, mas também de grande efervescência religiosa. Gaustad (1975) ao descrever o ambiente religioso afirma que ―revivalistas e milenialistas, comunitários e utopistas, espiritualistas e prognosticadores, celibatários e polígamos, perfecionistas e transcendentalistas‖ compunham o cenário que anteriormente era dominado pelas organizações religiosas convencionais. Este movimento lança as suas bases ideológicas a partir do fracasso da utopia pregada por Guilherme Miller e vivida no desapontamento de 1844. É a partir 3 4 [email protected] [email protected] 19 desse momento que há a sistematização de crenças e a organização institucional, passando a se denominar Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD). Ao descrever as crenças particulares da IASD Derosche (2000) lista cinco crenças sucintamente, e dentre elas destaca: a prática de reforma sanitária e alimentar, como elemento da santificação pessoal. Nascida no século XIX a IASD continua a propagar suas bases ideológicas fundadas na compreensão de inspiração e inerrância da Bíblia como livro sagrado e no reconhecimento da função orientadora da profetisa Ellen G. White. Ao sugerir razões para o avanço ideológico e institucional desse movimento, Numbers (1987) atribui dentre outras, o desenvolvimento do interesse adicional pela educação, regime alimentar, cuidado médico, liberdade religiosa e observância rigorosa do descanso. Apesar de uma orientação fortemente fundada na crença dos eventos escatológicos e iminente resgate inédito dos crentes, o movimento adventista mantém investimentos consistentes em meios de solidificação de suas ideologias, bem como na propagação universal de sua mensagem, fazendo-se valer de instituições educacionais, hospitais e clínicas, fábricas de alimentos, bem como editoras e publicações. Segundo dados,5 ao redor do mundo são 7.597 instituições de ensino, 600 estabelecimentos (clinicas, hospitais, sanatórios) de saúde, 23 indústrias de alimentos, 61 editoras e 435 periódicos. A concepção de saúde nos EUA na segunda metade do século XIX O nascimento da medicina perpassa momentos de práticas de magia na antiqüíssima Babilônia, lições de Hipócrates na Grécia, medicina árabe na Idade Média até à elaboração cientifica. Difícil é a tarefa de estabelecer fronteiras nas atitudes face às doenças, por um lado marcadas pela busca constante da pesquisa cientifica no saber médico, e por outro a crença inveterada na eficácia da magia (orações ou ervas) e nos mágicos (bruxas, milagreiros, curandeiros). 5 Para ver na íntegra acesse: <http://www.adventistarchives.org/docs/ASR/ASR2008.pdf> Acesso em 05.09.2010 20 As noções, pressupostos, concepções acerca de saúde possuem estrita relação com o estágio do conhecimento e a idéia de ciência que lhe são contemporâneas, o que demonstra que a medicina é por natureza histórica e muitas vezes misturada à religiosidade, ingenuidade, charlatanismo e iluminismo da época. (LE GOFF, 1991) Nos Estados Unidos na primeira metade do século XIX, a medicina caminhava a passos curtos e enfrentava desafios cada vez maiores. Estatísticas de algumas cidades enumeravam uma ampla relação de causa mortis ―desde extensa variedade de febres (tifóide, tipo, ´febre pútrida´) e doenças comuns da época (cólera e sarampo).‖ (LAND, 1987). A expectativa de vida média em 1840 era de 22,6 anos e a causa mais comum de óbito era a tísica pulmonar (tuberculose). Para especialistas da época, a saúde era um estado intermediário de agitação, e a tarefa do médico consistia em ajustar o nível dessa agitação. O tratamento das doenças seguia um modelo constituído principalmente em sangria, purgação e polifármacos (REID, 1982). Na declaração do Dr. Oliver Wendell Holmes em 1860 sobre a medicina aplicada na época entende-se a gravidade do caso, pois afirma que: [...]se toda a ―matéria médica‖ empregada atualmente pudesse ser lançada no fundo do mar, seria bem melhor para a humanidade, embora bem pior para os peixes. (NUMBERS, 1976) A segunda metade do século XIX foi inundada de inovações e idéias centradas no ser humano que superaram a ordem racional e clássica do século precedente, o que inspirou reformas em diversas áreas institucionais, dentre elas a saúde. A medicina heróica e seus resultados dão lugar ao que podia ser feito com bom senso. Trata-se da multiplicação de manuais de saúde destinados àqueles que não tinham como recorrer ao médico (LAPLANTINE, 1991). Estudiosos tais como Horace Mann, James C. Jackson, Russel T. Trall, Larkin B. Coles, Dio Lewis, Joel Shew, Sylvester Graham, William A. Alcott, dentre outros exaltavam aspectos do viver saudável, mas em sua maioria os livros eram técnicos, volumosos, caros e cheios de verbosidade. Partindo de uma compreensão em que a pessoa é uma unidade indivisível de corpo, mente e espírito, e que os componentes interativos e integrativos do corpo, mente e espírito exigiam a saúde de cada componente para que todos pudessem 21 funcionar eficientemente, o movimento adventista estabeleceu as bases no desenvolvimento de sua Filosofia de saúde com o senso teológico de totalidade. Esta filosofia de saúde fornece os conceitos pelos quais os aderentes desse movimento têm ordenado sua vida pessoal. Tal filosofia também levanta a possibilidade de a própria natureza conter virtudes curativas inerentes, como Hipócrates muito antes havia crido. A concepção de ser humano e seus desdobramentos no movimento adventista A noção de dualismo em relação ao ser humano está presente em quase todas as religiões cristãs. A crença na existência de entidades desencarnadas (almas, espíritos, fantasmas, demônios, divindades, etc) é central em praticamente todas as religiões contemporâneas. Entretanto, vale ressaltar que a noção de materialidade da mente humana não é estranha ao judaísmo e aos antigos cristãos. Segundo Locke (1690, Bk. IV, Cap 3, S. 6): Todos os grandes objetivos da moralidade e da religião estão suficientemente a salvo, sem provas filosóficas da imaterialidade da alma; uma vez que é evidente que nosso criador... pode e irá nos restaurar para a mesma sensibilidade em um outro mundo. Além disso, Priestly (1977, apud Brown, 1962, p. 271), o erudito teólogo e químico, escreveu que o materialismo "dá muita importância à doutrina da ressurreição dos mortos‖. Para este mesmo autor, "o que denominamos mente, ou princípio da percepção e do pensamento, não é uma substância diferente do corpo, mas o resultado da organização corpórea" (p. 265). Em conseqüência, o mental cessa com a morte, que é a decomposição; mas "tudo que é decomposto pode ser recomposto pelo Ser que o compôs pela primeira vez" (p. 272). A concepção cartesiana de corpo foi retardatária no seio do cristianismo. Deve-se ao filósofo Plotino e ao filósofo judeu Filo esta concepção de dualismo psicofísico que não encontra sustentação nas Escrituras para os que o tem como livro sagrado e crêem em sua mensagem como Revelação. O movimento adventista é defensor desta percepção materialista do corpo. Para o movimento, os sujeitos são unos. É o corpo que nos coloca no mundo. A síntese de nossos engajamentos nesse 22 mundo é feita por esse corpo. Ele é a escritura viva do Ser, espaço significante, possibilidade de nossa instituição no mundo, do nosso habitar no espaço e no tempo. Esta concepção de unidade corpo/mente dá ao movimento uma dimensão integral do ser humano. O que afeta o corpo afeta a mente. O corpo é o veículo de ação do Ser no mundo e do ser com o transcendente. Seguindo o principio bíblico de que o corpo é o templo do Espírito Santo, os adventistas vêem nisto uma prerrogativa para o cuidado com o corpo. Ao longo da história do movimento, desenvolveram uma verdadeira busca pela compreensão integral do ser humano sabendo que aquilo que afeta o corpo também interfere em sua relação com o sagrado. Nesta perspectiva filosófica bíblica o corpo é a morada do Espírito. Ele é o canal através do qual o ser humano entre em contato com Deus, nesta compreensão o transcendente supremo. O corpo é o veículo de ação do Ser no mundo, e ter um corpo significa estar em um meio definido com o compromisso decorrente dessa implicação, pois com ele o homem habita o mundo e através dele o divino toca o mundo. A restauração da imagem do Criador não é apenas na esfera espiritual uma vez que estas esferas são indissociáveis. Portanto, não é possível ver nenhuma delas de forma isolada. Considerações finais O movimento adventista desde o seu surgimento no século XIX tem se dedicado em oferecer uma concepção de religiosidade baseada na compreensão do ser humano como uma unidade integral, indivisível e indissociável de mente e corpo. Tal concepção é corroborada pelo discurso do psiquiatra George F. Solomon, (cunhou o termo ―psicoimunologia‖, depois expandido para ―psiconeuroimonologia‖ por Robert Ader) quando afirmou que ― mente e corpo não podem ser separadas...o bem-estar físico e mental acham-se intrinsecamente entrelaçados‖ As obras produzidas pelo movimento ao longo deste período visam orientar seus adeptos a preservarem seu corpo/mente saudável. São obras sobre regime alimentar, cuidados com o corpo, uso dos recursos naturais para promoção da saúde e criação de indústrias de alimentos naturais. Vale ressaltar que o estilo de vida defendido pelo movimento não tem nenhuma implicação determinista para salvação. A mudança de hábitos alimentares implica melhoria na qualidade de vida para uma religião que entende que enquanto o homem aguarda a manifestação do dia do Senhor pode e deve viver com qualidade agora. 23 REFERÊNCIAS BAKER, Beth. Scientists finding more evidence of link between mind and health. AARP Bulletim, 1993. DEROSCHE, Henri. Dicionário de Messianismos e Milenialismos. São Bernado do Campo: UMESP, 2000. DOUGLAS, Herbert E. Mensageira do Senhor. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001. GAUSTAD, Edwin, ed. The Rise of Adventism. New York: Harper & Row, 1975. LAND, Gary. The World of Ellen G. White. Washington, DC: RHPA, 1987. LAPLANTINE, François. Antropologia da Doença. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1991. LE GOFF, Jacques. As Doenças tem História. Lisboa: TERRAMAR, 1991. NUMBERS, Ronald L. Prophetess of Health. New York: Harper & Row, 1976. Edição revisada. Knoxville, TN: The University of Tennesse Press, 1992. NUMBERS, Ronald L e Jonathan M. Butler, eds. The Disappointed. Bloomington, IN: Indiana University Press, 1987. REID, George W. A Sound of Trumpets. Washington, D.C: RHPA, 1982. WHITE,Ellen G. Parábolas de Jesus .Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1997. 24 ASSOCIAÇÃO ENTRE PRÁTICA RELIGIOSA E DE ATIVIDADE FÍSICA EM UNIVERSITÁRIOS GUANAMBIENSES Deyvis Nascimento Rodrigues6 Aleone de Oliveira Martins7 Ricardo Franklin de Freitas Mussi 8 Sandra Célia Coelho Gomes da Silva S de Oliveira9 INTRODUÇÃO Independente do período histórico e grupo social as práticas religiosas parecem desempenhar importante papel nas relações humanas, costumando ―desempenhar papel central na experiência humana, influenciando nossa forma de perceber os ambientes deste mundo em que vivemos e de reagir a eles‖ (GIDDENS, 2005, p.426). Podendo ser considerada importante fator nas experiências do homem, fazendo-se necessário estudar as práticas religiosas associadas as mais variadas atividades humanas, verificando o grau de sua interferência no cotidiano do homem. A religião influencia o modo como o homem percebe o mundo, interferindo nas relações do indivíduo com os seus semelhantes. Neste sentido Malinowski, 1988 apud Lemos (2008, p.13) expõe a sua influência na compreensão do indivíduo quanto a si e sua identidade, segundo valores e crenças da natureza humana e destino. Além disso, Lemos (2008, p.12) acrescenta que ―a religião é indispensável para a sociedade por ser ela que mantém os indivíduos em relação uns com os outros‖. Uma vez que A religião consegue manter a vida em sociedade porque além dela oferecer a possibilidade de que os indivíduos vivam muito bem e por muitos anos, quando a concretização dessa oferta se torna impossível, a religião abre ainda a possibilidade de que essa promessa se realize em um tempo, no tempo futuro. (LEMOS, ano, p.16) Ao se pensar em indivíduos longevos e vivendo bem, deve-se pensar prioritariamente em uma vida saudável. Terrin (1998) apud Lemos (2008, p.53) mostra que saúde e salvação originaram-se do termo svastha e partilharam mesmo significado, bem-estar e plenitude, por um longo período. Sendo a saúde o estado de bem-estar e salvação, ainda é possível estabelecer a relação existente entre a doença e a interferência de espíritos maus, possessão demoníaca e o pecado. Romano (1998) apud Lemos (2008, p.62) defende que ―a doença é uma quebra de equilíbrio biopsicossocial do indivíduo e obrigatoriamente remete o paciente à revisão de valores, ações e desencadeia mecanismos de resgate da Graduando em licenciatura plena em Educação Física – UNEB, Pesquisador LEPEAF e GAMA; [email protected] 7 Graduanda em licenciatura plena em Educação Física – UNEB; 8 Orientador: Professor da UNEB–Campus IV; Mestrando em Saúde Coletiva – UEFS; Pesquisador LEPEAF e GAMA; 9 Professora da UNEB–Campus XII; Mestranda em Ciências da religião – PUC/GO; 6 25 condição humana e de suas relações‖. Quanto à relação saúde e religiosidade Guimarães e Avezum (2007, p.93) dizem que: a influência da religiosidade/espiritualidade tem demonstrado potencial impacto sobre saúde física, definindo-se como possível fator de prevenção ao desenvolvimento de doenças, na população sadia, e eventual redução de óbito ou impacto de diversas doenças. Ainda, deve ser compreendida a idéia de que a saúde é dinâmica, variando dentro de um continuum com pólos positivo (capacidade de apreciar a vida e resistir aos desafios cotidianos) e negativo (relacionado às morbidades e mortalidade prematura). (NAHAS, 2006) Sendo a religião construtora de entendimentos relacionados à saúde e o bem-estar, surge a necessidade do desenvolvimento de estudos relacionando-a com os principais fatores de promoção de saúde, inclusive quanto a pratica de atividade física regular, uma vez que a esta vem sendo ―associada ao bem-estar, á saúde e a qualidade de vida das pessoas em todas as faixas etárias‖ (BARROS & NAHAS, 2003, p.10). Caspersen, Powell & Christenson (1985) apud Pitanga (2000) definem atividade física como qualquer movimento corporal, advindo da musculatura esquelética, com gasto energético. Barbanti (2003, p.53) acrescenta que esta seria representada pelo esporte, aptidão física, recreação, brincadeira, jogo e exercício. Na prevenção das doenças Gonçalves e Basso (2005, p.33) dizem que ela ―é compreendida como prática relevante para beneficio à saúde‖. Desta maneira, o presente trabalho teve por objetivo identificar as relações entre o nível de Atividades Físicas Habituais (NAFH) e prática religiosa em universitários da área da saúde das universidades presenciais com campus em Guanambi/BA. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS O trabalho possui característica descritiva (THOMAS, NELSON e SILVERMAN, 2007, p. 29-30) Além de correlacional, neste caso representado pelo acometimento e inter-relações da Religião e do NAFH. Finalmente apresenta características quantitativas e qualitativas por pontuar, mensurar e avaliar variáveis de estudo (MINAYO, 2007). A coleta de dados foi precedida pela instrução das questões fundamentais do estudo, entrega e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Seguindo-se as orientações da norma regulamentadora CNS 196/96. O instrumento foi composto por questionário com itens sobre informações sócio-demográficas, prática religiosa e Questionário de Atividades Físicas Habituais (Pate apud Nahas, 2006: 46). Sendo importante salientar que o NAFH foi classificado em ―Insuficientemente Ativos‖ (escore inferior/igual a 11 pontos) e ―Ativos‖ (superior/igual a 12 pontos). Os dados foram tabulados e analisados descritivamente e por freqüência no SPSS 11.5 for Windows, seguida de análise correlacional em tabela cruzada entre Religião e NAFH. RESULTADOS 26 Amostra foi composta por 41 avaliados, com idade de 20,85+3,4 anos, estudantes do 1º bloco dos cursos de saúde das faculdades presenciais de Guanambi/BA, sendo 63,4%(26) mulheres e 36,6%(15) homens, 82,9%(34) solteiros, 12,2%(5) casados e 4,9%(2) com outra situação, 48,78%(20) católicos, 36,58%(15) evangélicos, 2,44% (1) espírita e 12,20%(5) de outra religião, 51,22%(21) insuficientemente ativos e 48,78%(20) ativos. - Associação entre prática religiosa e Nível de Tabela 1 – Relação entre Religião e Nível de Atividade Física Nível de Atividade Física Insuficientemente Ativo Ativo Religião Católico Evangélico Outra 30% (6) 86,6% (13) 33,4% (2) 70% (14) 13,4% (2) 66,6% (4) DISCUSSÕES Observando-se os dados presentes na Tabela 1 nota-se há uma influencia diferenciada entre a prática religiosa e o nível de atividade física, uma vez que70% dos ditos católicos são considerados fisicamente ativos, no entanto 86,6% dos que se dizem evangélicos são classificados como insuficientemente ativos, em contra partida, os de outras religiões não houve um contingente amostral para expressar a correlação entre as variáveis. Desta forma, nota-se que o grupo dos que se dizem católicos é aderente a programas de atividade física, no entanto esta aderência é comprometida no grupo dos evangélicos. Barbanti (1994) apud Tahara, Schwartz e Silva (2003, p.8) define aderência como, ―a participação mantida constante em programas de exercícios, considerados nas formas individual ou coletiva, previamente estruturados ou não‖. O processo de aderência não acontece por acaso, Pollock (1988) citado por Gonçalves e Compane (2005, p.19) relata que os principais fatores que podem afetar a aderência a programas de atividade física são: Atitude em relação à atividade física; personalidade; tipos de programas de exercício (freqüência, duração, intensidade e o modo da atividade); peso e composição corporal; problemas médicos (lesões, nível de aptidão, supervisão do grupo); estabilidade; influência do cônjuge; idade; sexo; estado socioeconômico; custo e método de pagamento e fatores relacionados com o tempo. Além destes fatores, Guarnieri (1997) mencionado por Tahara, Schwartz e Silva (2003, p.8) descreve que os principais fatores que levam a população adulta a aderir a programas de atividade física regular são: ―benefícios para a saúde, sentirse bem, controlar o peso, melhorar a aparência e reduzir o estresse‖. No que diz respeito aos benefícios da atividade física Carvalho et. al. (1996 p. 79) descreve que ―a saúde e a qualidade de vida do homem podem ser preservadas e aprimoradas pela prática regular de atividade física‖ Sendo assim os católicos estão mais propensos a atingir os benefícios a saúde, propostos pela prática regular de atividade física do que os evangélicos. CONSIDERAÇÕES FINAIS 27 Conclui-se que a prática religiosa é um importante fator no que diz respeito à manutenção de níveis saudáveis de atividades físicas, uma vez que, como sugerem os resultados deste trabalho, a religião interfere na adesão a programas de atividade física. No que diz respeito aos benefícios destes programas, nota-se que os evangélicos se encontram em situação de risco, pois, como refere Carvalho et. al. (1996 p. 79) ―o sedentarismo é condição indesejável e representa risco para a saúde‘. REFERÊNCIAS BARBANTI, V.J. Dicionário de Educação Física e Esporte. 2ª Ed. Barueri: Manole, 2003 BARROS, M.V. G. de & NAHAS, M.V. Medidas da Atividade Física: teoria e aplicação em diversos grupos populacionais. Londrina: Midiograf, 2003. CARVALHO, T. de; et al. Posição oficial da Sociedade Brasileira de Medicina do Esporte: atividade física e saúde. Rev Bras Med Esport. v.2, n.4, 1996. GONÇALVES, A.; e BASSO, A. C. Atividade Física. In: GONZÁLEZ, F.J. & FENSTERSEIFER, P.E. Dicionário Crítico de educação Física. Ijuí: Unijuí, 2005. GONÇALVES, A.; e COMPANE, R. Z. Aderência. In: GONZÁLEZ, F.J. & FENSTERSEIFER, P.E. Dicionário Crítico de educação Física. Ijuí: Unijuí, 2005. GIDDENS, Anthony. Sociologia/ Anthony Gidenns; tradução Sandra Regina Netz. 4 ed. Porto Alegre: Artmed, 2005 GUIMARÃES, H. P.; AVEZUM, A O impacto da espiritualidade na saúde física. Rev. Psiq. Clín. v.34, n.1, p.88-94, 2007. GIDDENS, Anthony. Sociologia/ Anthony Gidenns; tradução Sandra Regina Netz. 4 ed. Porto Alegre: Artmed, 2005 MADUREIRA, A.S.; FONSECA, S.A. & MAIA, M. de F. M. Estilo de Vida e Atividade Física Habitual de Professores de Educação Física. Revista Brasileira de Cineantropometria & Desempenho Humano. V.5, n.1, p.54-62, 2003. MINAYO, M. C. de S. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10ª ed. São Paulo: Hucitec, 2007. NAHAS, M. V. Atividade Física, Saúde e Qualidade de Vida: conceitos e sugestões para um estilo de vida ativo. 4 ed. rev. e atual. Londrina: Midiograf, 2006. PITANGA, F. J. G. Testes, medidas e avaliação em Educação Física e esportes. Francisco José Gondim Pitanga. Salvador, 2000. TAHARA, A. K.; SCHWARTZ G. M.; SILVA K. A. Aderência e manutenção da prática de exercícios em academias Revista bras. Ci. e Mov. v.11 n.4 p. 7-12, 2003. THOMAS, J. R.; NELSON, J. K.; SILVERMAN, S. J. Métodos de pesquisa em atividade física. Tradução Denise Regina de Sales, Márcia dos santos Dornelles. 5 ed, Porto Alegre: Artmed, 2007. 28 29 GT 2 - RELIGIÃO, VIOLÊNCIA, ETNICIDADE E GLOBALIZAÇÃO Coordenação: Drª Irene Dias de Oliveira Resumo: Esta mesa pretende analisar a relação entre religião, violência e etnicidade no âmbito da sociedade globalizada, multicultural e plurirreligiosa. A violência tem tido um aumento considerável na sociedade atual e exige reflexão mais acurada e atenta. De outro lado a relação entre violência, religião e etnicidade tem dado origem a polêmicas generalizadas e por vezes superficiais impedindo um olhar mais atento e acurado para as dimensões históricas, culturais e sociais em relação a determinados grupos étnicos. Esta mesa pretende portanto acolher propostas que debatam e questionem a relação religião, violência e etnicidade na sociedade atual. Palavras-chave: religião, etnicidade e violência. 30 AFRICANIDADE, RESISTÊNCIA CULTURAL E RELIGIOSIDADE: LEITURAS DA NÃO DISCIPLINARIZAÇÃO DO CORPO NA CAPOEIRA EM BELÉM. Leila do Socorro Araújo Melo10 Resumo A Capoeira, manifestação da cultura afro-brasileira constitui campo privilegiado de estudos na atualidade, porém a existência da capoeira, espécie de jogo/luta/dança, parece remontar o Brasil colonial, mais precisamente ao contexto de luta dos negros contra o sistema de escravidão, sendo o corpo o principal referencial dessa resistência física e simbólica, haja vista que, nessa estrutura de extrema dominação, ocorre o esforço de imposição de novos valores, como a língua portuguesa, a religião católica, os costumes em geral, principalmente aos negros escravos, parcela importante da população, que ao longo de seu desenvolvimento cria estratégias de luta e formas de organização que se passam desde o conflito aberto contra os senhores, bem como pela negociação11. 1. Capoeira e Perseguição Tida como ―coisa de negro‖, assim como outras manifestações (o samba, o batuque, os afoxés) ligadas a uma tradição negro-africana no Brasil, a capoeira, ao longo do século XIX e início do século XX, emerge como uma prática associada ao universo da vagabundagem e da marginalidade, sendo duramente perseguida e inclusive enquadrada como crime no código penal brasileiro de 1890, permanecendo nessa situação até a década de 30 deste século, quando é elevada a categoria de esporte pelo Estado Novo de Getúlio Vargas (SOARES, 1994) Ao longo de sua trajetória, a prática da capoeira comportou vários significados. Se, no início da fase republicana, a criminalização refletia a leitura 10 Mestre em Antropologia Social e docente do curso de Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará ( [email protected]) 11 Sobre o caráter de resistência negra no Brasil, uma recente produção historiográfica vem chamando atenção para as estratégias cotidianas desenvolvidas por homens e mulheres para a conquista da liberdade. A barganha e a negociação constituem os principais mecanismos de luta, sendo que as imagens construídas de Zumbi (reforçando a rebelião) e ―Pai João‖ (representando a submissão) representam dois extremos de um processo pautado sobretudo por uma zona intermediária, na qual as formas de negociação ganham maior peso. Cf. Reis e Silva (1989), Chalhoub (1990). 31 que determinados seguimentos faziam a respeito da capoeiragem, como era definido o delito, na época imperial, momentos de tolerância e repressão se alternavam demonstrando o jogo de interesses do período. Marcos Bretas nos fornece um quadro a respeito da presença de capoeiras no Rio imperial e sua participação no enlace da ordem e desordem política do contexto. As maltas- bandos de capoeiras – tomam parte nos grandes eventos urbanos: desfilam sempre à frente das bandas de música e procissões, exibindo sua destreza e provocando tumultos {...}. Pouco a pouco eles são incorporados à atividade política, produzindo segurança ou insegurança, dependendo de quem seja o dono do comício ou da eleição. Exército das ruas, os capoeiras incorporam-se também – através das práticas do favor – às fileiras das forças regulares, tornando-se além de exímios navalhistas, agentes de polícia, a celebrar a identidade entre a ordem e a desordem (BRETAS, 1989, p. 57). Inserido na conjuntura política do período, o capoeira do contexto pósescravista contraria, muitas vezes, a alcunha de ―vagabundo‖ e ―vadio‖, corrente no momento, integrando-se ao universo profissional do final do século XIX. Através da análise dos registros da Casa de Detenção do Rio de Janeiro, durante a dura repressão iniciada no alvorecer da República, Bretas chama a atenção para o perfil profissional dos indivíduos presos por capoeiragem. Havia uma diversidade de atividades que incluía “artesões, vendedores ambulantes, empregados nos transportes e serviços urbanos, cozinheiros, pedreiros, cocheiros, vendedores de bala, pescadores, etc”12, o que parece reproduzir a mistura que o ambiente urbano ocasionou entre os ex-escravos e o conjunto dos homens livres e pobres. Um outro momento de valorização dos capoeiras durante o Império se percebe na participação desses homens na Guerra do Paraguai. Atraídos pelas promessas de alforria, muitos cativos aumentaram os contigentes do exército brasileiro que, após o término do conflito, teve o seu prestígio consideravelmente elevado. Por outro lado, a presença em massa de elementos das camadas populares na guerra ocasionou o ressurgimento do temor, por parte das elites, 12 BRETAS, op. cit. Pág.58. 32 com esses seguimentos formados por ex-escravos, criminosos, desordeiros, que agora exibiam pelas ruas uniformes, medalhas e o título de ―heróis da pátria‖. O confronto se tornava inevitável, demonstrando o inconformismo com os papéis anteriores que esses sujeitos ocupavam na ordem social urbana (SOARES, 2004). Enfim, a guerra representou uma expectativa de prestígio social e reconhecimento, desses soldados negros13, o que dificilmente ocorreria sem o conflito, e colocou em cena esses personagens de grande importância no jogo político da época imperial. Sobre a capoeira desenvolvida em Belém, Salles (1994) demonstra através de documentos jornalísticos e literários sobre o tema a forte presença de capoeiras em eventos religiosos e festas populares, demonstrando, talvez, uma forma particularizada de organização. Seguindo as pistas deixadas por Salles, Leal (1997) utilizando documentações distintas (obras literárias, processos-crimes, jornais, legislação, etc), relaciona a capoeira a outras manifestações populares na cidade de Belém (o carnaval, o futebol). O autor procura discutir como o discurso letrado do século XIX caracteriza esses personagens, atento para os locais de suas aparições e também para os mecanismos institucionalizados que irão agir na repressão dessa atividade. Atualmente entre um conjunto de significados e práticas a capoeira pode ser lida como uma linguagem cultural, que expressa a articulação de experiências individuais e coletivas, no qual o corpo é o guardião dessa historicidade de resistência e luta imprescindível para o conhecimento de nossas raízes. Nesse processo de formação identitária o aprender a ser capoeira envolve pontos inovadores para o campo da educação, pois sua base não se encontra em um modelo de conhecimento fechado, modular, e sim na elaboração do conhecimento pelo auto-conhecimento. Os componentes reafirmadores do educar 13 A guarda negra formada por esses soldados, surge, como uma milícia anti-republicana, cujo símbolo era a princesa Isabel, transformando-se em uma força de expressiva atuação na vida política da corte, cf. GOMES, Flávio dos Santos. No meio das águas turvas: racismo e cidadania no alvorecer da República: a Guarda negra na corte: 1888-1889. Rio de Janeiro: Estudos Afro-Asiáticos, (21) 75-96, dez. 1991, SOARES, Op. Cit. Areias (1983). 33 envolvem valores como identidade, confiança, companheirismo, respeito e lealdade, sintetizados na complexa noção de fundamentos. No entanto, a ambigüidade (Reis, 1997) marca o desenvolvimento da capoeira contemporânea. Seus vários aspectos (jogo, luta, dança) alternam-se de acordo com as concepções particularizadas de seus atores. Barbieri (1993, p. 54) demonstra o caráter ambíguo ao apresentar a capoeira como um continuum que tem como pólos o sentido da destruição e o sentido da cooperação. Esses pólos apresentam-se de modo alternado dependendo do tipo de diálogo travado e objetivo delimitado no desenrolar do jogo, ou seja, sua feição é dada pela intencionalidade e pelos preceitos que norteiam os integrantes da roda de capoeira, do grupo. Nesse sentido, a capoeira pode ser um mecanismo educacional pautado nos princípios da corporeidade (ludicidade, auto-percepção, liberdade e participação), afirmando a roda enquanto espaço de expressividade humana, de encontro, de troca, de reflexão sobre os valores éticos da sociedade mais geral, da “grande roda”; por outro lado, a capoeira pensada como mecanismo de eficiência física, privilegiando a competividade não crítica, que conduz ao reforço de valores reafirmadores da luta e, muitas vezes, geradores de conflito. As posturas diferenciadas diante do real expressam, portanto, os aspectos contraditórios desse jogo e as elaborações construídas sobre a prática. As escolhas seguidas por seus praticantes refletem as posturas assumidas diante da historicidade contraditória desse jogo. REFERÊNCIAS BRETAS, Marcos Luiz. Navalhas e Capoeiras: Uma outra queda. Rio de Janeiro: Ciência Hoje, (59) 56-64, Nov. 1989. LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. Amolando as gambias: significados e prática da Capoeira em Belém (1840 1853). Belém: Departamento de História/UFPa, mimeo. Monografia de graduação em História, 1997. MELO, Leila do Socorro Araújo. Nas trilhas da ginga: Tradição e Fundamento construindo a prática educativa da capoeira em Belém.Belém, Laboratório de Antropologia/UFPA, mimeo. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, 2000. 34 SALLES, Vicente. A defesa pessoal do negro: a capoeira no Pará. Brasília: Microedição autor, 1994. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A Negregada Instituição. Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, 1994. SOCIEDADE, POLÍTICA E MEIO AMBIENTE ROBERTO FERNANDES DE MELO Resumo O presente artigo, fazendo uso da pesquisa bibliográfica, faz uma análise das relações entre sociedade e natureza, mostrando que as injustiças e violências nas relações humanas e sociais promovem também a exploração do meio ambiente. Desta forma as consciências políticas e ambientais caminham juntas. Ecologia e cidadania são inseparáveis quando se pretende estabelecer um equilíbrio socioambiental, assim os movimentos ambientais são apresentados como modelos na busca de mudanças paradigmáticas das relações sociedade e meio ambiente. Abstract This article, using the literature search, analyzes the relationships between society and nature, showing that the injustices of human and social relations also promote the exploitation of the environment. Thus the political and environmental awareness go together. Ecology and citizenship are inseparable when envisaging a socioenvironmental balance, and environmental movements are presented as models in the search for a paradigm shift in relations society and environment. Palavras Chaves: Políticas, violência, problemas socioambientais, consumismo e movimentos ambientais. Sociedade e natureza As relações entre sociedade e natureza, até o século XIX, em sua compreensão tradicional, analisava o homem e a natureza como pólos excludentes, tendo como referência a compreensão da natureza como objeto e fonte ilimitada de recursos para a utilização do homem. Assim afirmam Bernardes e Ferreira (2005): 35 A compreensão tradicional das relações entre a sociedade e a natureza desenvolvidas até o século XIX, vinculadas ao processo de produção capitalista, considerava o homem e a natureza como pólos excludentes, tendo subjacente a concepção de uma natureza objeto, fonte ilimitada de recursos à disposição do homem (p. 17). Essa visão tradicional reflete as fases da evolução terrestre e da história humana e, sobretudo, a fase da chamada sociedade industrial que é a mais reduzida de todas as fases históricas anteriores. Segundo De Masi (2000): Nesta longa trajetória da evolução terrestre e da história humana, a fase que, segundo convencionamos, corresponde à sociedade industrial – da metade do século XVIII à metade do século XX – é muito mais reduzida do que todas as fases históricas anteriores, caracterizadas sucessivamente pela caça, pelo pastoreio, pelo trabalho agrícola, pela grande transformação mercantil (p. 12). Existem três fenômenos que emergem da sociedade industrial , segundo de Masi 1 (2000, p. 18 -20). O primeiro refere-se a uma convergência progressiva entre os países industriais, que independe do regime político, como foi o caso de EUA e URSS. O segundo consiste no crescimento das classes médias (no nível da sociedade) e da tecno-estrutura (no nível de empresa). O terceiro, refere-se à difusão do consumo de massa e da sociedade de massa que, segundo o mesmo autor, é uma das mais significativas da transição da sociedade industrial para a pós industrial. É justamente sobre as relações violentas entre sociedade de consumo e natureza que focamos nossos estudos. Segundo a leitura e interpretação que os autores Bernardes e Ferreira (2005) fazem sobre as idéias de Marx em relação à sociedade e natureza, essas relações acontecem como formas de determinada sociedade se organizar para ter acesso e utilizar os recursos naturais existentes. Vale citar que ―na abordagem de Marx, as relações sociedade/natureza são enfocadas em termos das formas como determinada sociedade se organiza para o acesso e o uso dos recursos naturais‖ (p.19). Desta forma, fica evidente que a relação com a natureza sempre acompanha as relações sociais . Quando existem injustiças , abusos, violência e exploração nas 2 3 36 relações sociais, também essas mesmas injustiças, abusos violência e exploração aparecem nas relações com a natureza. A sociedade de consumo necessita da produção de excedentes, esses excedentes são produzidos por meio de uma maior exploração da natureza. Produzir em excesso é uma condição necessária para a intensificação das relações comerciais, desenvolvimento do capital e geração do lucro. Isso implica uma nova forma de relacionamento com a natureza. Assim, vale apontar: Sob o processo de acumulação, o capitalismo deve expandir-se continuamente para sobreviver enquanto modo de produção, ocorrendo a apropriação da natureza e sua transformação em meios de produção em escala mundial. Com a produção da natureza nessa escala, a relação com a natureza passa a ser, antes de mais nada, uma relação de valor de troca: é a partir da etiqueta de preço que se coloca, na mercadoria é que se determina, o destino da natureza, passando a relação com a natureza a ser determinada pela lógica do valor de troca (BERNARDES e FERREIRA, 2005, p. 21). O aumento do consumo e da produtividade são marcas da sociedade capitalista, tais marcas incentivam o desperdício e com isso geram um ciclo de mais produção e maior intensificação do consumo, e conseqüentemente, maior destruição da natureza. Como membros de uma sociedade de consumidores, na atual fase do capitalismo, vivemos num mundo em que a economia se caracteriza pelo desperdício, onde todas as coisas devem ser devoradas e abandonadas tão rapidamente como surgem...(BERNARDES e FERREIRA, 2005, p. 21). Podemos falar de uma crise fundamental provocada justamente pelo consumismo exagerado. Esse tipo de comportamento se difundiu ou foi imposto praticamente ao mundo inteiro, caracterizando e formando um tipo de civilização. Qual é o primeiro sinal visível que caracteriza esse tipo de civilização? É que ela produz sempre pobreza e miséria de um lado e riqueza e acumulação do outro. Esse fenômeno se nota em nível mundial. Há poucos países ricos e muitos países pobres. Nota-se principalmente no âmbito das nações: poucos estratos beneficiados com grande abundância de bens de vida (comida, meios de saúde, de moradia, de formação, de lazer) e grandes maiorias carentes do que é essencial e decente para a vida. Mesmo nos países chamados industrializados do hemisfério norte notamos bolsões de pobreza (terceiromundialização no Primeiro Mundo) como 37 existem também setores opulentos no Terceiro Mundo (uma primeiromundialização do Terceiro Mundo), no meio da miséria generalizada (BOFF, 2005, p. 20). Dessa forma, o espaço é modelado conforme os interesses (capitalistas) econômicos e sociais de um determinado modelo vigente , estas relações não 4 acontecem no mundo abstrato, mas no espaço concreto, conforme afirma de maneira contundente Bernardes e Ferreira (2005). As relações sociais e econômicas não se realizam num distanciado circuito abstrato, mas, ao contrário estão solidamente inseridas numa materialidade espacial. Portanto, é pelas vias espaciais que o modo de produção veicula seus valores de troca e de uso, drenando os lucros obtidos neste processo e funcionando como um instrumento de concentração de renda (p. 23). A política econômica vigente gera exclusão, pobreza e exploração – do homem em 5 relação à natureza e do homem em relação ao próprio homem – sendo urgente a escolha e aplicação de novas práticas políticas. Sobre a exclusão promovida pelo mercado, afirma L.Boff: Este tipo de mercado excludente cria níveis de pobreza mundial jamais vistos. É injusto e impiedoso ver que 20%da humanidade detenham 84% dos meios de vida (em 1970 eram 70%), e os 20% mais pobres tenham que contentar-se com apenas 1,4% (em 1960 eram 2,3%) dos recursos. É injusto e cruel manter mais de um bilhão de pessoas em extrema pobreza e tolerar que 14 milhões de crianças morram antes de completar cinco dias de existência (p. 8). Essa política de exploração é uma ameaça constante ao sistema Terra. O grito dos explorados é o grito também da Terra. As relações do homem com o homem, e do homem com a natureza (sociedade e natureza) precisam ser direcionados por políticas que valorizem a solidariedade e tenha compromisso com a preservação do meio ambiente. Sobre o drama da exploração da Terra, afirma Boff (2000): A este drama é preciso acrescentar a ameaça que pesa sobre o sistema Terra. A aceleração do processo industrial faz com que a cada dia desapareçam 10 espécies de seres vivos e 50 espécies de vegetais. O equilíbrio físico–químico da Terra, construído sutilmente durante milhões e milhões de anos, pode romper-se devido à irresponsabilidade humana. A mesma lógica que explora as classes oprime as nações periféricas e submete a Terra à pilhagem. Não são somente os pobres que gritam, grita 38 também a Terra sob o esgotamento sistemático de seus recursos não renováveis e sob a contaminação do ar, do solo e da água...(p. 9). Política e práticas socioambientais Quando falamos em equilíbrio entre as relações da sociedade com a natureza é importante afirmar a necessidade de políticas que verdadeiramente possam contribuir para práticas efetivas de preservação. Primeiramente é necessária uma definição do que seja política. Dallari (1999) define política como: Os gregos davam o nome de polis à cidade, isto é ao lugar onde as pessoas viviam juntas. E Aristóteles diz que o homem é um animal político, porque nenhum ser humano vive sozinho e todos precisam da companhia de outros. A própria natureza dos seres humanos é que exige que ninguém viva sozinho. Assim sendo, ―política‖ se refere à vida na polis, ou seja, à vida em comum, às regras de organização dessa vida, aos objetivos da comunidade e às decisões sobre todos esses pontos (p.8). Pedro Demo (2006) também faz a sua definição sobre política da seguinte forma: Não vou aqui reconstruir uma discussão complexa e longa (Demo, 2002), mas indicar algumas pistas mais pertinentes à nossa discussão. Desde os gregos fala-se de ―zoón politikón‖ (animal político), sugerindo essa expressão que o ser humano não lida apenas com estruturas às quais se curva de modo geral, mas também com dinâmicas históricas, nas quais pode conquistar alguma margem de manobra, como regra através da habilidade de aprender e conhecer. Damos a essas dinâmicas o nome de ―politicidade‖, quase sempre em referência a Paulo Freire (1997), que por primeiro falou de ―politicidade da educação‖, ao discutir o desafio da autonomia (p. 8). A natureza humana necessita da vida em sociedade, portanto, o homem é um ser social por natureza e tudo o que ele tem e realiza é tido e realizado em sociedade. Todos os seres humanos valem exatamente a mesma coisa, por natureza todos nascem iguais e é a sociedade que estabelece as diferenças. Assim, as diferenças de valor entre os seres humanos são artificiais, não naturais, é contra a natureza permitir que uns nasçam ricos e socialmente bem situados enquanto outros nascem 39 miseráveis e condenados a uma vida de sacrifícios e inferioridade social (DALLARI, 1999, p. 13). A consciência política - e da prática da cidadania – e ambiental estão diretamente relacionadas, não existe uma separação ou ruptura entre elas. A problemática socioambiental amplia a consciência de suas causas sociais, podendo promover uma maior participação política e cidadã. Assim afirma Carvalho (2008): Nessa perspectiva, a introdução da problemática socioambiental na esfera pública não apenas denuncia os riscos ambientais, mas também amplia a consciência de suas causas sociais. Essa consciência de riscos compartilhados pode atuar como força agregadora, cooperando para a formação de redes de ações solidárias (p. 169). Desta forma, as consciências ambientais e sociais caminham juntas e mostram-se indispensáveis à convivência e sobrevivência humana. Da mesma forma, continua Carvalho falando sobre a consciência e ação socioambiental: Tais ações, por sua vez, contrapõem-se aos mecanismos de desintegração social e degradação ambiental relativos à apropriação dos bens ambientais por parte dos interesses privados, contribuindo assim para a preservação tanto do planeta quanto dos vínculos de solidariedade social, indispensáveis à convivência humana (2008, p. 169). As questões socioambientais contribuem para ampliar a noção de cidadania e justiça social, principalmente quando enfatiza a dimensão ambiental das lutas sociais e apóia as ações em favor da justiça no acesso aos bens ambientais e no uso desses bens (CARVALHO, 2008, p. 170). Os movimentos ambientais e as questões sociais 40 Algumas mudanças ocorridas no pensamento social e ambiental foram provocadas pelos movimentos ecologistas. A humanidade conseguiu perceber que os recursos naturais são finitos, que a sua própria existência corre risco, e que degradação ambiental e injustiças sociais estão interligadas. Um dos mais importantes movimentos sociais dos últimos anos, promovendo significantes transformações no comportamento da sociedade e na organização política e econômica, foi a chamada ―revolução ambiental‖. Com raízes no final do século XIX, a questão ambiental emergiu após a Segunda Guerra Mundial, promovendo importantes mudanças na visão do mundo. Pela primeira vez a humanidade percebeu que os recursos naturais são finitos e que seu uso incorreto pode representar o fim de sua própria existência (BERNARDES E FERREIRA, 2005, p. 27). L.Boff (2005) descreve a definição e a importância dos movimentos ambientais e 10 ecológicos. Assim diz: Eles constatam que os tipos de sociedade e de desenvolvimento existentes não conseguem produzir riqueza sem simultaneamente produzir degradação ambiental. O que o sistema industrialista produz em demasia: lixo, rejeitos tóxicos, escórias radioativas, contaminação atmosférica, chuvas ácidas, diminuição da camada de ozônio, envenenamento da terra, das águas e do ar; numa palavra, deterioração da qualidade geral da vida. A fome da população, as doenças, a falta de habitação, de educação e lazer, a ruptura dos laços familiares e sociais são agressões ecológicas contra o ser mais complexo da CRIAÇÃO, o ser humano, especialmente o mais indefeso, que é o pobre, o excluído (p. 24). Essas preocupações acabam promovendo uma cultura ecológica, ou seja, despertam a consciência coletiva da responsabilidade pela sobrevivência do planeta em sua enorme biodiversidade e pelo futuro da espécie humana (BOFF, 2005, p. 24). No entanto, são enormes os desafios enfrentados pelos movimentos ambientalistas e ainda existe uma longa estrada para ser percorrida. Quanto maior forem as injustiças sociais maior será o desafio a enfrentar, assim afirma Jacobi (2003): 41 O movimento ecológico enfrenta no Sul, maiores desafios que no Norte, devido à explosiva combinação dos problemas de degradação ambiental e injustiça social. Existe uma complexa tensão entre a justiça social e o ecologismo (p.23). Jacobi (2003) continua apontando algumas dificuldades também em relação a ―distância‖ entre os movimentos, por não perceberem sua essencial semelhança, assim diz: Os setores populares do Sul (movimento sindical, movimentos populares urbanos e rurais) mantêm-se distantes do discurso ecologista, apesar que alguns dos objetivos mais importantes destes movimentos são profundamente ecologistas (luta por condições de trabalho, saneamento básico, melhoria dos serviços de saúde pública, propriedade da terra para quem a trabalha) (p.23) A visão da vida humana que o movimento ecológico traz constitui-se um novo paradigma. Esse caráter reestruturador cultural e político se transformam em meio de surgimento de novos partidos políticos, partidos verdes ou ecopacifistas. Esses partidos verdes são partidos de valores que não pretendem apenas governar ou tomar revolucionariamente o poder, pretendem sim, agir como transformadores da cultura política introduzindo valores pós materialistas (JACOB, 2003, p. 23). Portanto, a transformação socioambiental exige uma consciência política e prática da cidadania; exige também um compromisso global e regional na superação da agressão à vida, seja ela humana ou não. É necessário mais que uma ―pura consciência ecológica‖, é preciso uma profunda consciência política voltada para práticas efetivas de preservação, justiça social busca da paz e da promoção humana. Referências BERNARDES, Júlia Adão e FERREIRA, Francisco Pontes de Miranda. A Questão Ambiental: Diferentes Abordagens. In: Cunha e Guerra (org). - 2ª- Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. 42 BOFF, Leonardo. Ética da Vida. Rio de Janeiro: Sextante, 2005. _____________. Princípios de Compaixão e Cuidado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. BOFF, Clodovis. Teoria do Método Teológico. - 2ª- Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação Ambiental: a formação do sujeito ecológico. – 4 ed.- São Paulo: Cortez, 2008. DALLARI, Dalmo de Abreu. O Que é Participação Política. São Paulo: Brasiliense, 1999. (Coleção primeiros passos; 104). DE MASI, Domenico. A Sociedade Pós Industrial. -3ª- Ed. São Paulo: Senac São Paulo, 2000. DEMO, Pedr. Charme da Exclusão Social. -2ª- Ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2002. (Coleção polêmicas de nosso tempo; 61). __________. Pobreza Política – a pobreza mais intensa da pobreza brasileira. Campinas, SP: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2006. JACOBI, Pedro. Movimento Ambientalista no Brasil. Representação social e complexidade de articulações de práticas coletivas. In: Ribeiro, W. (org). Publicado em Patrimônio Ambiental – EDUSP – 2003. LIBÂNEO, J.B. Cristianismo, humanismo e democracia. In: Bento, Fábio Régio (org). São Paulo: Paulus, 2005. (Temas da atualidade). SOUZA, Herbert Souza de. Como se faz Análise de Conjuntura. -20ª- Ed. Petrópolis, RJ: vozes, 1999. 43 JOHN LOCKE E O PRENÚNCIO DA INDIVIDUALIDADE RELIGIOSA AZIZE MARIA YARED DE MEDEIROS14 Resumo Este trabalho apresenta uma reflexão sobre a Carta acerca da tolerância escrita no ano de 1689 por John Locke (1632 – 1704). Nesse texto o filósofo inglês não só argumenta a favor da tolerância entre as religiões, uma decorrência natural do próprio Evangelho, como também demonstra o equívoco em que se constitui a interferência do Estado em assunto tão evidentemente privado como é a religião. O que chama a atenção é que, nessa busca pela tolerância, Locke permite entrever os caminhos que a religião deverá buscar, com uma acentuada defesa da instituição de um Estado laico. A argumentação lockeana sobre a tolerância religiosa e a simultânea instauração de um Estado laico traz como consequência, na verdade e de forma implícita, a defesa da individualidade religiosa como meio de impedir a violência e instaurar o respeito pelas diferenças culturais e étnicas. Do mesmo modo, é possível antever a consolidação da individualidade religiosa nos séculos vindouros, o que se caracterizará, de modo bastante específico, na pósmodernidade globalizada. Palavras-chave: Tolerância. Estado laico. Individualidade religiosa. Com muita freqüência, a mídia internacional fornece notícias estarrecedoras sobre conflitos religiosos espalhados pelo planeta. Regularmente são divulgados dados sobre centenas de mortes provocadas por homens-bomba de diferentes movimentos muçulmanos; sikhs e hindus frequentemente entram em conflito na fronteira da Índia com o Paquistão; católicos e protestantes permanecem com os ânimos acirrados na velha Irlanda; vilarejos cristãos são destruídos e seus moradores massacrados por grupos muçulmanos na África; budistas e muçulmanos se agridem constantemente na Tailândia e Miyanmar; templos e monges budistas são destruídos pelos chineses 14 Doutoranda em Ciências da Religião pela PUC GOIÀS ([email protected]) 44 no Tibet; e o humor entre turcos, árabes e cristãos na Europa e Estados Unidos reflete momentos de tensão e provocação mútua. Tudo isso, em nome de Deus? Essas questões resultantes do chamado fundamentalismo religioso e suas manifestações no mundo contemporâneo exigem uma análise que transcende os limites de uma simples compreensão dos aspectos que caracterizam o mundo globalizado. As mudanças econômicas, políticas e culturais que se sucederam nas sociedades contemporâneas demonstram o alcance do capitalismo em escala mundial e a inevitabilidade das transformações ocorridas no planeta. São fronteiras que se desfazem, novas nações que surgem, intenso intercâmbio de informações, encontros, desencontros e confrontos de etnias e de diferentes grupos sociais. A insegurança diante do outro, o medo do desconhecido e a constante sensação de invasão e ameaça decorrente da novidade criam situações em que as respostas tradicionais mais comumente aceitas não apresentam soluções. Atualmente essas situações têm-se agravado de forma intensa, pelas condições climáticas adversas. Esse quadro nos fez refletir sobre o longo processo histórico que orientou as relações entre religião e política e determinou a laicização do Estado. No entanto, a persistência de confrontos religiosos, que ocorrem paralelamente à institucionalização, em diferentes Estados, de expressões como “God save the Queen”, “God Bless America”, “In God we trust” ou até mesmo ―Deus é Brasileiro‖, mostra- nos que a ligação entre religião e Estado está longe de ser resolvida ou banida do universo da chamada modernidade globalizada. Tais pensamentos nos conduziram a uma reflexão sobre o papel significativo da intolerância humana nos 45 acontecimentos contemporâneos e, consequentemente aos escritos do filósofo empirista inglês John Locke. Em sua Carta acerca da tolerância, escrita em 1689, Locke, reconhecidamente cristão, argumenta a favor da separação entre Estado e religião, ao discorrer sobre os deveres dos magistrados e afirmar que ―não cabe nas funções do magistrado punir com leis e reprimir com a espada tudo o que acredita ser um pecado contra Deus‖ (1973, p. 24). Declara com firmeza que não compete ao magistrado civil, portanto autoridade do Estado, o cuidado das almas, porque ―o cuidado da alma de cada homem pertence a ele próprio, tem-se de deixar a ele próprio‖ (1973, p. 18). O que provoca reflexão acerca das ideias de Locke não é tanto a sua defesa de um estado laico, uma vez que o filósofo é considerado um dos precursores do liberalismo e ferrenho opositor do absolutismo e do chamado ―poder divino‖ dos reis, responsável direto pelas mais absurdas e tiranas atitudes. Importa-nos, sobretudo, o fato de que o filósofo não só esclarece as funções do Estado e da religião, mas, principalmente, apresenta alguns princípios para a preservação da tolerância. É importante lembrar que na época de Locke a Inglaterra estava lidando constantemente com embates entre católicos e protestantes e uma permanente perseguição aos judeus e maometanos. A estes, não era permitida a construção de templos, devia-se prestar seus cultos apenas em casa. É preciso também acrescentar, a título de ilustração, que o aspecto religioso era tão determinante naquele período da história inglesa que o próprio Locke, 46 apesar de seu liberalismo incipiente, não estendia a doutrina da tolerância aos ateus. [...] os que negam a existência de Deus não devem ser de modo algum tolerados. As promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, para um ateu não podem ter segurança ou santidade, pois a supressão de Deus, ainda que apenas em pensamento, dissolve tudo. Além disso, uma pessoa que solapa e destrói por seu ateísmo toda religião não pode, baseada na religião, reivindicar para si mesma o privilégio de tolerância. (1973, p. 30). Locke, inicialmente, elucida o papel da verdadeira religião. Afirma que ela não foi instituída para manutenção da pompa exterior, do domínio eclesiástico ou do exercício da força, mas, diz ele, ―para regular a vida dos homens segundo a virtude e a piedade‖ (1973, p. 9); e que não poderá jamais ser denominado cristão aquele que não combate seus próprios vícios, orgulho e luxúria. O cristão deve buscar a santidade da vida, pureza de conduta, benignidade e brandura do espírito. Para Locke, ninguém pode forçar outra pessoa a se tornar cristã se não tiver realmente optado pelo cristianismo em seu próprio coração; o verdadeiro Evangelho ensina a agir não pela força, mas pelo amor. O filósofo esclarece que não cabe ao magistrado civil e a nenhum outro homem o poder sobre as almas. ‖Porque não parece‖, diz ele, que ―Deus jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre outro para induzir outros homens a aceitar sua religião‖ (1973, p. 11). Segundo Locke, o poder dos magistrados consiste em coerção, e o das religiões, na persuasão interior do espírito. Em seus argumentos, afirma que a tolerância deveria ser uma decorrência natural dos ensinamentos do Evangelho. E, em tais assuntos, o Estado não poderia jamais se imiscuir, por se tratarem de temas alheios à sua área de atuação e, certamente, privados. Enfatiza claramente o aspecto pacífico da religião cristã e 47 propõe que os magistrados busquem outras causas para os males existentes, em vez de que simplesmente atribuí-los à religião. Afirma Locke: Não é a diversidade de opiniões (o que não pode ser evitado), mas a recusa de tolerância para com os que tem opinião diversa, o que se poderia admitir, que deu origem à maioria das disputas e guerras que se tem manifestado no mundo cristão por causa da religião. (LOCKE, 1973, p. 33). Locke critica de forma contundente a avareza e o desejo de domínio das autoridades religiosas, que incitam a comunidade contra os não ortodoxos e se aliam aos magistrados, que, segundo o filósofo, em nome de sua própria ambição e em oposição às Leis do Evangelho, despojam-nos de suas casas e os destroem. O filósofo insiste em que os magistrados deveriam punir e suprimir aqueles que são assassinos, ladrões, caluniadores, sediciosos, independentemente da igreja a que pertençam, pois sua função é defender os direitos e bens civis da comunidade. E as autoridades eclesiásticas, que se abstenham da violência, pilhagem e de todos os modos de perseguição, pois o seu dever é praticar a caridade, a humanidade e a tolerância. Para Locke, os bens civis são a vida, a liberdade, a saúde física, a libertação da dor e a posse de coisas externas, como terras, dinheiro, móveis etc. Cabe, portanto, ao magistrado determinar leis uniformes que assegurem ao povo em geral e ao cidadão em particular a posse justa e a preservação desses bens da vida. O cuidado das almas cabe à Igreja, ―sociedade de membros que se unem voluntariamente para esse fim‖ (LOCKE, 1973, p. 13). Uma Igreja, como diz Locke, também tem suas leis, o que devem ater-se somente aos assuntos relacionados ao culto público de Deus. Suas armas deveriam ser: exortações, admoestações e conselhos; e, aos teimosos e obstinados, a pena máxima: a exclusão daquela 48 determinada igreja. A excomunhão não poderia jamais despojar o indivíduo de seus bens civis ou de suas posses, que deveriam estar sob a proteção do magistrado, pois se referem à vida do cidadão. Segundo Locke, o que torna as pessoas indignadas, agressivas e violentas é a opressão e a injustiça de que são vítimas em nome da religião. Em defesa da necessidade de separação entre religião e Estado, o filósofo afirma: ―Falemos francamente. O magistrado teme as outras igrejas e não a sua, porque favorece e trata bem de sua igreja, sendo severo e cruel com as outras‖ (1973, p. 30). Locke defende a ideia de que uma religião só é útil e verdadeira se a pessoa acredita nela como verdadeira; de nada vale, portanto, a imposição de autoridades que tentam obrigar os súditos a pertencerem a determinada igreja, com o pretexto de salvar-lhes a alma. Para o filósofo, os indivíduos vão à igreja por sua livre vontade, por acreditarem nela, não por serem forçados a isso. Deve-se, diz Locke, ―deixá-los à sua própria consciência. Libertemos, assim, todos os homens de se dominarem mutuamente em assuntos religiosos‖ (1973, p. 20). Para concluir esta reflexão, observa-se que, ao longo de toda sua Carta acerca da tolerância, Locke insiste em dois aspectos fundamentais. Primeiro: a religião é um assunto privado e, como tal, deve ser respeitada a escolha individual, sem nenhum tipo de interferência das autoridades civis ou eclesiásticas. Segundo: a tolerância é a única forma de evitar violência e dominação de um grupo sobre outro; é, portanto, um princípio essencial a ser ensinado por todas as igrejas e diferentes religiões. 49 O que adquire um caráter surpreendente na leitura da Carta acerca da tolerância é a constatação de que esse tema, cujo resgate é tão absolutamente necessário nos dias atuais, já tenha sido motivo de muitas especulações filosóficas e sociais em épocas distantes, quando o pluralismo cultural era menor e bem menos ameaçador. O apelo à tolerância como uma virtude a ser ensinada e cultivada representa, no mundo contemporâneo, não apenas uma questão urgente a ser colocada na pauta das grandes negociações internacionais, mas, talvez, a única saída possível para a sobrevivência de muitos grupos humanos. Portanto, individualidade religiosa e tolerância deveriam ocupar o mesmo espaço na estrutura da consciência humana. Juntas e entrelaçadas – como o próprio sagrado. REFERÊNCIA LOCKE, J. Carta acerca da tolerância. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção Os Pensadores – vol. XVIII 50 A ORDEM DO HOSPITAL NO NOROESTE DA PENÍNSULA IBÉRICA DURANTE A IDADE MÉDIA Dirceu Marchini Neto15 Resumo: A Ordem Militar e Religiosa do Hospital esteve presente na Península Ibérica desde os primeiros anos do século XII e atuou de forma muito significativa na região da Galiza, ao longo dos caminhos de Santiago. No norte de Portugal desempenhou importante papel na organização do território, além da assistência aos peregrinos. A existência dos Hospitalários no noroeste ibérico teve como sustentáculo as doações e privilégios régios e pontifícios dos reis de Castela, Leão e Portugal e dos Sumos Pontífices. A Ordem do Hospital foi fundada na transição do século XI para o XII, como um fenômeno ligado ao Movimento de Cruzada. As ordens militares eram instituições religiosas da Igreja cristã latina e suas funções primordiais eram a defesa e a expansão da Cristandade ocidental frente ao Islã e aos demais povos infiéis, pagãos ou heréticos. Além destes objetivos, a Ordem de São João de Jerusalém ou do Hospital cumpriu um programa assistencial, que lhe conferiu uma forte originalidade. Logo após serem fundadas, algumas ordens militares – aqui se inclui a Ordem dos Hospitalários – adquiriram forte poder social, político e econômico. A Ordem de São João de Jerusalém, como também era conhecida a Ordem do Hospital, nasceu em Jerusalém como uma ordem religiosa hospitalária, que estava dedicada ao cuidado dos pobres, enfermos e peregrinos. No ano 1113, obteve a aprovação do Papa, passando a ser dependente diretamente do Sumo Pontífice, e ainda no século XII transformou-se em uma ordem militar devido às urgentes necessidades defensivas das terras cristãs do Oriente Médio. Entretanto, apesar de sua militarização, a Ordem nunca perdeu sua inicial característica assistencial. Esta instituição religiosa se converteu em um dos grandes poderes atuantes nos reinos e principados do Mediterrâneo oriental, contribuindo ativamente na defesa frente aos muçulmanos. Em poucos anos, os Hospitalários se expandiram por todo o Ocidente europeu, passando a ser uma ordem militar supranacional. Seu 15 O autor é mestre em História Medieval e do Renascimento pela Universidade do Porto e membro do Grupo de Investigação “Estudos Medievais e do Renascimento” do CEPESE (Portugal) [email protected] - . Este artigo foi escrito para ser apresentado durante o IV Congresso Internacional em Ciências da Religião, simpósio temático “Religião, Violência, Etnicidade e Globalização” (PUC-GO, 2010). 51 oficial hierarquicamente superior era o grão-mestre, que era eleito para um mandato vitalício. O poder deste grão-mestre era equilibrado pela existência do órgão colegiado chamado Capítulo Geral, que se reunia com frequência. Os membros masculinos da Ordem se dividiam em cavaleiros, capelães e sargentos/serventes de armas. Também havia membros femininos na instituição, que viviam em conventos próprios. Na Península Ibérica, as ordens militares também tiveram uma significativa presença durante a Idade Média. O processo de reconquista territorial movido pelos reinos ibéricos favoreceu muito o desenvolvimento das ordens militares nessa região. As possessões hospitalárias da Europa tinham como objetivo prioritário proporcionar recursos materiais e humanos necessários para o sustento do convento central da Ordem no Mediterrâneo oriental, que era seu centro administrativo e principal local de operações. Esse patrimônio da Ordem do Hospital se formou a partir de doações e se agrupava em Línguas, Priorados e Comendas (ou Bailias). A Ordem de São João de Jerusalém, como também era chamada, baseavase na espiritualidade de Santo Agostinho, embora tivesse regra própria, e dependia diretamente da Santa Sé. Seus freires lutavam pela defesa da fé cristã e participavam na concretização do ideal de Cruzada. Desde o momento em que foi criada, a Ordem dos Hospitalários se expandiu por toda a Europa. Contudo, os objetivos principais da milícia estavam no Mar Mediterrâneo oriental. As sedes administrativas da Ordem, no decorrer dos anos foram: Jerusalém, Acre, Chipre, Rodes e Malta16 (BARQUERO GOÑI, 2003, p. 245). Territorialmente, as possessões ibéricas do Hospital se dividiam, desde o século XII, em quatro priorados: Portugal, Castela e Leão, Navarra e Aragão (este último, também conhecido como Castelania de Amposta). No século XIV, surgiu ainda um quinto priorado, o da Catalunha, desmembrado da Castelania de Amposta. Compunham os priorados algumas unidades administrativas de base, que eram as comendas ou bailias, à frente das quais havia um comendador. A origem da maioria das comendas da Galiza e de Portugal remonta aos séculos XII e XIII. 16 Presentemente, século XXI, a Ordem de Malta (denominação atual) encontra-se sediada em Roma. 52 Na Península Ibérica, a Ordem de São João se implantou no mesmo século de sua fundação na Terra Santa, quando ainda nem era uma ordem militar. Tanto na Galiza como em Portugal, assim como nos demais reinos ibéricos, os Hospitalários foram bem acolhidos e receberam inúmeras doações e privilégios. Para retribuírem, os Hospitalários prestaram serviços assistenciais e de caráter militar (este caso aplica-se com maior ênfase a Portugal), atuando, em várias ocasiões, como um instrumento do poder real. No final da Idade Média, as doações diminuíram consideravelmente, mas os reis ibéricos preservaram e protegeram os privilégios e o patrimônio da Ordem (BARQUERO GOÑI, 2003, p. 246). A instalação dos Hospitalários na Galiza contou, desde o começo, com o apoio explícito da monarquia castelhano-leonesa por razões políticas e devocionais. O principal interesse de monarcas como Afonso VII (no que se refere ao caso galego e, provavelmente, também ao de Portugal) foi certamente a instalação da Ordem do Hospital nas proximidades das rotas de peregrinação a Santiago de Compostela (MARCHINI NETO, 2010, p. 32). A intenção era que os Hospitalários assistissem e prestassem atenção hospitalário-espiritual e proteção aos peregrinos que transitavam pelos caminhos de Santiago (GONZÁLEZ-PAZ, 2009, p. 13). Depois de consolidado o patrimônio nos séculos XIV e XV, a Ordem do Hospital, durante os séculos XVI a XIX, se concentrou na manutenção de seus bens, utilizando para isso diversos recursos, como por exemplo, demarcações, melhoramentos, visitas, concessões de hábitos a pessoas influentes, dentre outros. Apesar da escassez de fontes documentais acerca das comendas hospitalárias galegas durante a Baixa Idade Média, podemos concluir que o patrimônio acumulado durante os séculos finais do medievo se configurou em quatro grandes comendas, Quiroga, Beade, Portomarín e Pazos de Arenteiro; o patrimônio hospitalário, assim como nos séculos XII e XIII, continuou fragmentado, o que coincide com a disparidade de intitulações por parte dos comendadores, e situado principalmente nas rotas de peregrinação; a comenda de Pazos de Arenteiro se configurou através dos bens e igrejas procedentes do patrimônio da Ordem do Santo Sepulcro, declarada extinta em 1489 e desaparecida por completo na Galiza por essa altura (ARCAZ POZO, 2000, pp. 177-188). Por fim, não podemos deixar de mencionar a importância econômica destas comendas, que no final da Idade Média estavam muito relacionadas com a questão da produção vinícola. 53 No século XIV, a Ordem do Hospital recebeu seu primeiro legado patrimonial depois da extinção da Ordem do Templo. O Papa João XXII, através da bula de 14 de março de 1317, decretou que os bens templários nos reinos de Castela e Leão passassem à Ordem dos Hospitalários. Em novembro de 1319, Afonso XI outorgou um privilégio (GARCÍA TATO, 2004, p. 202, doc. 111), o qual continha a bula papal, e através do qual adjudicava todos os bens que os Templários possuíam nos reinos de Castela e Leão à Ordem de São João. Na Galiza, o Hospital recebeu as principais comendas da Ordem do Templo, como por exemplo, Faro (em Corunha, a maior de todas e que posteriormente foi incorporada à coroa), San Feliz de Heremo e Canaval-Neira, ambas em Lugo. Mais tarde, San Feliz foi incorporada, provavelmente, na comenda de Quiroga, e Neira na comenda de Portomarín. As comendas templárias de Amoeiro e Coya foram integradas no patrimônio laico e eclesiástico respectivamente. A Ordem do Hospital ficou com as pequenas igrejas de ambas as comendas (ARCAZ POZO, 1995, p. 264). Depois do considerável aumento patrimonial dos Hospitalários galegos durante o século XIV, e após a recepção dos bens Templários no século XV, a Ordem incorporou grande parte dos bens da Ordem do Santo Sepulcro. Em 1489, o Papa Inocêncio VIII uniu à Ordem do Hospital às ordens do Santo Sepulcro e de São Lázaro, assim como ―la casa de Dios‖ de Monte Morillón, com o objetivo de aumentar os recursos hospitalários na luta contra os infiéis. Essa medida causou resistências em vários reinos, inclusive nos Hispânicos. Entretanto, a decisão foi ratificada pelo Papa Júlio II, em 1505 (BARQUERO GOÑI, 2003, p. 68). Da mesma forma que ocorreu com o caso dos bens templários, era o pontífice que apoiava a ampliação do patrimônio hospitalário, enquanto os monarcas se opunham a isso, o que se compreende, pois a um aumento patrimonial passaria a corresponder um aumento de poder e de prestígio que dificultariam o controle régio sobre a instituição. Contudo, diante dos registros documentais, parece que a Ordem do Hospital no noroeste ibérico recebeu mais bens da Ordem do Templo do que da Ordem do Santo Sepulcro (ARCAZ POZO, 2000, pp. 177-188). Conclusões Acerca do desenvolvimento da Ordem do Hospital na Galiza durante os séculos XII e XIII, podemos extrair diversas conclusões. A presença dos 54 Hospitalários, desde o início do século XII, foi determinada pela capacidade de prestar serviço e assistência aos peregrinos que se dirigiam a Santiago de Compostela, tanto pelo Caminho Francês, como por rotas secundárias procedentes de outras regiões, como é o caso de Portugal. Quanto ao patrimônio, podemos afirmar que a maior parte dos bens imóveis da Ordem se foi configurando nestes primeiros séculos mediante frequentes doações, tanto por parte de monarcas (interessados em aumentar e favorecer a peregrinação ao sepulcro de Santiago), como de particulares (doações pro anima), ―que trataban de asegurar el futuro espiritual de sus benefactores, haciendose enterrar en los cemeterios de sus iglesias‖ (ARCAZ POZO, 1995, p. 264). As aquisições por compras e permutas foram outras fórmulas que contribuíram igualmente para o engrandecimento do patrimônio do Hospital, ainda que em menor medida. Além disso, a Ordem foi recompensada na Galiza, pois recebeu a maior parte dos bens da Ordem do Templo depois que esta foi dissolvida definitivamente (começo do século XIV), o que também contribuiu para aumentar o patrimônio hospitalário durante a referida centúria. Vale ainda ressaltar, os bens da Ordem do Hospital, durante esses primeiros dois séculos, apresentavam um patrimônio territorial disperso, sem grande unidade estrutural e predominantemente situado ao longo das rotas de peregrinação. Os Hospitalários desenvolveram essencialmente quatro tipos de atividades na Galiza e em Portugal durante a Idade Média. No reino português, os freires, além de praticarem atividades de assistência e hospitalidade, ainda exerceram funções militares frente à ameaça muçulmana e contra outros monarcas cristãos. Na Galiza, este aspecto só difere na questão da luta contra o Islã, que de fato já havia se encerrado na região (antes mesmo da instalação dos Hospitalários), portanto, os freires galegos eram quase que unicamente voltados à prática de acolhimento e tratamento dos peregrinos e preparados para batalhas contra reinos vizinhos. Sabemos também que a Ordem do Hospital atuou em vários repovoamentos e reorganizações territoriais e que tinha como um dos principais deveres o envio de recursos e reforços ao convento central da Ordem no Mediterrâneo oriental. Estes dois últimos objetivos seriam muito exigentes para a instituição, tanto mais que por vezes foram coincidentes. 55 REFERÊNCIAS FONTE DOCUMENTAL IMPRESSA GARCÍA TATO, Isidro. Las Encomiendas Gallegas de la Orden Militar de San Juan de Jerusalén. Estudio y Edición Documental: época medieval. Tomo I. Santiago de Compostela: Consejo Superior de Investigaciones Científicas. Xunta de Galícia. Instituto de Estudios Gallegos Padre Sarmiento, 2004. ISBN 8400082516. FONTES BIBLIOGRÁFICAS ARCAZ POZO, Adrián. Establecimiento y Transmisión de las Posesiones de la Orden del Santo Sepulcro en Galicia (siglos XII-XV). III Jornadas de Estudio. La Orden del Santo Sepulcro. Zaragoza, 2000. [s/ISBN]. pp. 177-188. _____. Implantación y desarrollo territorial de la Orden Militar de San Juan de Jerusalén en Galicia (siglos XII-XV). Revista En La España Medieval. [on line]. Número 18, 1995. [citado em 2009-07-03], pp.257-274. Disponível em: <http://revistas.ucm.es/ghi/02143038/articulos/ELEM9595110257A.PDF>. ISSN 0214-3038. BARQUERO GOÑI, Carlos. Los Caballeros Hospitalarios Durante la Edad Media en España (Siglos XII-XV). Colección Piedras Angulares. Burgos: Editorial La Olmeda, 2003. ISBN 84-89915-19-9. GONZÁLEZ-PAZ, Carlos Andrés. La Orden de San Juan de Jerusalén y las Peregrinaciones en la Galicia Medieval (Siglos XII-XIII). Revista População e Sociedade. Porto: Edições Afrontamento e CEPESE. ISSN 0873-1861. Nº 17 (2009), pp. 9-44. MARCHINI NETO, Dirceu. A Ordem do Hospital no Noroeste da Península Ibérica: doações e privilégios (séculos XII-XV). Dissertação de Mestrado em História Medieval e do Renascimento – Universidade do Porto, Porto, 2010. 56 GT 3: PROTESTANTISMO E GLOBALIZAÇÃO Coordenação: Dr. Eduardo Gusmão de Quadros Resumo: As relações entre protestantismo e capitalismo fazem parte dos estudos clássicos sobre os movimentos religiosos herdeiros da Reforma Protestante. Contudo, faltam ainda análises acerca das possíveis imbricações entre as práticas do sistema econômico atual e a expansão do protestantismo na América Latina. Sem causalidades lineares, a experiência protestante parece correlacionada com a modernização, com a expansão dos mercados, com a urbanização rápida, com a cultura midiática cada vez mais hegemônica no continente. Portanto, esse grupo de trabalho é um espaço para reflexão onde pesquisadores e pesquisadoras troquem idéias e informações sobre o mundo evangélico, sua cultura, suas manifestações de fé, suas práticas sociais, colocando como pano de fundo os processos da globalização. Palavras-chave: Protestantismo, globalização, crenças e mercado. 57 GT 4: SANTIDADE, PROFECIA E SABEDORIA Coordenação : Dr. Valmor da Silva Resumo: A mesa propõe a discussão sobre santos/as, profetas e sábios/as, no âmbito das religiões e de seus textos sagrados. Os temas de santidade, profecia e sabedoria, embora partindo de situações culturais específicas, perpassam as diversas religiões e culturas, na ótica da globalização. Perpassam igualmente as diversas épocas históricas, para expressar a tradição, a transformação e a modernidade. As personagens trazidas para a discussão podem ilustrar aspectos como carisma, liderança, martírio e messianismo. Podem também apresentar-se textos sagrados que ilustrem a temática proposta, além de temas específicos sobre determinados enfoques. Palavras-chave: santidade, profecia, sabedoria 58 O DIA DO SENHOR EM SOFONIAS Leonardo Agostini Fernandes17 Resumo O mérito de Sofonias, ao utilizar a temática do yôm YHWH, foi saber mostrar YHWH, pela dramaticidade da sua intervenção, insatisfeito com a ação das lideranças do seu povo no âmbito das relações nacionais e internacionais. Com isso, o amor e a ira no juízo não são ações excludentes, mas se complementam, quando a justiça divina visa restabelecer a ordem ferida com o pecado. YHWH julga salvando e salva julgando, de modo que num ato condenatório reside cabalmente um efeito satisfatório e salvífico. Palavras-chave: yôm YHWH, Juízo, Pecado, Salvação, Teofania Introdução Na profecia de Joel encontra-se a mais completa antologia sobre o tema do yôm YHWH, mencionado, explicitamente, quatro vezes: Jl 1,15; 2,1.11; 3,4; 4,14. Todavia, em Joel, não se encontram os elementos que fundamentem a aplicação do direito de YHWH entrar em litígio contra Judá-Jerusalém e com os seus habitantes. Ao contrário, existe uma intenção lógica e contextual muito clara: mostrar YHWH como a única e justa solução para todos os males pelos quais passaram ou passam o povo eleito e a sua cidade santa18. O ápice destes males se revela na dispersão e no comércio infanto-juvenil praticados pelas nações estrangeiras (cf. Jl 4,1-3.6.8). YHWH se demonstra indignado, se dispõe a litigar com os malvados e aplicar-lhes uma justa sanção, porque o derramamento de sangue inocente não ficará impune (cf. Jl 4,21). O anúncio do yôm insistência de objetivos postos no escrito de Joel19. Em Sofonias não há uma vigente situação de carestia material, comprometendo a subsistência dos homens e dos animais, mas uma vigente situação de decadência moral e religiosa, que 17 Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, docente de Antigo Testamento na PUC-Rio e diretor do Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro. 17 A perspectiva positiva do anúncio de Jl 2,1-11, a favor de Judá-Jerusalém, representa o cerne da novidade da Tese de Doutorado que defendemos em 25 de janeiro de 2008 na PUG-Roma. 17 A expressão yôm YHWH, além de Joel e Sofonias, ocorre em Is 13,6.9; Ez 13,5; Am 5,18.20; Ab 1,15; Ml 3,23. 17 Segundo D. L. Christensen («Zephaniah 2:4-15», 682), à diferença de Amós, que visa a punição histórica de Israel e das nações circunvizinhas, o YHWH em Sofonias mostra a vingança de YHWH sobre a iniqüidade, a favor da restauração futura dos que permaneceram na justiça, representando o seu verdadeiro povo. 19 A expressão yôm YHWH, além de Joel e Sofonias, ocorre em Is 13,6.9; Ez 13,5; Am 5,18.20; Ab 1,15; Ml 3,23. 59 compromete as relações no sentido vertical, para com Deus, e no sentido horizontal, para com o próximo. Há pobreza (cf. Sf 2,3), mas esta será uma condição e uma ocasião para ser recompensada (cf. Sf 3,12-13)20. Além disso, em Joel, o sacerdote é essencial para se obter a reversão do quadro de penúria, já em Sofonias, ele é acusado de profanador do sagrado e transgressor da Torah (Sf 3,4b; cf. Ml 2,1-9)21. Sofonias tem consciência do que move a ação divina (cf. Sf 1,2-6), que revela, numa atmosfera cultual, os vários tipos de pecados que comprometem a futura sorte do seu povo (cf. Sf 1,7-13; 3,1-8). O yôm YHWH sofoniano é apresentado como um dia particular, no qual YHWH, em majestosa teofania, realizará a condenação da perversidade num ajuste de contas. Evidencia-se, com isso, a justiça aplicada aos homens como zelo divino. YHWH não admite rival e não deixará ninguém impune no dia da sua visita, que purificará e eliminará o sincretismo da cidade de Jerusalém. A violência gerada pela idolatria é combatida pela ira divina, como um fogo forte e intenso, que se alastra velozmente, para eliminar os responsáveis pelo mal (cf. Sf 1,18)22. 1. Contexto do yôm Considerando a natureza dos oráculos, reconhecemos uma disposição que se alterna na obra sofoniana: palavra de condenação contra Judá-Jerusalém (cf. Sf 1,2–2,3), palavra de condenação contra as nações (cf. Sf 2,4–15), nova fala contra Jerusalém causada pela indiferença dos líderes (cf. Sf 3,1-5), que relê a ação contra as nações em tom de lamentação (cf. Sf 3,6-8), e palavra de salvação dirigida aos pobres de Jerusalém (cf. Sf 3,9-20). A expressão yôm numa cadeia construta em Sf 2,3: ―no dia da ira de YHWH‖. Todavia, a temática, além de ser um forte e incisivo anúncio de juízo sobre uma realidade carregada de pecado, ela é um elemento contundente que confere certa unidade estrutural para o conjunto do escrito sofoniano23. O influxo da temática do yôm YHWH pode ser visto como o efeito positivo da ação divina no desfecho que o escrito alcançará, porque a expressão, como tal, não reaparecerá no livro de Sofonias, caso não se considere, igualmente, a expressão 20 Segundo D. L. Christensen («Zephaniah 2:4-15», 682), à diferença de Amós, que visa a punição histórica de Israel e das nações circunvizinhas, o YHWH em Sofonias mostra a vingança de YHWH sobre a iniqüidade, a favor da restauração futura dos que permaneceram na justiça, representando o seu verdadeiro povo. 21 A referência aos sacerdotes em Sf 1,4b está inserida no contexto que acusa um baalismo, pois ao lado da alusão implícita aos sacerdotes, que oficiam em nome de YHWH no templo, está a denúncia de um sincretismo religioso (cf. F. MARTIN, «Le Livre de Sophonie», 8). A figura do sacerdote é pertinente na profecia de Sofonias e de Malaquias (cf. L. L. GRABBE, «A Priest Is Without Honor», 82.86). No caso particular de Ml 2,1-9 se trata de um ultimato dirigido aos sacerdotes, pois elessão acusados, também no contexto de um rîb, de desonrarem a YHWH (cf. J. M. O’BRIEN, Priest and Levite in Malachi, 66). 22 Cf. P. R. HOUSE, «Endings as New Beginnings», 332-333; M. S. MOORE, «Yahweh’s Day», 206; A. SPREAFICO, La Voce di Dio, 214-215; M. DUGGAN, The Consuming Fire, 278-280. 23 Cf. J. D. NOGALSKI, Literary Precursors, 171; J. A. MOTYER, «Zephaniah», 3902-3904; P. R. HOUSE, «Endings as New Beginnings», 332. 60 temporal bayyôm hahu’ como um eco dessa temática (cf. Sf 1,9.10.15; 3,11.16), devido ao reforçativo usado em Sf 1,15. Em Sf 1,2-6, YHWH revela ao profeta o seu descontentamento e o seu plano de destruição. A razão que o move encontra-se no resíduo do culto idolátrico que ainda produz muitos males em Judá-Jerusalém, gerando, principalmente, a injustiça praticada aos menos favorecidos. A purificação anunciada visa eliminar do local o sincretismo, que faz tropeçar, no erro, as lideranças e os mais abastados dentre o povo. Este contexto inicial confirmaria o ciúme como zelo de YHWH pelo seu povo, pela cidade de Jerusalém e pelo dom que lhes fez da sua Lei. As informações presentes em Sf 1,2-6 funcionam e servem de introdução ao inteiro escrito, como um prelúdio que estará na base das acusações que se seguirão, mas, principalmente, como revelação divina sobre o ambiente e as motivações particulares que deverão impulsionar o profeta Sofonias a atuar com força e tenaz decisão no meio do seu povo. 2. O rîb sofoniano Para os seus interlocutores, Sofonias anuncia o descontentamento divino. YHWH instaura e põe em movimento, no meio deles, a execução da sua justiça nos moldes de uma queixa legal, como acontece numa disputa ou controvérsia, isto é, um rîb. A característica desta controvérsia corresponde a uma polêmica sócio-religiosa24. É razoável essa perspectiva, não obstante a raiz ryb esteja ausente na profecia de Sofonias, porque YHWH, além de gozar do pleno direito de entrar em litígio com os habitantes da sua terra, demonstra-se pessoalmente interessado em eliminar definitivamente de Judá-Jerusalém a fonte das injustiças sociais e religiosas (cf. Sf 3,5.8). O contexto, então, é processual e a sentença é emitida como certa de ser executada já no início da profecia (cf. Sf 1,2-6). YHWH, em particular, litiga com as lideranças, acusadas de serem as principais culpadas dos males denunciados. Elas se deixaram corromper, assumindo os costumes das nações estrangeiras. Por isso, vê-se a sólida razão para um castigo ser proclamado e confirmado pelo sentido global da acusação presente em Sf 1,17c: ―porque pecaram contra o Senhor‖25. Esta probabilidade encontra fundamento no sentido das denúncias e no conteúdo encontrado em Sf 1,7–2,3, no qual transcorre um desenvolvimento judicial motivado 24 No estudo da profecia pré-exílica é comum encontrar controvérsias ou processos legais () como um gênero literário dos livros proféticos (cf. K. NIELSEN, Yahweh as Prosecutor and Judge, 74-83). 25 A frase explicativa “porque pecaram contra YHWH” é uma síntese necessária e condizente com todos os males denunciados no conjunto da profecia e que ajudam a perceber a índole processual que se instaura como controvérsia entre YHWH e os acusados. A partícula kî é bem aceita como elemento que introduz uma questão de litígio (cf. Jz 6,32; Jr 2,9-10; Os 2,4. São exemplos citados por P. BOVATI, Ristabilire la giustizia, 50). 61 26 . Este anúncio ocupa o centro da questão e testemunha a favor da aplicação desta prática litigiosa 27, que se conclui com uma possível perspectiva de solução: a) convocação: chamado de atenção exigida aos ouvintes (1,7); b) acusação: a ação de YHWH revela quem são os criminosos e imputa-lhes a culpa por seus crimes externos (1,8-9) e internos (1,12); a reação dos delatados é fruto da ação divina que perscruta, acarretando em consequências no presente (1,10-11) e no futuro (1,12); c) anúncio de condenação (1,14-18); d) proposta que chama à conversão ou preserva inocentes (2,1-3); e) defesa dos acusados (3,1-8?). O primeiro anúncio do yôm soa, no contexto do versículo, como ordem explícita e acontece no âmbito cultual, devido ao específico termo «sacrifício» (cf. Sf 1,8). Normalmente, a convocação ou chamado de atenção é uma exortação que se expressa mediante um imperativo: «ouvi». Este imperativo não ocorre em Sofonias, mas no seu lugar encontra-se o que se esperaria com este tom verbal: uma atitude digna, respeitosa e de pronta atenção, isto é, quem ordena, «ouvi», espera, no mínimo, que o interpelado faça silêncio28. Sofonias, convocando ao silêncio, faz da proximidade do yôm uma 29 exigência moral para os destinatários . Ela implica numa condizente atitude pessoal e comunitária, isto é, numa postura de abertura, para que se ouça atentamente, na presença do divino soberano (teofania?), a voz do mensageiro; se conheça o conteúdo da mensagem e as implicações que dela derivam e a ela estão associadas30. 26 Sf 1,7-13.14-18; 2,1-3 soam como as partes do processo (convocação, acusação, confrontação, condenação, proposta de conversão; cf. P. BOVATI, Ristabilire la giustizia, 21-26). Sobre a primeira perícope, cf. F. MARTIN, «Le Livre de Sophonie», 12-16; S. D. SNYMAN, «Violence and deceit in Zephaniah 1:9», 89-96. 27 A identificação de Sf 1,7–2,3 como um rîb acrescentaria mais um exemplo, pelo seu conteúdo, aos já identificados por J. Harvey (Le plaidoyer prophétique, 58-81). Este autor aponta, como fórmula literária completa contendo todos os elementos, os textos de Is 1,2-3.10-20; Jr 2,4-13.29; Mq 6,1-8; Dt 32,1-25; Sl 50 (réquisitoires complets) e de modo incompleto em Is 42,18-25; 48,12-16a; 57,3-13; 58,1-14; 66,1-4; Jr 6,16-21; Ml 1,6–2,9 (réquisitoires incomplets), aos quais ele acrescenta: Jz 2,1-5; 1Sm 2,27-36; 2Sm 12,7-12; 1Rs 14,711; 21,17-24; 2Cr 12,5-8; 15,1-15. 28 Por exemplo, Am 3,1; 4,1; 5,1; 8,4. Em Sf 2,8 aparece shama„ittî na fala divina e shami„â em Sf 3,2 está em referência à cidade qualificada de rebelde, contaminada e prepotente. Esse seria o provável motivo que levou os estudiosos a não considerarem Sf 1,7–2,3 como possível rîb. Em Sf 1,14c qôl está relacionado com has e é um chamado de atenção. 29 Em Amós faz-se silêncio por reverência ao nome divino (cf. Am 6,10 e 8,3; Jl 3,1-5 apresentará uma razão oposta, que fundamentará a sua real possibilidade). Para Habacuc, a presença de YHWH é o argumento para que se faça um silêncio reverencial (cf. Hab 2,20). Em Zacarias, o silêncio diante de YHWH acontece como fruto da bênção universal, pois a salvação centralizada será irradiada a partir da Jerusalém restaurada em sua eleição (cf. Zc 2,17). Fora do Dodekapropheton ocorre somente em Jz 3,19. 30 Segundo M. E. Széles (Wrath and Mercy, 80), a interjeição “silêncio” acontecia em rituais pagãos, servia para anunciar a presença da divindade e lembrar aos participantes o eminente respeito reverencial que se exige diante da sua solene aparição. Igualmente, cf. D. BARSOTTI, Meditazione sul Libro, 55; D. W. BAKER, Nahum, 94; W. C. KAISER, Jr, Micha, 218; A. G. KING, «The Day of the Lord», 18; S. D. SNYMAN, «Violence and deceit in Zephaniah 1:9», 93-94; M. A. SWEENEY, Zephaniah, 78-79. 62 Este parecer condiz com Sf 1,7–2,3, pois transparece uma identificação entre liturgia, punição e purificação, visando obter a sintonia entre a divindade e os participantes no ato cultual. Todavia, para que ela aconteça é preciso que o querer da divindade se torne, também, o critério do agir dos participantes. O conteúdo da mensagem está motivado claramente por uma acusação. Nela são dirigidas duras críticas aos impiedosos compatriotas da geração do profeta, com os quais YHWH entra em litígio. As ações criminosas, quer sejam conhecidas ou desconhecidas, são denunciadas, isto é, nem mesmo o pior erro que reside no íntimo humano ficará escondido (cf. Sf 1,12). Ocorre nesta mensagem um verdadeiro desmascaramento da conduta externa e interna dos acusados. Assim, fica evidenciada a sua transgressão e o que ela acarreta. Os vários delitos previamente enumerados (cf. Sf 1,2-6), corroboram a índole da denúncia e abrem o espaço para que estejamos realmente diante de um rîb, pois o crime existe e pode ser atribuído a um ou mais responsáveis (cf. Sf 1,813). A ação litúrgica sacrifical serve como ambiente punitivo31, pois diante de YHWH, quem pode esconder o seu íntimo? Ele que sonda rins e corações32. Não é insólito que uma punição, imposta por YHWH às nações numa guerra, esteja ligada à imagem figurada de um sacrifício, onde o campo de batalha poderia ser comparado ao altar onde se imola a vítima33. Desse modo, como a vítima é consagrada e consumida no culto sacrifical, a destruição do inimigo, animais ou homens, é total pelo herem (cf. Lv 27,28-29; Jz 7,13)34. Como não se interrompe um culto iniciado, não haveria um momento de apelação durante o processo judicial. A punição acarretará prejuízos comerciais, afetando a fonte de renda e de lucros dos que se enriqueceram com os produtos procurados na região e que agitavam a vida urbana em diferentes setores (cf. Sf 1,10-11). A pior perda recairá sobre a tranquilidade esperada com a construção de uma casa (Sf 1,13; cf. Am 5,19) e o jubilo de quem pensava em se alegrar com o seu vinho. Esse ambiente de acusação, no qual se revela o agir de YHWH e o reagir dos culpados, fundamenta a retomada do anúncio do yôm solenemente em Sf 1,7, mas num estilo e traços mais pormenorizados em Sf 1,1418. Este texto reflete, no conjunto do litígio, a etapa em que o anúncio de castigo é a sanção legal aplicada aos culpados. 31 O yôm hakkippurîm, que acontecia segundo prescrições e normas rituais (cf. Lv 16; 23; 25) transladava a punição pelos pecados ao bode expiatório (cf. B. LANG, «kipper», 313-314). É significativo que Sofonias fale de um (yôm) realizado por YHWH, em que Ele próprio aplicará uma punição aos culpados. 32 Cf. Sl 7,10; 26,2; Jr 11,20; 17,10; 20,12; Ap 2,23. 33 Em Is 34,2-6 o dia do sacrifício é marcado pelo anátema (v. 2.5), onde a batalha contra Edom é vista como um sacrifício oferecido pelo próprio YHWH. Is 34,8 parece explicar o evento como cumprimento do yôm naqam, de modo que o sacrifício está em relação ao castigo efetuado por YHWH; em Jr 46,10 temos um exemplo aplicado ao Egito; em Ez 39,17.19, precedido pelo contexto de condenação aplicado a Gog, YHWH imola um sacrifício a favor do seu povo (cf. B. LANG, «zebah», 531). 34 Cf. D. MERLI, «Le “guerre di sterminio”», 53-68; C. SCHÄFER-LICHTENBERGER, «Bedeutung und Funktion von herem», 270-275. 63 A etapa do anúncio do castigo tem três finalidades específicas: a) ameaçar fortemente os acusados; b) provocar o reconhecimento do seu procedimento injusto; c) criar um ambiente favorável para que a proposta de conversão encontre uma resposta capaz de ocasionar o fim do litígio, sem que a sentença determinada seja realmente executada (cf. Sf 3,1-5.6-8). Entre a ameaça e a concretização da mesma transcorre um tempo que pode ser dito oportuno. Tempo de esperança, pois é sempre uma atitude disponível de YHWH a favor dos que Ele está acusando, a fim de que se convertam 35. Assim, o próprio YHWH, que revela o pecado, acusa e ameaça os indiciados, lhes concede a possibilidade de alcançar a reversão do quadro funesto, fazendo penitência. A temática do yôm punitiva são justificados os novos oráculos (cf. Sf 2,4–3,20). No contexto da proposta (cf. Sf 2,1-3), reside o desejo salvífico do litigante e divino acusador para que os destinatários indiretos do anúncio encontrem um refúgio, quando a sua ira se manifestar (cf. Sf 2,7.9). YHWH dá espaço à penitência para todos, porque deseja muito mais perdoar que punir, pois por ela se aplaca a sua ira (cf. Jn 3,10; 4,11). O duplo apelo a congregar-se não se distancia do sentido contido no imperativo «ouvi», e embora não se defina o local específico para tal, a solução acontecerá caso a ordem contida em Sf 2,3 for devidamente executada. O apelo profético, julgaríamos, está propondo aos destinatários que se conformem à vontade divina expressa através da Torah (cf. Ml 3,19-24). Por isso, «Buscai YHWH todos os pobres da terra», é uma ordem em contraste com o comportamento dos nobres malvados citados na profecia. Enfatiza-se que, mediante as suas atitudes de justiça e humildade, existirá uma via que traz proteção no dia da ira de YHWH. Os crimes não podem ser atribuídos a todos os habitantes do país, mesmo se no final a punição dos grandes, por não terem se convertido (cf. Sf 3,1-5.6-8), recaia também sobre os menos favorecidos. Disso, só YHWH pode se ocupar como feliz providência (cf. Sf 3,9-20). Segundo Sf 3,1-4, em tom de lamentação, os imputados vorazes, reconhecidos nas palavras de acusação (cf. Sf 1,8-13), nada fizeram para provar ou apresentar algum argumento a favor da sua inocência, pelo contrário continuaram no erro, praticando as suas iniquidades. Assim, embora se descreva a ruína das nações estrangeiras e que isto redundará em sorte para os sobreviventes (cf. Sf 2,4-15), a cidade rebelde, manchada e prepotente não escuta a voz de YHWH na voz do profeta. Nela as lideranças são injustas e continuam a agir deste modo. A única diferença está no fato de que YHWH, no meio dela, é sempre justo (cf. Sf 3,5). Deste contexto, brota a possível e plausível identificação da cidade como sendo Jerusalém, mas não há nomeação explícita da cidade santa. A apresentação do 35 Cf. A. V. HUNTER, Seek the Lord, 269-271. A conversão como proposta divina é algo constante na profecia (cf. Jl 2,12.14; Am 5,14; Jn 3,9). 64 contraste, porém, entre o que fazem as lideranças e o que continua fazendo YHWH, confirma essa identificação. A metáfora da luz que não se apaga deixa entrever que, apesar de tudo, a verdade subsiste diante do erro por meio da presença e da ação insistente do profeta Sofonias (cf. Sf 3,5). Ao lado de uma nova acusação, como se YHWH reabrisse o processo, encontrase a notícia que recupera o sentido descrito em Sf 2,4-15. As nações foram golpeadas duramente por YHWH (cf. Sf 3,6) para servir de exemplo para as lideranças do seu povo, visando a correção dos seus costumes malvados (cf. Sf 3,7). YHWH, numa forma de monólogo, aparece desempenhando o papel de juiz universal, reafirmando que a sua ira, ardendo como o fogo de seu ciúme, consumará toda a terra (cf. Sf 3,8)36. Enfim, permanece a dúvida: Sf 1,14-18 ocorreu ou não? Desta dúvida, que não deixam os interlocutores se perderem no conjunto da profecia sofoniana, abre-se o espaço para aviar a conclusão do escrito em forma e conteúdo positivos (cf. Sf 3,9-20). 3. Anúncio de condenação Em Sf 1,12-13 encontramos um estilo verbal. YHWH é o sujeito da fala. Ele conhece a natureza dos crimes que envolvem as lideranças e as pessoas mais abastadas do seu povo. Esta fala divina cede espaço, porém, para um novo estilo com frases nominais em Sf 1,14-16. Vários substantivos serão dispostos lado a lado e virão utilizados com o objetivo de descrever as notas características e os fortes contornos do yôm YHWH sofoniano. Em Sf 1,17-18, o profeta continua a falar do yôm YHWH. O motivo que leva ao anúncio do castigo é dado (v. 17c) e declara-se a inutilidade de quem pensa ou tenta fazer algo para evitá-lo37. Em Sf 2,1-3 se retoma o estilo verbal, com formas incisivas no imperativo. A mensagem é novamente dirigida a um grupo de pessoas claramente determinado, visando salvar os pobres de Jerusalém. Estes são os que neste dia podem contar com a justiça que praticam e a pobreza que possuem como penhor de esperança salvífica para si mesmos e para a inteira comunidade38. Judá-Jerusalém e os seus habitantes, portanto, representam o local e os destinatários anteriores e posteriores ao solene anúncio do yôm Concebendo Sf 1,14-18 como parte integrante da estrutura que integra o rîb, além de se perceber melhor a sua classificação literária e a sua função fundamental como 36 Jl 4,14 possui afinidade com as notícias contidas em Sf 3,8, que, por sua vez, repete e recupera Sf 1,18. Para o conjunto do anúncio do YHWH, na profecia sofoniana, Sf 3,9-13 possui uma força sintetizadora da ação divina que opera a conversão dos povos (cf. L. LOHFINK, «La “Guerra Santa”», 88). 37 H. Simian-Yofre (Amos, 121) admite que em Sf 1,14-16 existe uma conclusão dramática para a experiência do profeta. Esta levou-o a renovar, com mais intensidade, o anúncio da proximidade do YHWH nos v. 17-18. 38 Cf. C.-A. KELLER, «Sophonie», 194; F. MARTIN, «Le Livre de Sophonie», 19-20; M. WEIGL, Zefanja, 89-90; A. SPREAFICO, Sofonia, 36 ; A. S. KAPELRUD, Joel Studies, 33; P. R. HOUSE, Zephaniah, 79.85. 65 anúncio de condenação, distinto daquilo que o precede e daquilo que a ele se segue39, vislumbra-se o valor temático que lhe foi atribuído dentro do horizonte contextual da profecia sofoniana. Por estes critérios, o início e o fim de Sf 1,14-18 estão bem marcados. O anúncio de castigo, contudo, se articula como um único texto em dois momentos: v. 14-16: anúncio da proximidade do yôm características; v. 17-18: anúncio universal que ameaça com um castigo o ser humano e o seu ambiente vital. plausível para se realizar o yôm Judá-Jerusalém. Conclusão Em Sofonias, o yôm YHWH é uma causa de duplo efeito: castiga os acusados internos e externos, mas opera uma libertação, pois elimina o mal e salva os pobres da terra40. O profeta entrou em cena denunciando fortemente a situação de pecado e a falsa segurança em que viviam os seus ouvintes (Sf 1,12 como Am 5,18-20), revelando que, com a chegada do yôm YHWH, a presença divina neste dia seria portadora de purificação das estruturas sócio-religiosas. As diversas características do yôm YHWH, apresentadas de forma superlativa, descrevem e mostram YHWH como um herói revestido de suas armas e pronto para o combate, porque existe um sólido motivo para tal: ―porque pecaram contra YHWH (cf. Sf 1,17c). Uma vez que YHWH decidiu instaurar um julgamento, os acusados devem silenciar. YHWH punirá os pecadores dentro e fora do seu povo, mostrando-se inflamado de zelo pelo seu nome indevidamente invocado pelos que abusam do poder (cf. Sf 3,9; ao contrário de Jl 3,1-5), justo diante da injustiça que violou a sua santidade e punitivo pelo mal praticado pelas lideranças de Jerusalém (cf. Sf 1,4-6.813; Am 5,18-20 sobre Israel e Ab 15-16 sobre as nações e Edom). YHWH, então, corrigindo os mediadores, corrige, também, os mediados. O terror produzido, com a manifestação divina no yôm YHWH, atesta-o como inimigo. A bênção foi retirada. Este dia, terrível acontecimento bélico, com som de trombeta e clamores de pânico, infunde pavor e causa devastação. Judá-Jerusalém se vê como Jericó: um anátema nas mãos de YHWH. Não resta senão contemplar o fogo da sua ira consumindo a sua maldade. Esta imagem é sugestiva, pois não contradiz o que YHWH havia decidido após o dilúvio: que as águas não 39 P. F. Valério («Dia do Senhor», 48-51) vê em Sf 1,14-18 uma estrutura quiástica no conjunto Sf 1,2-18. Confrontando o anúncio do YHWH, sob o prisma literário e de conteúdo, os vv. 14-18 condensariam o que fora dito nos v. 7-13. Contudo, ele também se projeta como base do que se seguirá na profecia. 40 C.-A. KELLER, «Sophonie», 193; K. L. BARKER – W. BAILEY, Micah, 396-397; Cf. M. DUGGAN, The Consuming Fire, 281-282. 66 transbordariam novamente para causar uma nova e total destruição da maldade humana (cf. Gn 9,11)41. O yôm YHWH é, portanto, em Sofonias, um evento litúrgico, bélico e teofânico, contra o qual, no presente ou no futuro da ação, nada nem ninguém é capaz de oferecer alguma forma de resistência, porque nele está a força e a potência de YHWH. Quando YHWH age como juiz, a sua obra suscita o temor e o tremor das nações, porque não recai somente sobre o seu povo, mas sobre todos os reinos da terra, que são obrigados a reconhecer a sua soberania que domina o tempo com um evento incontrolável pelo ser humano42 . Por isso, as fortificações revelaram-se frágeis e o que era considerado seguro, tombou. No fundo, a linguagem devastadora serviu para mostrar que estavam sendo derrubados o orgulho e a falsa proteção, por serem obras das mãos humanas diante da obra divina: o yôm (cf. Jl 2,9; Ab 3-4). O juízo divino, proferindo neste dia a verdade sobre os homens e o seu mundo, evoca e renova o profundo grau de relação e dependência entre as realidades criadas, mostrando mais uma vez as consequências nefastas das atitudes humanas contrárias ao plano original do Criador (cf. Gn 2,4b-3,19). Por causa do seu pecado, Judá-Jerusalém, que sempre está nas mãos de YHWH, tem seu próprio destino selado e revelado (cf. Sf 1,14-16). O mesmo se vê acontecer no destino das outras nações e de seus territórios, pois o domínio do Senhor é universal (cf. Sf 1,17-18; 2,4-15). tratado como tema de um julgamento iminente, devastador. Ele é como uma causa de duplo efeito, que por sua vez revela as consequências que advém do juízo: uma condenação dos ímpios que produz salvação dos justos ou uma salvação para os justos que comporta uma condenação para os ímpios impenitentes43. O yôm divina do Eterno Criador e Provedor de tudo, atento ao seu projeto inicial. Ao lado disso, evidencia a lógica da ação divina sancionadora, quando YHWH exerce a sua justiça, mostrando-se justo juiz, afim de reprimir o mal, cortando-o pela raiz para obter, como fim último, a correção do culpado, pois Ele não tem prazer e nem quer a morte do pecador (cf. Ez 18,23.32; 33,11). REFERÊNCIAS BAKER, D. W., Nahum, Habakkuk and Zephaniah: An Introduction and Commentary, Leicester 1988. BARKER, K. 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WEIGL, M., Zephanja und das “Israel der Armen“, Klosterneuburg 1994. 69 GT 5: TRANSE E RELIGIOSIDADE PÓSMODERNA Coordenação: Drando. Welthon Rodrigues Cunha Resumo: A presente mesa tem por objetivo promover e incentivar a troca de experiências e estudos sobre o transe/possessão nas religiões, especialmente, naquelas de caráter mediúnico como a Umbanda, Candomblé e Kardecismo. O transe se configura como um dos fenômenos principais e, às vezes central, nas diferentes formas de religiosidade, possibilitando também a sua interpretação sob diferentes saberes científicos como a psicanálise, antropologia, sociologia, e a teologia. Palavras-chave: Transe, possessão, mediunidade e religiões afro-brasileiras. TRANSE E TRANSFIGURAÇÃO ESTÉTICA NO CANDOMBLÉ Paulo Petronilio 44 Resumo: O objetivo desse trabalho é fazer uma abordagem pedagógica e estética do transe no Terreiro de Candomblé, especificamente a Nação keto que é a mais difundida no Brasil. É bem verdade que as chamadas religiões de matrizes africanas carregam toda uma complexidade estética que contorna a comunidade religiosa (egbé) e dinamiza o Terreiro. Não se pode esquecer que tal beleza ―odara‖ se revela no transe uma vez que é no corpo do iniciado que a estética passa a ter visibilidade no espaço sagrado. Desse modo, o corpo se transforma na ―morada‖ dos deuses, revelando-se toda uma multiplicidade de signos emitidos pelo transe e que faz da comunidadeterreiro um encontro entre o Orun e o Ayê. Desse modo, o transe transfigura o homem, fundido o ser no não ser, o alto no baixo, o sagrado no profano, formando uma dobra complexa e faz do terreiro um palco estético Palavras-chave: Transe. Estética. Imaginário Nos Terreiros de Candomblé o sagrado ganha uma dimensão estética. Na parede do ―barracão‖ existem signos sagrados que contornam o universo da crença e da fé. Nas casas de Nações Keto é comum vermos um berrante e um par de chifres na entrada. A cadeira onde o Orixá senta é sagrada. ―Recebeu‖ Axé, força 44 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor da Faculdade Alfredo Nasser- [email protected]. 70 espiritual. No entanto, os objetos sagrados fazem parte do sistema dinâmico e cosmológico do sistema religioso. Os símbolos sagrados exprimem a essência vital, a força da religião. ―A espécie de símbolos (ou complexos de símbolos) que os povos vêem como sagrados varia muito amplamente.‖ (Geertz, 1989: 97). Assim, o Candomblé, dentro de seus contornos antropológicos, é formado por esse complexo simbólico que ganha uma força e um contorno sagrado. No entanto, a força de uma religião está na maneira como ela desenha o símbolo sagrado. O ofá de Odé em forma de arco e flecha desenha o homem que caça e persegue o animal. Assim como o espelho que Oxum usa na mão (abebé) para olhar sua beleza. Para Juana Elbein dos Santos (1986:49), ―A manifestação do sagrado se expressa por uma simbologia formal de conteúdo estético‖. Desse modo, o sagrado tem uma estreita relação com a estética, pois cada objeto, sendo pertence do Orixá ou não, passa a ter um caráter sagrado. O corpo passa a ser sagrado na medida em que se passa pelos rituais de iniciação e, a partir daí, o iniciado é submetido ao transe ou à possessão. Assim, complementa Elbein do Santos (1986:37), ―os objetos que reúnem as condições estéticas e materiais requeridas para o culto (...) carecem de fundamento. Nesse sentido, os objetos sagrados que compõem o cenário religioso não estão dispostos arbitrariamente nas paredes ou nos cantos dos Terreiros e muito menos servem de enfeites e sim, passaram por fundamentos religiosos que fizeram deles, objetos sagrados. Assim, esses objetos são revitalizados e consagrados, sendo portadores de ―Axé‖ e mantenedores da dinâmica dos Terreiros. No Candomblé, o transe ou a possessão tem seu momento áureo uma vez que os deuses descem na terra através dos Filhos de Santo, em seus corpos. Assim, ―os cultos de possessão insistem na construção desse corpo múltiplo‖ (Maffesoli, 1996: 314). O corpo revela-se enquanto multiplicidade na medida em que os deuses se manifestam. Para Prandi, ―os primeiros momentos do aprendizado do transe são aqueles em que a abiã, candidata à iniciação, é incentivada a experimentar os sentimentos religiosos mais profundos e, nessa etapa, mais desordenados ou inexpressivos‖ (Prandi, 1991: 176-grifos meus). Assim, o Abiã passa a freqüentar os Terreiros, aprender a etiqueta do Orixá, suas cantigas, comidas, maneiras de saudá-los e aprende a respeitar e se 71 posicionar na hierarquia da ―Casa‖. Ele começa a ter contato com o segredo e com o sagrado da religião, mas de forma bem lenta, pois para ter acesso de fato aos ―fundamentos‖, terá que passar pelos rituais de iniciação. Em que sentido podemos falar em sagrado no Candomblé? Podemos falar na medida em que em cada espaço se configura na força que é o coração vital da religião traduzida em Axé. Na cadeira onde os deuses sentam, nos adornos do barracão. Reitera Lody, ―a arte é o veículo da comunicação e determina os estabelecimentos dos vínculos e alianças entre os planos sagrado e humano‖ (Lody, 1995: 16). No entanto, a arte transforma-se no meio de comunicação que fortalece por sua vez, as alianças entre os homens e o sagrado, mantendo assim, a eterna aliança entre os deuses e os homens, o Orun e o Aiyê. O transe é a maneira mais forte que o homem tem ao manter uma religação com os deuses, pois é no transe a experimentação estética por excelência. É em transe no corpo do Filho de Santo que os deuses dançam, vestem e ficam ―odara‖ para a festa. Existe uma estética no transe quando os deuses chegam em terra fazendo jincá (cumprimento ou saudação do Orixá) e dando o ilá ( o ―grito‖ do Orixá) anunciando a sua chegada na convivência entre os homens e com outros deuses. O jincá é uma espécie de saudação em forma de agradecimento, geralmente os Orixás se curvam até os joelhos e alguns inclusive tremem os braços. As iabás (deusas) fazem a reverência tremendo os ombros mostrando certa sensualidade. O Ilá varia de acordo com o Orixá. É uma espécie de ―grito‖, a voz emblemática do Orixá. O ilá de Oxosse imita o som ou o ruído de algum animal, geralmente um pássaro. O ilá de Iansã é um berro, como se estivesse chamando para a guerra. O ilá de Oxum, com sua meiguice, aproxima de um choro para dentro, se confunde com um gemido, pois mostra a serenidade das águas doces. Enfim, o transe45 é algo mágico em que muitos adeptos do Candomblé dizem não lembrar de 45 Os Filhos de Santo no Candomblé revelam toda uma “dramaturgia” estética e um certo “charme”, carregado de emoção, pois quando estão “virando” no santo, em alguns Orixás os ombros tremem ou dão jincá que é uma espécie de reverência. Há uma sensualiade no transe. O corpo comunica com o mundo quando o Orixá se manifesta, pois o primeiro sinal do transe são os olhos que se fecham. Alguns Filhos de Santo ficam com o corpo caindo levemente para trás e em 72 nada. Márcio Goldman, ao dar uma concepção verdadeiramente antropológica do transe, esclarece: ―A possessão é um fenômeno complexo, situado como que no cruzamento de um duplo eixo, um de origem nitidamente sociológica, o outro ligado a níveis mais ―individuais‖ (Goldman, 1996: 31). Na ótica de Goldman, a possessão tem suas complexidades que povoam o nível individual. Cada pessoa tem uma sensação. Desse modo, a ―noção de pessoa‖ torna evidente nessa construção antropológica do transe, pois ―o transe opera sobre o indivíduo humano‖ (Goldman, 1996:31). Assim, percebo que o transe é a comunicação mais próxima com os deuses e com o duplo do próprio homem. Esse ―duplo monstruoso‖ que falou Girard (1990). Dentro dessa compreensão antropológica podemos ainda estender para o plano ontológico e existencial do transe. É a comunicação entre a imanência e a transcendência. Assim, o transe, dentro dessa estrutura cosmológica, faz da pessoa, no terreiro uma verdadeira obra de arte, pois a pessoa, ao se fundir com o deus, é pintada com os pós sagrados, é vestida e paramentada, recebendo todos os seus adornos e insígnias que lhes são próprias. Bastide, ao analisar o transe como uma espécie de êxtase, afirma: O transe religioso está regulado segundo modelos míticos; não passa de repetição de mitos. (...) O que designamos como fenômeno de possessão seria, pois, mais bem definido um fenômeno de metamorfose da personalidade; o rosto se transforma, o corpo inteiro se torna um simulacro da divindade‖ (Bastide, 2001:189) Assim, para Bastide, o transe tem uma forte relação com os modelos míticos na medida em que, por exemplo, o mito de Ogum diz que é um Orixá da guerra, o filho ―passa por‖ guerreiro, portanto, homem bravo e forte. Da mesma maneira o êxtase de uma filha de Oxum carrega em seu arquétipo a doçura, a meiguice e a feminidade da deusa das águas doces. Assim, a possessão seria, para Bastide, um processo de metamorfose, onde o corpo se metamorfoseia, se outros casos, o Orixá movimenta o médium jogando-o nos braços das pessoas. No Batuque, o transe se dá de forma diferente. Segundo Ari Pedro Oro (1999), a possessão constitui uma forma de transe, um estado modificado de consciência que afeta o corpo e a mente do possuído. Saltalhe os olhos quando Oro chama atenção para o fato de que a possessão no Sul do Brasil acontece de forma suave e nos países do Prata ele é preferencialmente forte. Assim, segundo Oro, o indivíduo, ao incorporar em um terreiro platino, gira sobre si mesmo como um peão em grande velocidade. Cf. Possessão. In: Oro, Ari Pedro. Axé Mercosul: as religiões afro-brasileiras nos países do Prata. Vozes, 1999, p.107. 73 transforma e toda corporeidade é tomada por esses ―outros‖ ―que poderá ser Deus, a família, a tribo, o grupo de amigos e, é, claro, como já disse, esse outros que pululam em mim‖ (Maffesoli, 1996: 306). Ora, vendo o transe a partir desse ponto de vista, podemos perceber que o corpo, como receptáculo desse duplo que é a sombra ou a dobra do médium, existe todo um aspecto pedagógico em torno da corporalidade, pois o corpo é o lugar do pluralismo pessoal, onde os duplos ou as máscaras (personas) do homem aparecem e desaparecem. O transe, dentro de sua complexidade pedagógica, ontológica e existencial, revela-se no movimento e no devir, pois é necessário que os Orixás venham em terra nos corpos dos Filhos de Santo para que a ―Festa‖ comece. Sem Orixá não há Candomblé. O Orixá, ao se manifestar no corpo do Filho, é motivo de Axé, pois é uma resposta dos deuses a toda a corrente espiritual que acontece entre o ―orun‖ e o ―aiyê.‖46 O processo pedagógico e estético do transe se dá desde quando os Filhos de Santo ―viram no santo‖, pois ―virar‖ já é revelar o avesso, a dobra. Daí toda uma educação diante do corpo, como colocar as mãos para trás, não ficar de olhos abertos, aprender a dançar para que o Orixá possa aprender através do Filho de Santo esses aprendizados do transe. O aspecto estético é transportado para outro universo que é o universo dos deuses. Os homens em transe não lembram mais que estão partilhando o universo dos homens, mas que estão entre os deuses. Portanto, eles agem como deuses. É um personagem que, ao som dos atabaques, o barulho do adjá, a saudação das pessoas que o cultua, ―onde a dança torna-se uma ―ópera fabulosa‖ (Bastide, 2001: 189). É toda essa ópera que faz do Candomblé um espaço festivo e do transe um aspecto estético. No entanto, o aprendizado do transe acontece quando o Orixá sabe quando deve vir e quando deve subir. O Orixá aprende que, em certos momentos dos rituais, deve aparecer. Esse aparecimento se dá mediante o toque, pois a 46 Cf. Orún-Aiyê: o encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yorubá entre o céu e a Terra de José Beniste (2006). Pelo víeis platônico, o mundo nagô é, de certa forma, dividido em duas partes. O mundo dos deuses e o mundo dos homens. O mundo sensível e o mundo inteligível. No Candomblé, os mundos se encontram, se fundem. Em Platão (1976), o que garante a existência das coisas no mundo sensível é porque cada coisa que existe no mundo neste mundo é por que “participa” do mundo inteligível. Na Filosofia nagô, todos os mundos e todos os mitos se encontram. Os deuses (Orixás) e os homens são dois pólos que ora se distanciam, ora se encontram. Na maioria das vezes esses mundos não se separam, pois os Orixás são os elementos da natureza e é em torno dela que tudo gira. Os homens e os deuses são a própria natureza cosmológica. Sobre essa retomada dos gregos e tradição da imagem arquetipal, cf. Segato, 2005. 74 música possui o poder de provocar o transe nos Filhos de Santo. Nos esclareceu a etnomusicóloga Ângela Lühning : ―ela ultrapassa o momento da cerimônia religiosa, liga o ritual sagrado com ao profano e expressa emoções muito fortes em momentos agradáveis e desagradáveis‖ (Lühning, 1990: 115). Assim, o transe passa a ter um efeito estético, pois, afetado pela música, o Orixá começa a provocar no Filho de Santo várias sensações, ligando o sagrado ao profano, provocando fortes emoções até sua manifestação no corpo do Filho. Em outras palavras, é na etapa da iniciação pedagógica do Iaô que ―o iniciante aprende a lidar com o transe, assumindo os papéis rituais que ele implica‖ (Prandi, 1991:177). Assim, o transe deve ser encarado como um processo de aprendizagem constante onde o médium deve aprender primeiramente a coordenar seu corpo. Daí, podemos pensar uma concepção pedagógica do transe na medida em que, aos poucos o Filho de Santo vai aprendendo a lidar com essa energia. Por isso que quanto mais o Filho de Santo ―roda‖ ou ―vira no santo‖, mais ele exercita a energia do Orixá, mais seu corpo fica mais pedagogicamente educado para dançar, enfim, para ―agir como‖ o orixá, no Orixá. Outro olhar cuidadoso acerca da possessão foi de Laura Segato (2005). Em seu livro Santos e Daimones: o politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetipal, Segato faz uma densa abordagem acerca do culto Xangô de Recife . A autora faz um trabalho voltado para a relação entre o Orixá e a pessoa, onde segundo ela, a unidade da pessoa é um momento transitório: ―Uma vez ―manifestada‖, a pessoa não é considerada mais ela própria, mas seu santo encarnado‖ (Segato, 2005:99). No entanto, a pessoa deixa de ser o que é quando está manifestada pelo Orixá. É nessa relação santo e pessoa que se funde nos Terreiros, que podemos pensar o processo de transfiguração do transe, pois a pessoa se transfigura no sentido forte do termo, passando por uma transmutação ou metamorfose. Dessa forma, para Segato (2005), a partir de uma visão Junguiana, o eu e o santo, o santo e a pessoa na possessão, transformam-se em uma multiplicidade. Desse modo, para Segato, existem no interior de nosso pensamento, dobras, inconsistências, descontinuidades que nos leva um estranhamento de nós mesmos. É uma espécie de ―eus‖ que sai da unidade do eu. Assim, a pessoa é pura multiplicidade. Faz-nos recordar o pensamento da diferença de Deleuze (2003) que encara o pensamento como uma multiplicidade. Por esse viés, o Terreiro não deixa 75 de ser a diferença pura, onde ―receber‖ o Santo significa entrar em devires. Devirguerreira ao ―receber‖ Iansã, Devir-amor ao ―receber‖ Oxum, devir-justiça ao ―receber‖ Xangô. Assim, é esse bloco de devires que faz do Terreiro o espaço da diferença e da produção de subjetividade, que é plural. Há assim, um processo de identificação da identidade ou a identidade na identificação, pois o Filho se reconhece, se ―identifica‖ com essa identidade. É comum dizerem nos Terreiros que Filhos de Oxosse são sensíveis e carinhosos e os filhos desse Orixá se reconhecem e se identificam com esse arquétipo. Para Maffesoli (1996), a identidade tem máscaras. Receber o Orixá é revelar as várias máscaras da identidade. Esse múltiplo pode se desdobrar de várias maneiras como uma dobra que se desdobra ao infinito. O médium se sente pertencendo a esse universo da mutiplicidade de deuses. Dessa maneira, o Terreiro não deixa de ser o espaço do puro devir ou do vir-a-ser. Nessa perspectiva, o transe é o ápice da transmutação e transfiguração no Terreiro onde o ser e o não ser se fundem, se mostrando e se escondendo ao mesmo tempo. É o transe o momento por excelência de revelação do homo stheticus, pois é em transe que o corpo é adornado, enfeitado, arrumando e ―aprontado‖ para receber o ―rum‖ no Terreiro e festejar em meio a toda essa beleza com os homens. É assim que se conjuga pedagogicamente o transe no Terreiro fazendo com que os filhos de santos se reconheçam na identidade do Orixá e aprende, com isso, a ―estar‖ no Orixá e se perder nesse ―Outro‖ que é, de certa forma, o encontro consigo mesmo no Terreiromundo. REFERÊNCIAS AMARAL, Rita. Xirê! O modo de crer e de viver no candomblé. - Rio de Janeiro; Pallas: São Paulo: Educ, 2005. BARBARA, Rosamaria S. A dança Sagrada do Vento. 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Mais ainda: o leque cada vez mais amplo de alternativas religiosas abre uma concorrência fragmentária, que inviabiliza a constituição de monopólios simbólico-religiosos, enfraquecendo tradições e ameaçando sua sobrevivência. O presente GT está aberto à submissão de propostas de comunicações que dialoguem com o binômio Religião e Modernidade em suas mais diversas formas. 79 MODERNIDADE E TRANSCENDÊNCIA NO PENSAMENTO DE HENRIQUE CLÁUDIO DE LIMA VAZ Analupe Bheatriz Carneiro Resumo Há um componente ateu presente no processo de constituição da modernidade? Com o intuito de responder a esta questão, nosso estudo se fundamenta e se prevalece com a contribuição filosófica do teólogo mineiro Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz, responsável por profundas reflexões sobre o advento dos tempos modernos. Reflexões estas que ressaltam as implicações do universo teórico engendrado na modernidade sobre o nível ontológico mais elevado do ser humano: a relação de transcendência. A filosofia Vaziana revela o Absoluto não apenas como objeto da experiência mística, mas como exigência de sentido e horizonte ético. Palavras-chave: Modernidade. Transcendência. Razão. Absoluto. 1. INTRODUÇÃO Historicamente, a modernidade pode ser definida como o fenômeno da civilização moderna ocidental, filosoficamente pode ser conceituada como o período em que um novo universo teórico se engendra a partir das transformações culturais ocorridas nos fins da Idade Média, fenômeno conhecido como Renascimento1. Este novo universo teórico, de inflexão antropocêntrica, tem na razão operacional sua matriz de formulação conceitual, nele a razão moderna reorganiza as ―linhas de inteligibilidade com que o homem pensa e interpreta a realidade‖ (VAZ, 1997, p.164), ou seja, com o advento da modernidade, há uma nova estruturação do mundo intelectual, diferente daquele do qual o homem se organizara no período medieval, sendo este caracterizado como um período que possuía, como referência, um ponto de vista exclusivamente de matriz teológica. A produção filosófica de Henrique Cláudio de Lima Vaz2, desenvolvida e impulsionada pela análise do tipo ontológico, se deteve em pensar e repensar a relação dialética entre o homem e o Absoluto, no intuito de justificar sistematicamente a relação de transcendência como uma relação antes de tudo existencial, existencial por se constituir fundamentalmente pelo ato intencional da consciência em relação a uma dimensão que a transgride. Sendo assim, Lima Vaz foi um crítico do universo simbólico constituído pela modernidade e de seus postulados fundamentados em premissas genuinamente antropocêntricas. Mestranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. [email protected] 1 A historiografia moderna classifica o Renascimento situado cronologicamente nos séculos XIV ao XVI. Ver: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia, p. 185-198. 2 Padre jesuíta, teólogo e filósofo, nascido em Ouro Preto, Minas Gerais (1921-2002), foi professor titula r do departamento de filosofia da UFMG. Autor de vários artigos que, em parte, foram reunidos em sete volumes intitulados Escritos de filosofia. 80 2. PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA MODERNIDADE A inflexão antropocêntrica, fundamentação do universo simbólico da modernidade, oficializa por Descartes ao inscrever o cogito do sujeito como o lócus de inteligibilidade da realidade, ocasiona uma inversão na direção do vetor que orientava a relação de transcendência do ser humano, relação esta que foi coerentemente seguida pela filosofia do período medieval. Com o advento da razão moderna e seu projeto pretensioso de tornar o sujeito construtor da realidade, o vetor transcendente, que orientava o homem para ―ir além‖ de si, perde a primazia de centro conversor e explicativo de todo o fundamento ontológico e gnosiológico do ser do homem. Os níveis ontológicos3 que formam o universo teórico do ser humano são definidos por Lima Vaz por: relação de objetividade (homem com o mundo), relação de intersubjetividade (homem com os outros) e relação de transcendência (homem para o Absoluto), estes níveis são responsáveis pela compreensão que o homem formula da realidade marcando sua experiência de sujeito doador de sentido ao estabelecer teórica e praticamente o seu modo de pensar, agir e fazer. O período que antecede o Renascimento, a construção da realidade era fundamentada numa perspectiva transcendental que orientava o ser humano para o Absoluto, a partir da descoberta do cogito, novos parâmetros alteram em sentido inverso esta perspectiva de compreensão da realidade, o que conseqüentemente altera o modo do homem pensar, agir e fazer. Na avaliação de Lima Vaz, a modernidade apresenta a iniciativa teórica e inédita de imanentização dos termos da relação de transcendência, abolindo do universo simbólico do homem moderno a dimensão metafísica que estabelecia um porto seguro que fundamentava teoricamente todos os campos da cultura – o social, ético, político e religioso – ao propugnar a autotranscendência do sujeito através de uma consciência auto-reflexiva. A maior implicação da razão moderna – matriz conceitual da modernidade filosófica – sobre a relação de transcendência pode ser definida como a substituição do princípio transcendente (Deus) pelo antropocentrismo 3 Sobre os níveis ontológicos que constituem o ser humano ver: VAZ, H.C. de Lima. Antropologia filosófica II, cap.2. 81 moderno caracterizado pela primazia do fazer poiético4 do sujeito ou a substituição do princípio fundador e orientador da compreensão e explicação da realidade pela imanência do sujeito. Isto é, a razão moderna se baseia na atividade de um conhecimento construído pelo sujeito, alterando o universo teórico da civilização Ocidental. Universo este que, no período antecedente à guinada da racionalidade, detinha suas concepções éticas e metafísicas fundadas num princípio transcendente que garantiam a abertura para a relação de transcendência. O pensamento filosófico de Lima Vaz defende a tese que, a filosofia ocidental fundamenta-se sobre questões que evolvem a Ética e a Metafísica, estas expressam, respectivamente, o homem como portador de uma razão universal e como um ser livre dotado de possibilidade de escolha ou livre-arbítrio. A modernidade por sua vez, se desenvolve pautada na concepção de que a razão é infalível e é capaz de realizar todas as obras construindo assim a ―cidade dos homens‖ (VAZ, 2002, p.168), enquanto ―titânico projeto histórico do homem ocidental‖ (VAZ, 2002, p.168) inserido numa civilização alheia a uma referência transcendental, sem um fundamento que o intencione ao Sagrado para legitimar a sua própria realidade. A substituição do fundamento transcendente, que antes orientara tão coerentemente todos os campos da criação humana, acaba por estabelecer uma realidade conceitual que prescinde de toda e qualquer dimensão fundante e absoluta5. Estes campos são definidos agora pelos ditames do antropocentrismo moderno, e Segundo Lima Vaz: (...) pela primeira vez na história humana estamos diante de um ciclo civilizatório que se constitui sem uma referência constitutiva ao Sagrado ou a uma esfera primordial que é, ao mesmo tempo, separada e fundante de toda a realidade e é fonte última de legitimação das práticas sociais (VAZ, 1998, p.29). A iniciativa de Descartes de fundamentar no cogito o princípio de certeza ganha com o pensamento de Kant o dinamismo necessário de transformar o sujeito em sujeito transcendental determinando a condição de possibilidade de toda expressão do real, condição esta que se totaliza no conceito de Hegel. Os três artífices da 4 Fazer poiético do sujeito: conhecimento fabricador do sujeito. Sobre a epistemologia moderna ver: VAZ, H.C de Lima. Ética e Razão Moderna, p.53-85. 5 Sobre civilização moderna e a religião ver: VAZ, H.C. de Lima. Religião e Sociedade nos últimos vinte anos, p.29. 82 evolução filosófica da modernidade contribuem para forjar o universo teórico do ocidente tal como o conhecemos, ou seja, um universo teórico que tenta implementar o projeto de imanentizar as relações que constituem o ser humano, principalmente a relação de transcendência. Pois, na concepção de nosso autor, ―o lugar inteligível do transcendental desloca-se do solo ontológico para o gnosiológico (...), desloca-se para as condições da experiência organizadora dos fenômenos, ou seja, à finitude da situação do sujeito no mundo‖ (VAZ, 1992, p.104). A conseqüência maior, para o homem moderno, desta nova maneira de conceber a realidade pode ser visualizada na própria realidade existencial, no desamparo em que se encontra a humanidade para desvendar e responder a sua questão fundamental, a razão de viver. 3. CONCLUSÃO As implicações da modernidade filosófica - postuladas nos princípios da imanência - sobre a realidade da civilização ocidental e conseqüente alteração nas expressões de seu universo simbólico são, na concepção de Lima Vaz, fatores que integram e desenvolvem um verdadeiro fenômeno de civilização, que viabiliza o espraiar do ateísmo, pois o próprio sistema de idéias, os critérios de avaliação e da organização dos modos de ser foram abalados em seus mais íntimos fundamentos, dando margem à substituição do Absoluto transcendente a outras formas de absolutos que foram encontrados, por exemplo, na libido, no sujeito, na história, na linguagem. Porém, esse novo sistema conceitual, engendrado na modernidade, mostra-se incapaz de propor soluções universais, e principalmente, propor uma orientação concreta e teleológica para os fins desta nova cultura, ou seja, incapaz de propor idéias e valores consensualmente aceitos. O homem moderno julgou-se a fonte de inteligibilidade, impondo culturalmente - através da razão técnica e uma ética hedonista - o retraimento de seu nível ontológico mais elevado, sua relação para com o Absoluto, ou, sua relação de transcendência. REFERÊNCIAS 83 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. São Paulo: Paulinas, 1990. VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia filosofia II. São Paulo: Loyola, 1992. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia II: Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1988. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia III: Filosofia e Cultura. São Paulo: Loyola, 1997. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1999. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia V: Introdução à Ética Filosófica II. São Paulo: Loyola, 2000. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia VI: Ontologia e História. 2ªed. São Paulo: Loyola, 2001. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia VII: raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002. VAZ, Henrique C. de Lima. Ética e Razão Moderna. Síntese Nova Fase. V.22, nº 68, 1995, p.53-85. VAZ, Henrique C. de Lima. Religião e Sociedade nos últimos vinte anos. Síntese Nova Fase. V.15, nº 42, 1998. p.27-35. 84 EXPANSÃO DOS CULTOS RELIGIOSOS NO VETOR DE CRESCIMENTO DA CIDADE DE VIÇOSA – MG. Lucas Ferreira M. da Silva47 RESUMO O objetivo desta pesquisa foi analisar a expansão dos cultos evangélicos nos vetores de crescimento da cidade de Viçosa, relacionando aspectos socioeconômicos e territoriais a consolidação destes cultos. Para isso foi realizado o levantamento das igrejas, aplicação de questionários, consulta a dados da prefeitura e tratamento de imagens (geoprocessamento). Conclui-se que apesar do número de evangélicos ter aumentado nas ultimas décadas a quantidade de católicos ainda é maior, porém, essa diferença vem diminuindo, ainda foi possível constatar que a renda média dos evangélicos é de 3 salários mínimos. PALAVRAS-CHAVE: Religião, territorialidade, cultos evangélicos. INTRODUÇÃO O presente artigo é resultado de uma pesquisa realizada na cidade de Viçosa, Minas Gerais, no ano de 2008. O município apresenta uma população de 70.404 habitantes e está localizado na mesorregião da Zona da Mata Mineira, limita-se ao norte com os municípios de Teixeiras e Guaraciaba, ao sul com Paula Cândido e Coimbra, ao leste com Cajuri e São Miguel do Anta e, ao oeste, com Porto Firme (IBGE, 2008). A cidade, desde 1950, vem passando por um crescimento que criou bases para que ocorresse uma anomalia no processo de ocupação de seu entorno, isso gerou uma série de problemas para o município, como o surgimento de inúmeros loteamentos populares (CARNEIRO, 2005) com ausência de infra-estrutura e serviços para atender a população que ali reside. Seu crescimento se deve ao fato da cidade abrigar a Universidade Federal de Viçosa (UFV), uma instituição altamente conceituada no cenário acadêmico nacional e internacional, por sua excelência em ensino, pesquisa e extensão. Nos últimos 17 anos a população de Viçosa aumentou em mais de 18.000 habitantes, diferente dos municípios os quais fazem fronteira. As cidades de Teixeiras e Coimbra apresentaram um crescimento populacional de 1.641 e 1.409 habitantes, respectivamente, e Guaraciaba apresentou crescimento negativo, -113 habitantes (IBGE, 2008). Paralelo a este fato, durante a década de 1990, houve uma 47 Estudante da especialização Proeja do IFSEMG – campus Rio Pomba. Possui graduação em Geografia pela UFV. Email: [email protected] telefone: (32) 34511667. 85 grande expansão dos cultos evangélicos, de acordo com Mariano (2004) os evangélicos perfaziam um percentual de apenas 2,6% da população brasileira na década de 1940, de 1950 a 1980 o crescimento médio do número de adeptos a religião evangélica girou em torno de 4,8%, porém, entre 1990 e 2000 a média foi de 12,2%. Diante desse fato os objetivos da pesquisa foram de analisar a expansão dos cultos evangélicos no vetor desejado de crescimento da cidade de Viçosa, relacionando aspectos socioeconômicos de seus fieis com a consolidação destes cultos e; realizar o levantamento de igrejas e templos no perímetro delimitado para analise caracterizando o comportamento destas instituições a partir da perspectiva de Rosendahl (1995). DELIMITANDO O CONTEXTO INVESTIGATIVO De acordo com Rosendahl (1995) geografia e religião, mesmo que possa não parecer, tem bastante coisas em comum, a começar pelo fato de serem práticas sociais. Entretanto, sua principal semelhança aparece ao analisá-las sob a ótica do conceito de espaço. A geografia estuda, analisa e relaciona elementos e ações que ocorrem espacialmente e a religião, entendendo-a como um fenômeno cultural, ocorre dentro desse espaço, o que gera a possibilidade de ampliar seu território e exercer cada vez mais seu poder sobre homens e coisas. Na geografia a maneira como um grupo ou instituição controla determinado território por meio de suas práticas é conhecida como o conceito de territorialidade. A partir desse conceito Rosendahl (1995) propõe a existência de sistemas religiosos que apresentam comportamentos diferentes quando um se encontra próximo, ou dentro da área, de outro sistema. Pode surgir nesta situação 3 padrões comportamentais: coexistência pacifica; instabilidade e competição; e intolerância e exclusão. Para Almeida & Monteiro (2001) a localização e o aumento do número de fieis de determinadas religiões estão ligados a fatores socioeconômicos. Estes autores atribuem ao processo de urbanização e a migração responsabilidade pelo aumento de fieis nas religiões pentecostais e as associa a pessoas pobres e de camada média baixa entre seus principais adeptos, classificando tais religiões como uma espécie de ―refúgio de massas‖ alternativo em situações de patologia social. Ainda dentro de uma perspectiva socioeconômica Bohn (2002) relaciona os vencimentos mensais de integrantes de religiões evangélicas. De acordo com esse autor aproximadamente 70% dos integrantes das denominadas pentecostais tem 86 vencimentos que atingem, no máximo, 2 salários mínimos, esse percentual cai para 58% para religiões não-pentecostais, diz ainda que em ambos os grupos existe uma relação inversamente proporcional entre renda e as religiões evangélicas: quanto maior a renda mensal, menor a probabilidade de uma pessoa ser evangélica. Entretanto, não apenas fatores sociais e econômicos devem ser levados em consideração quando se analisa o aumento e/ou diminuição de fieis em determinadas religiões. Pierucci (2004) analisa a redução do catolicismo no Brasil com base em dados do Censo Demográfico de 2000, a tabela 1 demonstra alguns resultados obtidos a partir de seus estudos: Tabela 1-Principais religiões do Brasil de 1980 a 2000 Religião 1980 1991 2000 Católicos 89,2 83,3 73,7 Evangélicos 6,6 9 15,4 Espíritas 0,7 1,1 1,4 Afro-brasileiros 0,6 0,4 0,3 Outras religiões 0,3 1,4 1,8 Sem religião 1,6 4,8 7,3 Total 100% 100% 100% Fonte: Adaptado IBGE apud Pierucci (2004) A diminuição dos fieis da Igreja Católica deve também ser analisada a partir de elementos que vem se reproduzindo ao longo do processo de formação do mundo contemporâneo e tiveram inicio com a Reforma religiosa no século XVI (MENDONÇA, 2008), então, junto a fatores socioeconômicos deve-se também associar fatores de cunho histórico. Ao analisar o plano diretor da cidade de Viçosa nota-se que o vetor desejado de crescimento urbano localiza-se nos bairros Arduíno Bolívar (conhecido popularmente como Alto das Amoras), Novo Silvestre, Silvestre e Vau – Açu (figura 1). Esses bairros além de possuírem área disponível para construção apresentam alguma infra-estrutura básica de serviços como transporte público, saneamento básico e pavimentação. Também pode ser levada em consideração a região central da cidade que está em constante processo de modificação, devido a influência da UFV. O desenvolvimento desses bairros foi acompanhado pela instalação de um grande número de instituições religiosas. Até o presente momento não houve registros de um estudo caracterizando a eclosão dessas instituições nestes bairros, o que pode ser visto de forma negativa, pois, a religião reflete o desenvolvimento 87 cultural dessas comunidades sendo, muitas vezes, considerada um refugio aos problemas do cotidiano enfrentados por várias famílias. Fonte: Prefeitura Municipal de Viçosa (2008) Figura 1 – Plano Diretor Participativo de Viçosa. Vetores de Crescimento - 2007 METODOLOGIA O presente artigo é uma pesquisa descritiva que foi realizada no ano de 2008 entre os meses de setembro a novembro. Para delimitar o tema e construir uma base teórica para a pesquisa foi feita uma revisão bibliográfica em autores que abordam a questão religiosa no Brasil, o crescimento da cidade de Viçosa, geografia e religião, consulta a dados do IBGE. Para delimitar o espaço de analise foi necessária a utilização de dados do plano diretor participativo de Viçosa, como o mapa que demonstra os vetores de crescimento da cidade. A partir do estudo das bases de dados da Prefeitura Municipal de Viçosa e do laboratório de geoprocessamento (Labgeo) no Departamento de Solos da UFV foi definido os limites de cada um dos bairros concernentes à área de estudo. Para efeito de comparação foi também levado em conta a região central de Viçosa. A próxima etapa foi a elaboração do questionário (apêndice 1) que foi aplicado nos estabelecimentos religiosos com o intuito de levantar dados como o 88 número de fieis por igreja, o perfil socioeconômico dos mesmos (já que na maioria das religiões existe a cobrança do dizimo), o tipo de religião, tempo de existência da instituição, assim como cadastrar cada igreja para georreferênciá-las. Junto a aplicação dos questionários ocorreu a coleta das posições geográficas das igrejas com a utilização de GPS, os pontos foram coletados tendo como base coordenadas UTM do sistema de coordenadas WGS_1984_UTM_Zone_23S, com média de 120 segundos por ponto e precisão média em torno de 6 (seis) metros. Com todos os dados respectivamente coletados foi elaborado dois mapas para discussão de resultados, nesta etapa foram utilizadas as facilidades do laboratório de informática do Departamento de Solos da UFV e dos softwares ArcGIS 9.3 e Google Earth 4.3 que são ferramentas utilizadas para o geoprocessamento de imagens. RESULTADOS E DISCUSSÃO Por meio do cruzamento das bases de dados cedidas pela Prefeitura Municipal de Viçosa e do Labgeo, foi possível representar espacialmente a área de estudos da pesquisa (Figura 2) que se estende no sentido sul/norte do município. Com a ida ao campo e a aplicação dos questionários foi possível quantificar o número de igrejas desde a região Central da cidade até o bairro Novo Silvestre (Tabela 2). O perfil socioeconômico dos fieis das igrejas católicas e evangélicas, tanto na região central quanto nos vetores de crescimento da cidade, condizem com os estudos realizados por Almeida & Monteiro (2001) e Bohn (2002), ou seja, nos bairros Novo Silvestre, Arduino Bolivar, Silvestre e Vau – Açu houve um processo desorganizado de ocupação, fato que pode ser explicado pelos valores baixos dos lotes no período de 1950 a 1990, a população local é de baixa renda e paralelo ao processo de migração em direção a estes bairros ocorreu a instalação de templos e cultos religiosos. No centro da cidade existe uma leve peculiaridade, pois nas igrejas evangélicas alguns fieis (grupo formado por funcionários da UFV) apresentam renda superior ao que define Bohn (2002), enquanto nos cultos católicos não foi constatado variação relevante1. 1 De acordo com questionário para avaliar as condições socioeconômicas dos fieis foi levado em conta as contribuições com dizimo nas igrejas. 89 Fonte: Elaborado pelo autor (2008) FIGURA 2 – Delimitação da área de estudo da pesquisa. 90 Tabela 2 – Relação de igrejas por bairro BAIRRO Centro Arduino Bolivar IGREJA/SIGLA Igreja Matriz/IM Igreja Universal/IU Igreja Batista/IB Igreja Mundial do Poder de Deus/IMPD Igreja Presbiteriana/IP Igreja Evangélica Assembleia de Deus Ministério Petrópolis/IEADMP Igreja Nosso Senhor dos Passos/INSP Igreja Batista Nacional/IBN Santa Igreja dos Ministérios de Deus Pentecostal/SIMDP Igreja do Evangelho Quadrangular/IEQ Igreja Evangélica Congregacional/IEC Igreja Nossa Senhora Aparecida/INSA Igreja Evangélica Assembleia de Deus/IEAD Igreja Cristã Maranata/ICM Congregação Cristã do Brasil/CCB Vau - Açu Capela São João Batista/CSJB Silvestre Igreja São Silvestre/ISS Igreja Evangélica Congregacional/IEC Igreja Assembleia de Deus/IAD Novo Silvestre Igreja Santa Edwiges/ISE Comunidade Evangélica El Samá/CEES Igreja Assembleia de Deus Ministério Madureira/IADMM Igreja Assembleia de Deus Filial Belo Horizonte/IADFBH Fonte: Elaborado pelo autor (2008) Do ponto de vista cronológico, a maioria das igrejas estão consolidadas em seus bairros e a variação de idade entre elas e o número de fieis reforça os estudos realizados por Pierucci (2004), ou seja, nos últimos anos houve um decréscimo do número de católicos no mundo, o Brasil apesar de ser um país de maioria católica também sentiu esse efeito. A tabela 3 e o gráfico 1 demonstram, respectivamente, a idade de cada igreja e a variação do número de fieis no começo de suas atividades e no ano de 2008. Paralelo a aplicação dos questionários foram coletados os pontos geográficos de cada igreja, cruzando os dados obtidos com o GPS e imagens do Google Earth 4.3 foi possível construir um mapa espacializando cada uma das igrejas (Figura 3), dessa forma foi possível constatar que o processo de eclosão dos cultos religiosos na área da pesquisa ocorreu a partir do que Rosendahl (1995) define como 91 instabilidade e competição, ou seja, há uma disputa por território na área pesquisada, mesmo que de forma pacifica, e que pode ser constatado pelo grande aumento do número de fieis das religiões evangélicas. A única exceção é o bairro Vau – Açu que apresenta apenas uma capela em construção. Em alguns bairros, primeiramente, ocorreu a instalação de igreja católica e posteriormente foram se instalando outras igrejas, em outros aconteceu o processo inverso, caracterizando assim o comportamento abordado por Rosendahl (1995) que geralmente tem origem a partir da invasão de territórios. Tabela 3 – Tempo de existência das igrejas de Viçosa. IGREJA Igreja Matriz Igreja Universal Igreja Batista Igreja Mundial do Poder de Deus Igreja Presbiteriana Igreja Evangélica Assembleia de Deus Ministério Petrópolis Igreja Nosso Senhor dos Passos Igreja Batista Nacional Santa Igreja dos Ministérios de Deus Pentecostal Igreja do Evangelho Quadrangular Igreja Evangélica Congregacional Idade 55 anos 6 anos 35 anos 1 ano 32 anos Igreja Nossa Senhora Aparecida Igreja Evangélica Assembleia de Deus Igreja Cristã Maranata Congregação Cristã do Brasil 10 anos 17 anos 8 anos 17 anos Capela São João Batista em construção Igreja São Silvestre Igreja Evangélica Congregacional Igreja Assembleia de Deus 35 anos 3 anos 7 anos Igreja Santa Edwiges Comunidade Evangélica El Samá Igreja Assembleia de Deus Ministério Madureira Igreja Assembleia de Deus Filial Belo Horizonte Fonte: Elaborado pelo autor (2008) 17 anos 32 anos 17 anos 16 anos 26 anos 12 anos em construção 5 anos 25 anos 5 meses IM No início IADFBH CEES IEC IAD INSA Em 2008 IEAD ICM CCB IB IMPD IP IEADMP INSP IBN SIMDP IEQ IEC 1200 1100 1000 900 800 700 600 500 400 300 200 100 0 IU Número de fieis 92 Igrejas Fonte: Elaborado pelo autor (2008) Gráfico 1 – Número de fieis na fundação das igrejas e no ano de 2008. Fonte: Elaborado pelo autor (2008) Figura 3 – Espacialização das igrejas de no sentido Centro/Novo Silvestre CONCLUSÃO O processo inversamente proporcional que vem ocorrendo desde a Reforma Protestante de fato ocorreu no Brasil, em Viçosa não foi diferente. Ao longo das últimas décadas surgiram várias igrejas de culto evangélico e número de fieis destas foi aumentando gradativamente. Neste mesmo período a religião católica perdeu um número relevante de fieis. Dentro deste contexto há uma nítida disputa por território 93 que ocorre de forma pacifica, mas que deve ser entendida por que a religião faz parte da cultura humana. Apesar de estarem em processo de expansão, no caso de Viçosa, os cultos religiosos evangélicos ainda concentram um menor número de adeptos por estabelecimentos, são pessoas de classe pobre e média baixa com vencimentos de no máximo 3 salários mínimos. Com este estudo surge uma nova oportunidade de se realizar outra pesquisa, daqui a alguns anos, comparando dados e realizando outras reflexões acerca dos cultos religiosos na cidade de Viçosa, Minas Gerais. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, R.; Monteiro, P. Trânsito religioso no Brasil. São Paulo Perspec. , São Paulo, v.15, n.3, July 2001.Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010288392001000300012&l ng=en&nrm=iso >. Acesso em: 01 Nov. 2008. BOHN, Simone R.. Evangélicos no Brasil: perfil socioeconômico, afinidades ideológicas e determinantes do comportamento eleitoral. Opin. Publica , Campinas, v. 10, n. 2, Oct. 2004 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010462762004000200006&lng=en&nrm=iso >. Acesso em: 02 Nov. 2008. CARNEIRO, P.A.S., FARIA, A. L.L., Ocupação das encostas e legislação urbanística em Viçosa (M.G). In: Revista Caminhos da Geografia (on line), Uberlândia (MG) v. 12, n. 14, p. 121-138, Fev/2005. 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Inicialmente, alguns conceitos de Smith fazem paralelo na Encíclica. Deste modo, torna-se necessário conhecer as influências sobre Leão XIII. Faltam à historiografia em língua portuguesa no entorno da Encíclica, estudos sobre sua origem, ou a historicidade de sua constituição. Debruçando-se sobre alguma bibliografia disponível encontramos algumas descrições na literatura estrangeira. Entre liberalismo e marxismo, o Papa vai ouvir as reflexões e experiências empreendidas pela própria Igreja na Europa, África e Estados Unidos, buscando indicar uma via católica em reação ao crescimento do Socialismo entre os operários. Contudo, as principais influências sobre o texto vêm de seus dois secretários particulares a partir outro texto trabalhado pelo Jesuíta Mateo Liberatore em questões de economia e pelo Cardeal Zigliara em questões filosófico-sociológicas. Palavras-chave: Rerum Novarum; Economia e Igreja Católica; Pensamento social católico. Em ―O queijo e os vermes‖ Ginzburg conta uma pequena história da ―Inquisição‖ do século XVI. Por um descuido da ―sorte‖, o processo contra um camponês fora percebido pelo autor. Mas nunca somente a ―sorte‖ é aliada do historiador; cacos, fragmentos de uma história silenciam-se em meio a vozes. Ginzburg permite-se então falar dos ―indícios‖ que a ―sorte‖ plantou e/ou calou. O indiciário é uma formulação da consciência dos limites da narrativa, da compreensão sobre o fragmentário da fonte. Assim, uma narrativa histórica pode se fazer como uma montagem de vitral ou como um mosaico de cacos. 48 Mestre e Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora [email protected] 96 Tal qual se perguntava Ginzburg em sua narrativa em ―Os queijos e os vermes‖ não teria aqui o Domenico Scandella lido ou escutado alguém que lhe falasse de tal obra? Assim também me portei ao ler a ―Rerum Novarum‖ de Leão XIII: Qual a relação possível entre as idéias descritas na encíclica e Adam Smith? Seguindo o velho preceito escolástico ―magistri dixt‖, as referências papais não variam de citações bíblicas e uma referência ao Magistério da Igreja, outra referência a Encíclica do próprio e outra a Maquiavel (!) além de várias citações de Santo Tomás de Aquino. Nenhuma menção a Adam Smith! Ora, se Leão XIII tinha uma leitura de Adam Smith e por algum motivo, teria ele uma leitura mais completa, no sentido de que a atual historiografia da economia o tem tomado: não um defensor do ―laissez faire‖, mas um moralista. E neste caso, embora se possa reconhecer princípios de moral na economia do modo como é descrita na Encíclica Rerum Novarum, ela está mais voltada à Economia Política. Hugo Cerqueira (2003) afirma que o nome Adam Smith está ligado à idéia da busca irrefreada de satisfação dos interesses pessoais no mercado a qual traria, pela mediação de uma ―mão invisível‖, o bem estar à sociedade. Para Cerqueira, isso é uma caricatura de Adam Smith. A interpretação mais contextualizada de ―A riqueza das nações‖ inicia-se com o bicentenário da primeira edição da mesma. Procurava-se tratar várias partes da obra como um todo e não como partes isoladas e a busca da interconexão desta obra com a ―Teoria dos sentimentos morais‖. Significa, pois, romper com o conceito tradicional no qual se centrou a interpretação da obra de Smith como econômica e fazer a dupla reinterpretação: econômica e filosófica, já que o fundamento do pensamento econômico smithiano seria moral, e as ações de auto interesse não seriam as únicas guias das ações humanas no mercado. Na versão em português da Rerum Novarum consta um subtítulo que chama bastante a atenção: Origem da prosperidade nacional. Embora centrando a riqueza num sentimento moral e ações morais para a ordem e a justiça, o Papa nos diz que é o trabalho a fonte primeira de toda riqueza, motivo pelo qual deve obter a proteção do Estado para se alcançar o bem comum, através de leis e instituições que possam garantir a prosperidade. Se voltarmo-nos sobre Smith, o trabalho em geral é a única fonte da riqueza de uma sociedade e não o comércio exterior como defendiam os mercantilistas. A Riqueza de uma nação está sobre o trabalho e o seu aumento é resultado da divisão 97 do trabalho. A relação entre trabalho e troca leva o homem à barganha, uma propensão inata do homem. É a divisão do trabalho numa sociedade bem administrada que permite a distribuição da riqueza a todas as classes. De sorte que os mais pobres se beneficiam do trabalho dos mais ricos pela cooperação que existe na produção com a divisão social do trabalho. (CERQUEIRA 2000, p 13-16) Para o Pontífice, embora defenda o ―direito natural‖ à propriedade privada e ao fruto do trabalho, defende, sobre o uso dos bens que os mesmos são comuns. De modo que se deva dar parte deles aos necessitados, sem, prejuízo do próprio sustento e de sua família: essa é uma visão tomista. Por isso, adiante, o Papa concluirá pela fraternidade entre patrões e operários. No entanto, o Papa não está falando de troca, mas de ―caridade‖, não de esmola, a qual é um dever moral e não de estrita justiça, salvo situações excepcionais. A justiça, para Santo Tomás de Aquino está na distribuição comunitária daquilo que é comum. A isso, talvez Smith se insurgisse pois para ele um homem que dependa da caridade é um servil. No entanto, em ambas as visões a riqueza se socializa. Para o papa, a troca se dá no uso livre do salário recebido pelo trabalho, despreza, porém, a apropriação que faz o rico do valor excedente recebido pela venda dos produtos produzidos. Em Marx poderíamos dizer ser a ―mais valia‖ ou que, de outro modo, já se encontra descrito em Adam Smith. Também o Papa se ocupa dos salários. Não pode o trabalhador ganhar menos do que necessite para o próprio sustento e de sua família. O salário justo deve ser estabelecido em comum acordo entre patrões e operários, mediados por sindicatos ou corporações, preferencialmente sem influência do Estado. Cabe nessa ―negociação‖, e o Papa não explicita, mas é possível ir além da simples ―subsistência‖ já que, em função mesmo de sua defesa da propriedade privada, pede que o operário aplique com parcimônia seus rendimentos a fim de obter bens patrimoniais. É a propriedade privada que ―animaria‖ esse espírito nas ―massas populares‖, reforçados por leis justas. Embora haja uma relação moral inicial, sobre o direito da diginidade do trabalhador e de sua familia não trata-se somente de uma Economia Moral pois se o Patrão faltar a esse compromisso, deve-se recorrer à justiça. Essa mesma perspectiva de recurso jurídico está em Adam Smith. No entanto, em Smith, o valor do trabalho centra-se em outros fatores dos quais nos privaremos aqui por tratar-se de questão mais econômica. 98 Adam Smith afirma ser a remuneração engenhosa do trabalho que permite a ―propagação da espécie‖ dos trabalhadores e, ao mesmo tempo aumenta sua ―laboriosidade‖. Na proposta de Leão XIII seria uma repartição mais equitativa da riqueza na participação do trabalhador na prosperidade. Em Smith a racio se apoia sobre a remuneração, em Leão XIII sobre a remuneração levando à propriedade privada. Na proposição de Liberatore (apud BARUCCI, 1998, p. 20) necessário era a instituição pelo Estado de um salário mínimo. O Papa não chega a isso. O Papa fala sobre um ―giro natural‖ que reparte os bens comuns aos quais todos devem contribuir segundo sua função social. Seria esse ―giro natural‖ a ―mão invisível‖, metáfora de Smith para explicar não só a organição da economia, mas a moral que lhe preside? É através de sua ação, aparentemente egoísta, perseguindo um interesse pessoal que o indivíduo contribui para a consecução do bem geral da sociedade, segundo Smith. O Estado deve garantir a fonte da justiça, único valor moral necessário à economia social. O governo deve prover, portanto, a justiça e não só, mas também a infraestrutura para o desenvolvimento do mercado e, contrapor as medidas debilitantes da divisão do trabalho sobre a capacidade moral dos trabalhadores (CERQUEIRA, 2000, p. 20). Isso, adverte Santos e Bianchi (2007) não tem nada a ver com o equilíbrio automático do mercado como a versão tradicional (ou canônica, como dizem os autores) cristalizou. Para esses autores, a ―mão invisível‖ tem um signficado geral, não exatamente relacionado àquela teoria econômica estrita, mas um mecanismo qualquer, que não explicita, que faz uma desconhecida conexão entre coisas. O Papa chega a discriminar quando o Estado deve intervir e quando não deve. No caso dos salários, por exemplo, é inoportuno. Tal deve ficar aos sindicatos e corporações. O Estado deve garantir a propriedade privada e impedir as greves. As associações de operários e sindicatos devem contribuir para a harmonia entre as classes. Organizando-se as leis, a colaboração e o governo, todos devem concorrer para que todos os membros da sociedade atinjam igual e mais rapidamente os bens do corpo, do espírito e da fortuna. O fim principal é o aperfeiçoamento moral e religioso. Em uma versão inicial da ―Rerum Novarum‖, os defensores de uma posição social da Igreja mais socialista, da chamada Escola de Liège, teriam feito uma lista ampla das funções do Estado, o qual teria um papel intervencionista mais destacado e rígido. Mas destacaria as idéias do jesuíta italiano Mateo Liberatore em ―Principi di 99 economia politica”. Nela propunha uma ação do poder público para ―defender o débil‖ e ―dirigir o forte‖. Leão XIII teria rejeitado essa posição por temer fomentar um socialismo mais doutrinário (Aubert apud CATHOLIC SENSIBILITY, 2005) (Liberatore apud BARUCCI, 1998, p. 20). A questão das corporações e sindicatos é bastante controversa dentro dos movimentos sociais e operários católicos pré-edição da Rerum Novarum. Jarlot (1959) é quem procura mapear as diversas tendências nela conjugadas. Quanto à questão corporativista, houve uma conjugação entre idéias do Jesuíta Liberatore e do Cardeal Zigliara. Enquanto o primeiro defendia o corporativismo operário, o segundo defendia um texto sem especificação desta questão. Ambos eram de acordo com uma composição mista entre patrões e operários nas corporações ou sindicatos. Na raiz, estavam as experiências européias e americana com associações católicas operárias no transcurso do século XIX. Quanto ao papel do Estado, Libaratore era intervencionista, Zigliara ao contrário e temia uma confusão entre público e privado. O texto caminha para o pensamento do grupo alemão que defendia uma intervenção protetora do Estado no exterior das Corporações, mas não no seu interior. (JARLOT, 1959) Adam Smith recorre ao direito natural da propriedade, base de toda a sociedade. Com esse direito o Estado deve garantir ao indivíduo a vida e a sua propriedade e punir quem a violar. Se um adversário atrapalha o outro numa competição, mesmo que seja popular (simpatia) vai receber a indignação do público. Para o Papa não é diferente: o direito à propriedade é um direito natural, cabendo ao Estado sua salvaguarda nas ―leis sábias‖ e na sociedade, coibindo manifestações injustas e ilegais como a greve, removendo causas que dêem motivação a revoltas, protegendo os bons operários da sedição por agitadores etc. Assenta-se, Leão XIII no mandamento sexto que condena cobiçar as coisas alheias. Alguns intérpretes da Rerum Novarum atribuem o peso da propriedade privada à idéia de pequena propriedade rural. Na versão pretendida pelos da Escola de Liège, herderios de D. Ketteler, o Papa teria feito um ataque direto à propriedade privada. (AUBERT apud CATHOLIC SENSIBILITY, 2005). Para o Pe Liberatore a defesa da propriedade privada, embora limitada pela justiça social ou por razão de caridade, significava a defesa da pequena propriedade rural propriedade comum socialista . (BARUCCI, 1998, p. 21) e o combate à 100 Leão XIII menciona um ―juiz equitativo‖ para o julgamento de um raciocino como o que diz bastar ao patrão pagar o salário contratado para que haja justiça. O bem comum, é um bem moral. A regra da moralidade está na religião. A idéia de um ―juiz equitativo‖ parece-se, também por analogia, a idéia de ―espectador imparcial‖ de Smith: se os homens têm naturalmente um egoísmo, esse precisa ser ―controlado‖ para não sobressair o seu desejo sobre o direito dos demais. Desta forma, a moralidade de uma ação está ligada à harmonia entre ela e o plano divino. Esse amor próprio não é ruim, embora, como já ficou dito, precisa conhecer o autocontrole. No entanto, os homens são inclinados tanto ao egoísmo e ao amor próprio, como para a felicidade dos outros seres humanos. (CERQUEIRA, 2000, p. 9 e 11). A experiência e a observação permitem às pessoas dentro da sociedade julgar com neutralidade o conteúdo moral das mais diversas situações. (SANTOS; BIANCHI, 2007). Para o Papa, este ―espctador imparcial‖ é o próprio Deus na pessoa de Jesus Cristo, revelador da verdade, da qual a Igreja é portadora e intérprete e para o qual todos deverão prestar conta das suas ações. A possibilidade de, em Smith, a economia funcionar apoiada apenas na busca do interesse pessoal, depende de um requisito moral e de uma condição ontológica. O sentimento é virtuoso quando promove o desígnio divino e não são previamente bons ou maus em si. A condição ontológica diz que quanto mais houver trocas entre os homens, condição natural do mesmo, mais riqueza gera a divisão do trabalho. A troca de produtos por trabalho acaba reduzida na troca de trabalho por trabalho. Oposto, o Papa prevê a conseqüente caridade na relação entre as classes sociais, quando um se sacrifica em prol do outro, matando o egoísmo; ao passo que Smith rejeita a caridade como universal em todos os homens, mesmo que concorde haver nela uma ação superior. Para Smith, o que a sociedade deve perseguir é a virtude da justiça. (CERQUEIRA, 2000, p. 11, 18-19). Diríamos que Smith sai da moral para a Economia, e esta se torna autônoma mesmo que não despreze sua origem. Já Leão XIII coloca um início e um fim moral na Economia. A aceitação do capitalismo de economia egoísta e de livre mercado tinha um caráter moral e moralizante, se se adotar as mais recentes interpretações de Adam Smith, trazendo-o muito mais próximo das visões católicas e, portanto, da visão de capitalismo a ser assumida pela Igreja. No entanto a nova interpretação de Smith como a proposição da Rerum Novarum deixam em cheque essa vertente liberal na qual o Estado tem de ser mínimo. 101 O Papa caminha sobre o fio da navalha. Todo o pontificado de seu antecessor Pio IX fora reacionário, sobretudo contra o liberalismo. Na oposição ao liberalismo e, em conseqüência mesmo dele, frutifica o socialismo comunista. Já Pio IX percebera essa nova ―cizânia‖ e lhe destinaria à mesma condenação dada ao liberalismo. Na ―Era dos Impérios‖, as idéias socialistas, vão ocupar cada vez maior espaço. Em função do crescimento desse, fortalecido no mesmo combate católico ultramontano contra o liberalismo, é que agora o Papa Leão XIII reage. O Papa caminha entre combater o socialismo e não ceder ao liberalismo: tarefa difícil demonstram os resultados do texto. Enfim, Leão XIII ao procurar indicar o espaço de ação do Estado e lhe interditar algumas esferas, move-se na tentativa de indicar um Estado Cristão, oposto ao Socialista e ao Liberal. Parece, sucumbir a um Estado Liberal, no entanto, ao propor um Estado garantidor da moralidade pública, moralidade cristã. O Papa está expressamente oferecendo aos operários uma alternativa ao crescente movimento operário de massa, crescente por toda a Europa (cf HOBSBAWM, 2002). Trata-se de fomento a um movimento operário cristão em curso em algumas igrejas européias como é a proposição de D. Ketteler, ao qual Leão XIII faz menção explícita em outros contextos. Para D. Ketteler o rico rouba ao pobre aquilo que Deus destinou a todos e por isso propõe um Estado com a finalidade de defender direitos dos trabalhadores (COMBY, 2001). Leão XIII não será tão enfático mas enfatizará como Ketteler a exigência de uma lei forte na defesa do tratamento moderno do trabalho. A Encíclica fala de ―leis sábias‖, rejeitou, como Keteller que a criação de sindicatos e organizações operárias fossem criadas por subvenções do Estado. O Pe Liberatore defendia uma posição extremada contra o liberalismo, o qual continha um germe de corrupção e podridão. Para ele a economia devia estar submetida à moral e não à política. Defendia o controle das horas de trabalho, do trabalho de mulheres e crianças e a necessidade da criação de um salário mínimo. A economia devia buscar o ―bem comum‖ no qual uma intervenção do Estado na economia seria útil. (Apud BARUCCI, 1998, p. 20). Essas idéias, em maior ou menor escala, estão na Encíclica. Solderini (segundo JARLOT, 1959), afirma que Tardini, quando Secretário de Estado, durante a Guerra, pôs-se a buscar os pré-projetos da Encíclica, tendo encontrado um grosso volume com rascunhos e correções do texto. Essa descoberta foi entregue a Antoniazzi que identificou os projetos e os datou: um 102 primeiro projeto do Pe Liberatore e um segundo do Cardeal Zigliara. O segundo foi modificado por Liberatore e depois pelo Cardeal Mazella. A terceira versão foi traduzida para o latim por Volpini e modificada, refeita em outra ordem por Boccali, ambos secretários de Leão XIII. Acabou retocada e publicada em 15 de maio. Ao consultar a bibliografia disponível sobre a Rerum Novarum e a necessária busca na literatura estrangeira (com grande sacrifício) das respostas às perguntas que vinham, posso dizer que os historiadores da língua portuguesa se preocuparam e se preocupam com sua continuidade: são a reflexão que se fez sobre a mesma nos 120 anos subseqüentes. Em torno dela foi instituída a idéia de uma ―Doutrina Social da Igreja‖ a qual tomam alguns desses trabalhos a visão da constituição intencional e deliberada da história e não uma mera reação e ―aggiornamento‖ das idéias católicas aos novos tempos. Se se formou uma DSI a partir da Encíclica não pretendo discutir, mas não foi com essa intenção que o Papa a propôs. Não é considerada a construção histórica da Carta. Neste sentido, essas análises pecam ao atribuir à mesma papeis os quais foram tidos com forte oposição, ou seja, se lhe atribuem funções e ideais que tratou-se de tentar subverter: há uma firme intenção na Carta de negar tanto o liberalismo quanto o socialismo propondo uma ―terceira via‖ para usar um termo atual. Insisto em afirmar que o termo reacionário não tem aqui conotação adjetiva, mas substantiva. Reacionária é a ação própria da Igreja de reagir ao estado da materialidade existencial e histórica, mesmo às idéias, ao contrário de propor e produzir teses e ações concretas novas ou inovadoras a não ser, no exercício dessa reação, motivada, via de regra, por um sentimento de ameaça aos valores perenes da doutrina cristã da qual se auto intitula portadora e guardiã. Ao supor qualquer ligação da Encíclica com o pensamento de Adam Smith e pela falta de referências explícitas no texto da mesma a qualquer ciência humana que não a tomista, descortinou-se todo um pensamento reacionário ao estado de coisas que a Revolução Industrial criou na Europa da ―Era dos Impérios‖. Já iam adiantados os estudos do liberalismo econômico com suas idéias relativas ao papel do Estado e sua intervenção na economia, mesmo das idéias ―canônicas‖ sobre Adam Smith; crescente por toda a Europa era o número dos partidos operários e o sindicalismo classista promovido pelos socialistas (sobretudo a leste) em oposição ao anarquismo e ao liberalismo. 103 A reação oficial da Igreja a esse estado de coisas é já muito tardia. Dentro das diversas Igrejas Locais49 como a Alemã, a Americana, a belga, a francesa, a Suíça, a e mesmo a italiana muito se produziu antes disso; basta citar a posição assumida por D. Ketteler na Alemanha, a escola de Liège na Bélgica, as Conferências Vicentinas criadas na França por Frederico Ozanan, a União de Friburgo na Suíça, o pensamento econômico do padre jesuíta Mateo Liberatore na Itália, os Círculos operários fundados por René de la Tour du Pin e Albert de Mun, o ―Secretariado do povo‖ criado na Suíça por Decurtius; o arcebispo de Baltimore, James Gibbons defendendo dos ―Cavaleiros do Trabalho‖; o cardeal Massaia na África. O paralelo com as idéias de Adam Smith é instigante. A Encíclica reuniu em torno de si tanto pensadores de verga econômica quanto social. Não seria possível pensar a economia capitalista sem fazer qualquer remissão a Adam Smith. De fato, o que se fez foi apropriar-se do que se pôde cristianizar dentro das idéias correntes, organizando e selecionando as idéias produzidas no seio da própria Igreja. Mas, a marca dos estudos em torno da Encíclica é o sigilo. A comissão que preparou a Rerum Novarum era uma comissão secreta. A atribuição de autoria ao Papa é verdadeira, pois, em última instância, é ele que a vai mandar publicar com os poderes decorrentes de seu báculo. Como tão poderoso é o documento no ordenamento das idéias cristãs, não há citações profanas. Elas ficam subentendidas e se perdem no tempo com as sucessivas interpretações que se faz do texto. Não fosse a proposição do indiciário, não nasceriam as questões que permitiram chegar a essas conclusões. REFERÊNCIAS BARUCCI, Piero. I cattolici e il mercato. Studi e note di economia 1998 Fascicolo 3 Disponível em: http://www.mps.it/NR/rdonlyres/6432FF04-C5C0-4D13-AAF33F57CD2728FB/34377/i1_barucci.pdf Acesso em 05/08/2010. BIGO, Pierre. A doutrina social da Igreja. São Paulo: Loyola, 1969. pp. 40-64. 49 Evitar aqui o termo nacional é importante para não chocar com os estudos sobre a formação dos Estados Nacionais nem entrar em polêmica com as divergências anti ultramontanas dentro da própria Igreja. 104 CATHOLIC SENSIBILITY. 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Gomes Filho 50 Resumo: Visto que há mais de um século o conceito de religião/sagrado deixou de ser um domínio exclusivo da Teologia ou das Ciências da Religião, sendo incorporado por outras áreas do conhecimento como História, Sociologia, Antropologia e Geografia, percebemos que seu entendimento na produção científica oscilou em diversos momentos entre um excesso de racionalização/funcionalização e uma compreensão demasiadamente não-racional do conceito. A versatilidade, os excessos e equilíbrios do conceito de religião/sagrado compõem o objeto de reflexão deste trabalho, que realiza um balanço historiográfico destas compreensões visando uma discussão que abranja tendências teóricas atuais, relacionando-as às principais tradições teóricas que foram vigentes ao longo do século XX. Há mais de um século os estudos do fenômeno religioso deixaram de ser um domínio exclusivo da Teologia, ou das Ciências da Religião. Sua incorporação pela Antropologia, Sociologia, Geografia e História trouxe a tais estudos uma versatilidade e abordagens impensadas em tempos anteriores. Embora, por um lado, sua apropriação por tais ciências tenha gerado embates epistemológicos importantes para a compreensão do fenômeno religioso em sua esfera propriamente social, por outro, a demasiada racionalização desse conceito ofuscou, em certo momento, uma dimensão essencial para sua compreensão, algo que Rudolf Otto chamou de esfera ―não-racional‖. Estes embates epistemológicos e conceituais acerca da compreensão da religião ocorrem pelo fato de o fenômeno religioso ser um objeto de estudo diferenciado dos demais objetos do conhecimento, uma vez que sua manifestação empírica e social não se dá somente através de fatores propriamente sociais, nem tampouco unicamente em dimensões antropológicas, ou propriamente metafísicas. Esta dupla-face do fenômeno religioso (dimensão social/racional e dimensão metafísica/não-racional) gerou, do final do século XIX aos dias atuais, excessos interpretativos de ambos os lados, nos quais ora se entendia a religião em uma 50 Universidade Federal de Ouro Preto [email protected] 106 esfera demasiadamente não-racional, ora a reduzia simplesmente a estruturas estruturantes de relações e dominações sociais. Neste sentido, o presente trabalho visa realizar um balanço acerca da produção intelectual clássica e atual sobre o fenômeno religioso, no que tange seu entendimento teórico ora como experiência não-racional com o transcendente, ora como fenômeno racional de natureza social, visando fomentar um debate acerca do que se tem produzido hoje neste campo do conhecimento, de forma evitarmos possíveis reducionismos teóricos que impedem um qualitativo avanço nos estudos de religião pelas ciências humanas e sociais. I Compreender teoricamente o fenômeno da religião implica, antes de tudo, entendê-lo em suas distintas naturezas: antropológica e social. Tais naturezas, em certos casos opostas, em outros complementares, constituem um dos principais problemas encarados por teólogos, cientistas sociais, cientistas da religião, antropólogos e historiadores (dentre outras categorias intelectuais) ao longo do século XX. Todavia, percebemos, além de um evidente e importante avanço teórico e epistemológico sobre o tema, excessos teóricos privilegiando uma ou outra natureza do fenômeno, não raramente reduzindo a religião em si a somente um aspecto de sua natureza. 1. A religião na escola sociológica francesa A sociologia da religião francesa, marcada pela sobreposição do caráter social da religião sobre seu aspecto antropológico, tem como principais autores Henry Hubert, Marcel Mauss e, principalmente, Emille Durkheim. Nesta abordagem francesa o sagrado ganha um peso quase que autônomo em sua esfera social. Sua dicotomia com o profano é evidenciado e definitivamente separado por Durkheim, marcado, não obstante, por sua importância e sobreposição social. Já antes da publicação mais importante de Durkheim na sociologia da religião –“As formas elementares da vida Religiosa” – Hubert e Mauss inauguravam esta interpretação funcionalista da religião, dotando a esfera do sagrado de uma natureza humana, coletiva e social, em sua obra conjunta “Introduction à l’analyse de quelques phénomènes religieux” de 1906. A hipótese de Hubert e Mauss identificava, portanto, o sagrado, a um nível humano e natural, como aquilo que, 107 para o grupo e para os seus membros, qualifica a sociedade. Um sagrado assim concebido dissolvia-se, porém, numa forma de transcendência, não metafísico-ontológica, mas social, e coletiva, no sentido de que o indivíduo, para exprimir-se e para existir, devia necessariamente integrar-se num sistema social e sentir a força social, a força constituída no grupo, como uma realidade a ele superior. (Di Nola, 1987, p. 134-5) Todavia, embora bastante influenciado pelo pensamento de Hubert e Mauss, o avanço de maior destaque dado pela escola sociológica francesa foi indubitavelmente feito por Durkheim. Este, ao ampliar, sistematizar e complexificar a herança ideológica dos autores citados, superou os limites interpretativos do sacrifício e das práticas mágico-rituais, e, ao adotar como área de pesquisa todo o material australiano e estadunidense até então conhecido, interpretou o fato religioso ―elementar‖ como substrato da dinâmica e dialética da relação sagrado/profano. O âmago do pensamento de Durkheim, embora evidentemente funcionalista – na medida em que busca compreender a função social desempenhada pela religião, bem como por suas partes em relação ao próprio fenômeno – repousa em uma abordagem tipicamente essencialista. Isto pode ser notado uma vez que o sociólogo parte do princípio de que há um componente comum, elementar, e, portanto, essencial, em todas as formas de religião, sendo que, o método ideal para sua compreensão consiste em desvendar tais essências em suas origens, tendo como ponto de partida as formas mais ―simples‖ ou ―menos complexas‖ de religião. Como é possível chegar a atingi-los [os elementos permanentes que constituem as religiões]? Certamente, não é observando as religiões complexas que aparecem no decorrer da história. Cada uma delas está formada de uma tal variedade de elementos que é muito difícil distinguir nelas o secundário do principal, o essencial do acessório. [...] Porque todas as religiões são comparáveis, porque elas são todas espécies do mesmo gênero, existem necessariamente elementos essenciais que lhes são comuns [...] Mas estas semelhanças exteriores supõem outras que são profundas [...] O acessório, o secundário, os desenvolvimentos de luxo ainda não vieram esconder o principal. Tudo está reduzido ao indispensável, àquilo sem o que não poderia haver religião. Mas o indispensável é também o essencial, isto é, o que antes de tudo importa conhecer. (Durkheim, 2003, p. 9-11) Neste sentido, o conceito de religião entendido por Durkheim, embora muitos intérpretes o reduza à simples oposição entre sagrado/profano, transcende tal dicotomia, compreendendo a religião em si como um fenômeno em certa medida antropológico, embora dado, exercido, compreendido e reproduzido coletivamente e 108 socialmente. Essa dicotomia, no entanto, ganha em importância uma vez que Durkheim a vê como sendo a forma pela qual a sociedade entende e representa o fenômeno religioso. Neste sentido, a divisão do mundo nestes dois cosmos distintos, significaria, no pensamento de Durkheim, a representatividade total na qual se classifica, compreende e se vivencia a própria existência das formas elementares da religião. Segundo Durkheim, a bipolaridade entre coisas sagradas e profanas, embora distintas, antagônicas e irredutíveis, não pode ser entendida como intransponível em momento algum, pois ainda que as categorias representem uma natureza inteiramente distinta das realidades religiosas, a mudança desta mesma natureza (sagrada ou profana) pode ser realizada através de elementos sociais constitutivos da própria religião (como ritos, sacrifícios, jejuns, etc.). A coisa sagrada é, por excelência, aquela que o profano não deve e não pode impunemente tocar. Claro que essa interdição não poderia chegar ao ponto de tornar impossível toda comunicação entre os dois mundos, pois, se o profano não pudesse de maneira nenhuma entrar em relação com o sagrado, este de nada serviria. Mas esse relacionamento além de ser sempre, por si mesmo, uma operação delicada, que requer precauções e uma iniciação mais ou menos complicada, de modo nenhum é possível sem que o profano perca suas características específicas, sem que se torne ele próprio sagrado num certo grau e numa certa medida. Os dois gêneros não podem se aproximar e conservar ao mesmo tempo sua natureza própria. (Idem, p. 23-24) Em resumo, podemos compreender o pensamento de Durkheim, bem como de Hubert e Mauss, e mesmo da escola sociológica francesa como sendo um momento de ascensão do pensamento funcionalista dentro dos estudos de religião. Todavia, não somente do funcionalismo, mas de um essencialismo que já era recorrente desde pensadores como Tylor, Marett e Malinowski, e agora ganhava em sistematização e complexidade em Durkheim. O pensamento durkheimiano, embora seja frequentemente descrito na sociologia da religião como uma simples redução do fenômeno religioso à dualidade sagrado/profano, mostra-se em ―As formas elementares da vida religiosa‖ como uma análise muito mais profunda e complexa, em que o cerne epistemológico consiste muito mais em compreender os elementos essenciais que compõem o fenômeno como um todo – visto através de suas partes, heterogeneidades e ambiguidades – do que em uma simples redução da questão à dualidade, como frequentemente é descrito por intérpretes atuais. 109 2. Dominação e associação religiosa no pensamento alemão Embora seja pouco descrito em manuais recentes de ciências e história da religião, o pensamento de Max Weber e Ernst Troeltsch são de fundamental importância para a compreensão científica do fenômeno religioso. Influenciado pelo pensamento de Troeltsch, Weber tem uma compreensão da religião enfatizada na associação e dominação sociais, bem como no desenvolvimento de éticas religiosas importantes para o desenvolvimento político, econômico e social. As relações de hierarquia que compõem a organização das religiões, desde as mais simples às mais complexas são temas recorrentes nos estudos de Weber, que busca analisar de que forma as relações de poder – abarcando tanto a hierocracia como o carisma – produzem e reproduzem a própria organização da religião. Todavia, é importante ressaltarmos que a sociologia da religião weberiana não se funda apenas em uma análise funcionalista do fenômeno. Assim como em Durkheim, a complexidade do pensamento de Weber nos indica a necessidade de encararmos seus desdobramentos de maneira mais atenciosa e profunda. Não obstante, nos resguardaremos de analisar somente uma parte de seu pensamento que muito nos interessa: a associação e dominação religiosa. Uma das grandes apostas de Weber na sociologia da religião confere importância às relações entre a ―determinação religiosa‖ e a ―ética econômica‖ de uma dada sociedade. Podemos interpretar no pensamento weberiano a existência de uma relação dialética entre a forma como a religião determina eticamente as relações econômicas de uma sociedade, e a forma pela qual as relações econômicas determinam o etos religioso daqueles que nela estão inseridos. A determinação religiosa da conduta na vida, porém, é também um e – note-se isto – apenas um dos elementos determinantes da ética econômica. É claro que o modo de vida determinado religiosamente é, em si, profundamente influenciado pelos fatores econômicos e políticos que operam dentro de determinados limites geográficos, políticos, sociais e nacionais. (Weber, 1982, p. 310) Uma das maiores divergências conceituais, todavia, presente no campo das ciências humanas se refere ao conceito de ―poder‖. Tal expressão, de difícil compreensão e significado é tida por Weber como um conceito ―sociologicamente amorfo‖ (Weber, 2000, p. 33) e é exatamente isto que nos possibilita o emprego deste vocábulo nos mais diversos contextos, especialmente ao se tratar de disputas e relações sociais; no caso deste presente trabalho, no campo religioso. 110 Ainda segundo Weber, quando se trata de um indivíduo, o ―poder‖ pode ser entendido como sendo ―toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade‖ (Idem). Todavia, ao se tratar de um poder emanado de uma instituição religiosa, ou mesmo de um líder carismático que fala em nome da religião, ou ainda de um mago que simplesmente a exerce, é necessário percebermos que se trata de uma forma diferente de poder, se trata do ―poder religioso‖, ou poder sagrado. No caso específico da Igreja Católica podemos considerá-la, segundo as interpretações de Weber, como sendo uma ―empresa, ou associação hierocrática‖. Isto decorre pelo fato de que a Igreja e a Religião formam um par indissociável, com estratégias de poder que faz dessa junção uma ―associação de dominação‖. Isto porque ela exerce o controle ou o domínio sobre os bens de salvação, tendo, portanto, o poder de concedê-los ou de negá-los aos fiéis, variando de acordo com seu comportamento Todavia, ao analisarmos o pensamento de Weber, especialmente no que tange sua compreensão e análise acerca das relações de poder e dominação religiosa, tendemos a julgá-lo como parte de um pressuposto funcionalista, que se fundamenta apenas no aspecto social e ―profano‖ da religião. Tais interpretações são perigosas, principalmente pelo fato – já exposto – da complexidade do pensamento weberiano, que muitos intérpretes – por preguiça ou descuido – preferem não discutir. A tais afirmações acerca de um possível reducionismo da religião à suas funções sociais, Weber responde: Nossa tese não é a de que a natureza específica da religião constitui uma simples ―função‖ da camada que surge como sua adepta característica, ou que ela represente a ―ideologia‖ de tal camada, ou que seja um ―reflexo‖ da situação de interesse material ou ideal. Pelo contrário, uma interpretação errônea mais básica do ponto de vista dessas discussões dificilmente seria possível. (Idem, 1982, p. 312) Por outro lado, seguindo a linha de pensamento weberiano, sendo ainda um de seus principais influenciadores, Ernst Troeltsch tem grande relevância nos estudos de religião. Embora seja de formação teológica, Troeltsch possui em suas obras um caráter de grande importância para a sociologia e história da religião. Tal caráter se funda especialmente em sua análise acerca do pensamento social cristão, e as formas pelas quais esse pensamento influencia, institui e reproduz a ética e moral cristã no mundo ocidental. Sua principal obra do gênero “The social teachings of Christian Churches”, revela uma interessante análise da forma pela qual a ética 111 cristã desenvolvida no ocidente está profundamente influenciada pelo pensamento político, e, embora busque constantemente uma autonomia, permanece em uma relação – no mínimo – de mútua influência. This, however, means that the churches themselves are also strongly influenced in their turn by the political and class interests which these parties represent. To some extent, however, the churches are trying to exercise their influence in a practical way on religious, non-party lines, through movements like the Protestant Social Congress and by the promotion of scientific literature on social questions. (Troeltsch, 1992, p. 23) No entanto, para Troeltsch, a compreensão das relações entre ética, política e religião só pode ser feita a partir de uma análise histórica de um de seus principais fundamentos: a doutrina. As doutrinas religiosas não raramente são entendidas sob o prisma da do funcionalismo, de forma que se compreenda a função de coação desempenhada pela doutrinação religiosa e seus pressupostos éticos e morais. De fato, quando as pensamos em seu âmbito social, tais interpretações não estão deslocadas. Todavia, o pensamento de Troeltsch dá à questão uma nova luz, através da qual percebemos muito mais do que uma simples função social da doutrina religiosa. Esta, uma vez que é entendida como uma forma pela qual a própria realidade religiosa, e em certa medida, social, se produz e reproduz, pode ser percebida em uma dimensão dialética formativa, ora de grande força, ora de pouco calibre. It is true, of course, that a sociological point of view which issues from universal ideas, like the Christian regulation of connection between the individual and the community, certainly constitutes a general fundamental sociological theory, which in some way or another will exert an influence upon all social relationships. This influence, however, is only intermittent; sometimes it is strong and sometimes it is weak, sometimes it is clear and sometimes it is confused, and it can never be held to be part of the social tissue of relations itself. (Idem, p. 30) Portanto, ao analisarmos o pensamento de Weber e Troeltsch em seu contexto de produção, percebemos uma efervescência de estudos de religião em que a esfera social pesa sobre a esfera antropológica, sejam estas interpretações tipicamente funcionalistas, ou não. Todavia, é importante ressaltarmos que tais visões eram contrapostas a outras, através das quais o sagrado ganhava um caráter inteiramente contrário, visto como experiência humana com o transcendente, por isso, não passível de racionalização. Neste sentido, tais compreensões do fenômeno religioso passavam a privilegiar uma dimensão muito mais antropológica do que social do fenômeno religioso em si. 112 3. A dimensão não-racional do sagrado Se, por um lado, as interpretações teóricas em que a dimensão social do sagrado foi supervalorizada ganharam grande apreço e interesse por parte das ciências sociais, o contrário – não espantosamente – não teve a mesma recepção. Ainda hoje percebemos uma grande dificuldade por parte dos cientistas sociais e historiadores de um modo geral em lidar com teorias em que a dimensão antropológica do sagrado se sobressaia às correspondentes funções e gerenciamentos sociais. Autores como Lévy-Bruhl, Söderblom, Otto e Eliade, são tratados com bastante desconfiança, quando não atacados diretamente, acusados de levarem ao conhecimento científico um caráter teológico da religião, ou mesmo taxados de proselitistas. Entendemos tais dificuldades como fruto de uma tendência ainda presente no pensamento científico de demasiada racionalização das relações humanas de um modo geral. Tudo que ocorre ―sobre a face da terra‖ parece ser previamente meditado, e seguir um conjunto de interesses de dominação de classe, que em boa parte dos casos, não parece levar em conta dimensões que transcendem simples relações de forças. Não defendemos, não obstante, que tais relações, tais interesses, e tais dominações sociais não existam; pelo contrário, justificamos que essas interpretações tem contribuído em muito para o avanço do conhecimento das relações sociais como um todo. Todavia, no que tange o fenômeno religioso, tais interpretações não são suficientes para abarcar sua compreensão, pois este evidentemente não é composto somente de relações de força e interesses sociais; algo a mais está presente na religião que leva o ser humano a segui-la e dela necessitar desde as sociedades mais primitivas. Este ―algo‖ a mais, são categorias privilegiadas pelos citados autores, e certamente compõem uma dimensão ―irracional‖ daquilo que entendemos por religião. Embora uma das raízes teóricas da compreensão de uma dimensão nãoracional do sagrado seja o pensamento de Lucien Lévy-Bruhl e Nathan Söderblom, o passo adiante, e talvez mais importante, foi dado por Rudolf Otto, que ganhou grande destaque a partir da publicação de sua obra “Das Heilige” em 1910. A grande importância das teorias de Otto para a compreensão do fenômeno religioso se dá no fato de que foi ele o responsável por sistematizar e complexificar de fato a dinâmica 113 entre o racional e o não-racional na religião. Para Otto, o elemento denominado ―sagrado‖ na religião deveria ser entendido como composto por duas esferas dinâmicas: a racional, através da qual se dão as relações sociais da religião; e a não-racional, na qual a experiência religiosa ganhava em substância e efeito. Esta dimensão não-racional, elemento principal de reflexão e sistematização em sua obra, é de especial importância para Otto, a que o autor atribui o nome de “numinoso”. Segundo Di Nola, Otto se propõe a chamar o sagrado de numinoso porque ―essa expressão não afirma nada‖ (Di Nola, p. 143). Na verdade, uma leitura mais atenta perceberia que Otto se propõe a essa troca semântica por perceber no nome ―sagrado‖ uma valoração moral, a que o que ele chama de numinoso não possui. Em todo caso, o numinoso corresponde a uma categoria que exprime uma experiência humana com uma realidade não-cognoscível. O ―sagrado‖, ―santo‖, ou mesmo ―Qadoch, Hagios, Sanctus ou Sacer‖ (Otto, 1992, p. 12), em diversas línguas, seria ―o resultado final da esquematização gradual e da saturação ética de um sentimento original específico‖ (idem). Ou seja, o sagrado em si compõe-se como resultado final da saturação entre a substância ―primitiva‖, original e transcendental (numinoso) e as atribuições morais e éticas valoradas socialmente pela religião ou cultura (sagrado). Neste sentido, ao contrário do que muitos de seus críticos interpretam, Otto não propõe acreditar no sagrado como sendo uma categoria unicamente voltada para e experiência transcendental. Pelo contrário, em suas análises Otto demonstra que a experiência humana com o numinoso só pode ser objetivada na medida em que é mediada pela cultura, ou valores socialmente estabelecidos. Mais adiante, uma nova guinada nas interpretações teóricas do sagrado, que tomam por base uma maior valoração da sua esfera antropológica/não-racional, pode ser notada nas obras de Mircea Eliade. As recepções de Eliade nas ciências da religião e sociais foi bastante positiva ao longo do século XX – embora na transição para o XXI seu pensamento tenha sido bastante (e injustamente) desconsiderado. Essa boa receptividade no século passado se deve a um trabalho de grande fôlego realizado pelo autor, através dos quais elaborou uma sofisticada teoria do sagrado, e, consequentemente, da religião. Essa teorização do sagrado, não obstante, teve como ponto de partida uma retomada da oposição entre sagrado e profano. Para Eliade, ―o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser 114 no mundo‖ (Eliade, 2001, p. 20). Isto significa, antes de tudo, que a oposição entre as duas esferas partem do princípio de que é a própria experiência humana no mundo que institui um caráter sagrado, ou profano. Ao contrário de muitos de seus críticos, portanto, Eliade não pretende desconsiderar a experiência social humana em favor de uma total valorização da experiência transcendental. Pelo contrário, a relação entre as duas formas de experiência constituem a maneira pela qual o ser humano se relaciona com o mundo; são duas faces de uma mesma realidade. Esta forma de se encarar a relação sagrado/profano como formas de experiência do Homem no mundo ganha em reforço teórico com a categoria de hierofania, que constitui a base fundamental da teoria de Eliade acerca do sagrado. Para o autor, hierofania constitui a maneira pela qual o sagrado se manifesta para o Homem – ou a própria sacralização por ele realizada –, sendo este um dos principais pontos de críticas de seus opositores, pois uma leitura rápida nos deixa a entender que Eliade parte do pressuposto da existência do transcendental (a priori) se manifestando como que autonomamente ao humano em forma de hierofania. Esta afirmação não está de todo incorreta, pois de fato, partindo das teorias de Otto, Eliade tem como pressuposto a existência de um sagrado a priori, todavia não é esta a principal preocupação do autor; pelo contrário, Eliade procura mostrar com a categoria de hierofania de que forma o homem, nas mais diversas culturas, se relaciona com tais manifestações do transcendental, constituindo uma ―história comparada de religiões‖, ou, mais precisamente, uma ―fenomenologia religiosa‖. Em resumo, ao analisarmos as perspectivas teóricas que tomam como ponto de análise uma esfera antropológica/não-racional da religião, percebemos que embora haja uma relação clara desta com perspectivas teológicas (sagrado como elemento a priori, por exemplo) muitas críticas a esta perspectiva teórica não tem boa consistência, sendo muitas vezes superficiais e reducionistas. É evidente que uma supervalorização da esfera não-racional de uma forma ―irracional‖ não é de modo algum sadia ao caráter científico, todavia o mesmo também é válido para um excesso de valorização do caráter social da religião. 4. A perspectiva da antropologia cultural: rito e religião 115 Quando nos referimos à antropologia cultural da religião faz-se necessário distingui-la do que chamamos de ―dimensão antropológica‖ da religião. A diferença se dá no fato de que a primeira constitui-se em uma disciplina, uma área do conhecimento próprio da antropologia cultual, voltada para os aspectos religiosos das sociedades, enquanto a segunda refere-se a uma dimensão teórica dos estudos de religião que privilegia os aspectos antropológicos estruturais e elementares que compõem os fenômenos religiosos. É necessário ressalvarmos que ambos não são inerentes um ao outro. Tratando-se mais especificamente dos estudos de religião realizados pela Antropologia cultural, percebemos ao longo do século XX um número bastante crescente de estudos na área. Tal avanço deve-se especialmente à ascensão de outra área do conhecimento: a etnologia. Segundo Massenzio (2005), convencionouse chamar de antropologia religiosa o encontro entre a história das religiões e a antropologia cultural, ―cujo âmbito aparece marcado, em geral, pela complexidade teórica e pela riqueza dos estímulos culturais‖ (Idem, p. 39). Um dos aspectos religiosos mais elementares da religião, de estudo privilegiado na antropologia, bem como na própria etnografia, refere-se ao rito. As diversas formas de rito, certamente, constituem um dos momentos mais privilegiados para o contato humano com o sagrado, igualmente para a experiência individual e coletiva de interação entre os homens e as forças que considera transcendentais. A análise de ritos religiosos pela antropologia confere importância especial para os estudos de religião na medida em que estes representam, por excelência, a própria experiência religiosa, seja esta de manifestação, controle, produção ou reprodução. Dentre os principais autores da antropologia religiosa, optamos por destacar Victor Turner, que, a partir de sua principal obra ―O processo ritual‖ (1969), marcou os estudos de religião por instituir a categoria de liminaridade. Tendo como objeto de estudo as comunidades africanas ndembo, Turner faz uma rica análise dos processos rituais sociais e religiosos por que passam os indivíduos e a coletividade deste povo em particular. A partir disso, o antropólogo institui categorias generalizantes como liminaridade e communitas, na tentativa de compreender como um todo as atividades religiosas ritualísticas em que a dualidade sagrado/profano são suspensas. Segundo Turner: 116 os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos, naquelas várias sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais. (Turner, 1974, p. 117) A importância das análises de Turner se dá na medida em que, uma vez que se institui processos, ritos, divindades, ou qualquer outro atributo inserido em uma dimensão de liminaridade, percebemos que a rigidez da separação entre sagrado e profano, e mesmo entre transcendente e imanente não são completamente opostas e antagônicas, mas podem, em momentos peculiares, e especialmente, em processos rituais, fundir-se, ou mesmo inverter sua ordem cosmológica ―natural‖ (sagrado como sagrado, profano como profano). Esta constatação teórica de Turner certamente abriu caminhos nos estudos de religião para um equilíbrio entre interpretações privilegiadoras de uma dimensão social da religião e seu oposto. 5. O sagrado e a modernidade em Peter Berger e Thomas Luckmann Ao avançarmos na presente discussão em torno do equilíbrio interpretativo acerca do fenômeno religioso, dois autores de relevante contribuição, sem os quais não poderíamos avançar o debate, são Tomas Luckmann e Peter Berger. Seja em suas obras conjuntas, ou separadamente, o mérito dos presentes autores está, dentre outros, em estabelecer entre religião, sociedade e modernidade interpretações que vão desde a compreensão do funcionalismo social das instituições religiosas à sua dinâmica entre a transcendência e experiência com o sagrado. No que tange a dimensão social da religião, a relação traçada por Berger e Luckmann, acerca da produção e controle de sentido pelas instituições religiosas e a legitimação da própria religião na modernidade, é de fundamental importância para compreendermos a suposta ―crise da religião‖ na era moderna. Para Luckmann, assim como para Berger, a modernidade minou não a religião em si, mas seu monopólio institucional. O fenômeno da secularização, especialmente em Luckmann, reflete não uma crise da religião na modernidade, mas um recuo do 117 poder institucional religioso, que em última instância não representa, per se, a própria religião. Neste sentido, a interpretação de Luckmann acerca da religião reflete uma definição na qual o fenômeno religioso deve ser entendido como uma organização social das relações com a transcendência. Ou seja, para o autor, a compreensão de religião passa tanto pelo pólo social/institucional, como pelo experimental/antropológico. Portanto, sendo a religião uma constante antropológica (todavia de objetivação histórica e social), esta não pode ser generalizada em seus aspectos institucionais, uma vez que estes estão inseridos em um processo temporal e contextual, mas somente em seus aspectos antropológicos, tidos como universalizáveis por sua tendência à naturalização. The conceptual framework of sociological functionalism also fail in providing an answer to our basic question. We may be inclined, perhaps, to turn to it for explanatory schemes in the study of societies which possess specialized religious institutions. One should not preclude, a priori, the possibility that a structural – functional analysis, for example, might illuminate the relation between economic, political and religious institutions in some societies. Unfortunately, however, sociological functionalism, as exemplified today by structural-functionalism, presupposes precisely what is put in question here. Religious institutions are not universal; the phenomena underlying religious institutions or, to put it differently, performing analogous functions in the relation of the individual and the social order presumably are universal. We must, therefore, consider problematic what is taken for granted in sociological functionalism. (Luckmann, 1972, p. 43. Grifo nosso) Por outro lado, quando analisamos o pensamento e as análises de Berger, separadamente de Luckmann, tendemos a interpretá-lo como adverso ao pensamento de seu cooperador. Isto se deve ao fato de Berger evidentemente tomar como objeto de análise privilegiado as instituições religiosas, e seus aparatos de poder simbólico. Tais interpretações parecem tender a uma visão determinista do fenômeno religioso, bem como a todos os problemas até então aqui analisados. Todavia, em análise mais cautelosa do pensamento de Berger percebemos claramente que suas posições não tendem à generalização das relações sociais e institucionais da religião ao fenômeno religioso como um todo. Pelo contrário, seu ―funcionalismo‖ parece reconhecer a necessidade se abarcar à compreensão da religião seus aspectos antropológicos. É preciso sublinhar muito fortemente que o que se está dizendo aqui não implica numa teoria sociologicamente determinista da religião. Não se quer dizer que qualquer sistema religioso particular nada mais seja senão o efeito ou ―reflexo‖ dos processos sociais. Pelo contrário. O que 118 se afirma é que a mesma atividade humana que produz a sociedade também produz a religião, sendo que a relação entre os dois produtos é sempre dialética. É, assim, igualmente possível que, num determinado desenvolvimento histórico, um processo social seja o efeito da ideação religiosa, enquanto em outro desenvolvimento pode se dar o contrário. A implicação do enraizamento da religião na atividade humana não é de que a religião seja sempre uma variável dependente na história de uma sociedade, e sim que ela deriva a sua realidade objetiva e subjetiva dos seres humanos, que a produzem e reproduzem ao longo de suas vidas. (Berger, 1985, p. 61) A disparidade, no entanto, que podemos evidenciar entre as análises de Luckmann e Berger, quando analisados separadamente, funda-se no fato de que se por um lado o primeiro enfatiza o caráter antropológico da religião, privilegiando sua dimensão não-institucional, o segundo, por outro lado, enfatiza o fenômeno religioso voltado para seu caráter institucional, bem como suas relações de poder, controle e reprodução social. Entretanto, ambos partem igualmente de interpretações teóricas não radicalizadas em seus pólos epistemológicos, de forma que tanto em uma quanto em outra percebemos uma tendência talvez não ao equilíbrio propriamente dito, mas pelo menos a um não-determinismo nem para a dimensão social, nem tampouco para a antropológica da religião. Enfim, ao realizarmos um breve balanço das produções sobre interpretações teóricas acerca da religião ao longo do século XX – naquilo que podemos entender por autores clássicos, ou, pelo menos, mais influentes na área – percebemos que o dualismo interpretativo profana/social/institucional que privilegia da radicalmente religião, ora ora sua a dimensão dimensão sagrada/antropológica/transcendental se funda como um dos principais problemas a serem debatidos em torno do tema. É evidente que não pretendemos classificar, ou mesmo rotular, um ou outro autor em uma ou outra tendência específica de forma rígida. Pelo contrário, o que propusemos com este balanço é apenas fomentar um debate que se coloque à luz de críticas as teorias produzidas até então, que na atualidade geram interpretações tendidas à radicalização de uma ou outra tendência, dificultando uma melhor compreensão da complexidade do fenômeno religioso. II Ao intentarmos abordar a problemática dos estudos teóricos da religião não pretendemos abarcar todas as suas discussões em geral, uma vez que são muito variadas e praticamente impossíveis de serem discutidas em um mesmo trabalho 119 acadêmico. Não obstante, uma das problemáticas mais discutidas na última década – pelo menos em nível internacional – refere-se ao chamado ―novo paradigma‖ da Escolha Racional da Religião, proposto inicialmente por Rodney Stark, em 1985, mas problematizado e intensamente discutido a partir de meados dos anos de 1990, quando passou a produzir obras junto ao economista Laurence Iannaccone e o sociólogo Roger Finke. Em resumo, a ―Teoria da Escolha Racional da Religião‖ (RCTR) tem como proposta analisar a religião a partir de pressupostos das ciências econômicas, abordando como eixo principal as relações entre ―procura e oferta‖ religiosa diante de problemas como o monopólio e a regulação estatal sobre a ―economia‖ e ―mercado‖ religiosos. A partir disso, os teóricos do ―novo paradigma‖, intentam que, na modernidade, os consumidores da religião escolham racionalmente a ―firma religiosa‖ que melhor lhe ofereça produtos de seu interesse, focando, assim, nas estratégias de ―marketing‖ da oferta religiosa, e não mais somente na problemática da demanda. Esta nova teoria da religião veio em resposta ao paradigma de Peter Berger e Thomas Luckmann, que partiam do pressuposto de que, na modernidade o pluralismo religioso tem como consequência uma crise da própria religião, uma vez que a oferta cai em descrédito. Se por um lado, portanto, Berger e Luckmann acreditam que a perda de monopólio leva à crise das instituições religiosas, por outro, o ―novo paradigma‖ entende que este mesmo pluralismo leva ao reforço das mesmas, uma vez que força as ―firmas religiosas‖ a diversificarem suas ofertas, visando atender melhor aos mais variados grupos e interesses sociais. Esta nova proposta paradigmática da RCTR tem sido alvo de intensa discussão na última década, especialmente pelo fato de que não só propõe uma crítica aos modelos vigentes até então, como reduz o fenômeno religioso a relações puramente econômicas, trazendo o debate novamente à problemática abordada por esse trabalho: um excesso interpretativo que reduz o fenômeno da religião a uma determinada ala interpretativa. III Ao realizarmos, portanto, um balanço dos textos clássicos produzidos ao longo do século XX, seja em áreas da Sociologia, História, Antropologia, Teologia, 120 ou Ciências da Religião, percebemos uma linha de avanço do tema, não necessariamente em sentido temporal, na qual houveram muitas sofisticações teóricas e metodológicas, todavia, frequentemente em caráter de exclusão, ou negligência, de uma ou outra dimensão essencial do fenômeno religioso. Por outro lado, já no final do século passado, os debates em torno do caráter econômico da religião chegaram a um ponto auge com a Teoria da Escolha Racional da Religião (RCTR). Tal teoria, apesar de significativos avanços e inovações teóricas, explicitou os excessos interpretativos de que vimos falando até então. A adoção absoluta de princípios das Ciências Econômicas em estudos de religião gerou expressivos debates, que, dentre outras coisas, mostra-nos a necessidade de discussão e sofisticação teórica, que vise o equilíbrio interpretativo em um objeto de estudo tão complexo como o fenômeno religioso. Neste sentido, a presente pesquisa tem como avanço principal suscitar e proporcionar um levantamento atual, bem como um importante debate, acerca da problemática teórica da religião. Visto que o tema ainda carece de importância em nível local, e em certa medida nacional, por parte especialmente da historiografia, explicitamos a necessidade de produções teóricas equilibradas que tragam à debate as carências e exageros produzidos, e demasiadamente reproduzidos, nos estudos de religião atual. Notas 1 Podemos adicionar a esta lista Pierre Bourdieu, todavia, trataremos sobre seu pensamento mais adiante. 2 DI NOLA, Afonso. Sagrado/profano. In: Enciclopédia Einaudi. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1987. Vol. 12. 3 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 4 A exemplo os rituais de passagem analisados por Turner (1974), ou os rituais de sacrifício analisados por Girard (1990), em que um dado elemento de natureza profana pode vir a se tornar sagrado, em uma mudança não somente de estado, mas da própria natureza cosmológica que o constitui. 5 Por exemplo, o verbete “sagrado/profano” de Di Nola (1987), e o livro “História das religiões na cultura moderna” de Massenzio (2005), dentre outros. (MASSENZIO, Marcello. A história das religiões na cultura moderna. São Paulo: hedra, 2005.) 6 É importante frisarmos que a “religião” para Weber consiste não somente em um objeto de estudo separado de seu pensamento como um todo. Antes disso, o fenômeno religião é por ele estudado como parte essencial na compreensão do processo de racionalização humano, especialmente ocidental, através do qual o autor demonstra copiosa habilidade historiográfica em uma de suas principais obras “A ética Econômica das religiões mundiais”. 7 WEBER, Max. Psicologia social das religiões mundiais. In: GERTH, H. H. & MILLS (orgs. Max Weber: ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982. pp. 309-346. 121 8 WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. 4ª ed. Brasília: ed. Da UnB. 2000. V. I 9 Seguindo as interpretações de Weber, a Igreja Católica pode ser considerada uma “empresa ou associação hierocrática” a partir do momento em que se tem um grupo, ou classe sacerdotal, que domina o poder institucional. 10 OTTO, Rudolf. O Sagrado. Sobre o Irracional na Idéia do Divino e sua Relação com o Irracional. Lisboa: Edições 70, 1992. 11 Em outros autores e sociedades esta categoria recebe nomes como: mana, wakan, boylya, orenda, etc. 12 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 13 O próprio Rudolf Otto foi teólogo luterano, todavia não só ele, mas, por exemplo, Troeltsch também o era, não sendo este, portanto, um bom critério para avaliação do fundamento teórico de um dado autor. 14 TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Editora Vozes, 1974. 15 Lembramos que outros importantes autores – como os franceses Pierre Bourdieu e René Girard – têm importantes contribuições para a presente discussão, todavia não foram acrescentados no presente artigo devido as dimensões obrigatórias próprias deste. 16 Troeltsch, já no início do século XX, chamava a atenção para o fenômeno da “individualização” da religião, havendo na modernidade, portanto, não uma crise da religião em si, mas um processo de individualização na pluralidade religiosa. 17 A transcendência em Luckmann não deve ser entendida em um sentido teológico, ou metafísico, mas (de maneira resumida) como o processo no qual o ser humano desloca sua experiência/expectativa do passado/futuro e a projeta no presente e futuro/passado, criando com isso significados e mesmo visões de mundo. Essa capacidade, segundo Luckmann, é o que faz do Homem um ser naturalmente “religioso”. 18 LUCKMANN, Thomas. The invisible religion: the problem of religion in modern society. New York: CollierMacmillan, 1972. 19 É possível traçarmos um paralelo entre o pensamento de Berger e Bourdieu não somente em suas análises do poder simbólico institucional, mas ainda, por exemplo, entre a relação “macro-cosmo/micro-cosmo” de Berger e o chamado “efeito de consagração” de Bourdieu, que, em última instância, analisam as relações de reprodução simbólica entre o cosmos social e o cosmos sagrado. 20 BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985. 122 UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E MODERNIDADE SOB A PERSPECTIVA DA GLOBALIZAÇÃO. CHAVES, Luana Hordones51. RESUMO: Pode-se entender globalização como um processo de mundialização da cultura, o qual vem a transformar as noções de internacional, nacional e local. Globalização é, pois, um processo social que atravessa de maneira diferenciada e desigual os mais diversos lugares: neste contexto, tempo e espaço são comprimidos e suas noções são então redefinidas ao se tratar de sociedade global. A fim de analisarmos o campo religioso contemporâneo, propomos pensar a globalização como uma perspectiva a partir da qual devemos interpretar as atuais relações sociais e religiosas. Nesse sentido, tomaremos a globalização não como uma realidade econômica ou política, ou seja, um fenômeno objetivo a ser descrito; mas como um instrumento metodológico para pensar as tendências da religião na modernidade, tendo em vista a permeabilidade das fronteiras inter-religiosas das diversas experiências culturais. Sendo assim, propomo-nos neste trabalho a discutir as transformações que vem ocorrendo no campo religioso, tomando alguns pontos dessa dinâmica. Palavras-chave: religião; modernidade; globalização Nota-se, na sociedade moderna, que o discurso mítico como fundador das sociedades vem cedendo lugar a saberes racionalizados e intelectualizados, o que marca tanto a dimensão espiritualizada da vida humana, como a dimensão individualizadora do referido processo. O lugar que o universo religioso ocupava nas sociedades tradicionais vem sendo remodelado pela modernidade que, em um mundo globalizado, dá à ação das religiões outras configurações. As potencialidades de que dispõem as instituições religiosas, assim como as empresas transnacionais no mundo contemporâneo - de fronteiras mais fluidas e permeáveis - lhes permitem agir em escala globalizada. Dessa maneira, a temática da identidade vem sofrendo transformações com o processo de globalização, e acaba por abrir espaço para inúmeras crises nesse contexto de fluxos. A dimensão da individualização transforma também o universo religioso enquanto sistema coerente de crenças – ligado à identidade coletiva – para 51 Bacharel em Relações Internacionais e mestranda em Ciências Sociais pela Unesp - campus de Marília. Bolsista Fapesp. E-mail: [email protected] 123 então tratar de religiosidades algumas vezes como fé individualizada. O centro religioso, fornecedor de sentido e normas e gerido por instituições que tradicionalmente conferem às sociedades coesão, passa a ser articulado por grupos de indivíduos racionalizados e autônomos - o que marca certas mudanças no campo religioso. Na modernidade, a coesão ditada pela religião – a qual dá sentido ordenador da realidade e do social com suas mediações – é em parte transferida à ação de grupos de sujeitos, ou seja, à independência de escolha racional e a instituições centradas no indivíduo autônomo. Se o estabelecimento de um "cosmos sagrado" de sentido ou eficácia simbólica para a vida humana estava ancorado exclusivamente nas instituições religiosas em sociedades tradicionais, a modernidade contemporânea atribui uma dinâmica a este quadro: os indivíduos buscam nas tradições e nas instituições alguns de seus elementos, mas o fazem a partir de experiências subjetivas, muitas vezes sem fidelidades a identidades fixas, ultrapassando fronteiras e reajustando fragmentos. (Ortiz, 2001) Pace (1997), ao abordar o tema, percebe dois pares conceituais para globalização e opta por tratar da denominação subjetiva-objetiva, superando os conceitos que lidam com o par dominação-libertação. Ao encontro da leitura de Pace, pensaremos, pois, em agentes sociais, movimentos políticos e grupos religiosos espalhados pelo mundo. Para tanto, é importante considerarmos o conjunto de não-lugares em que se organiza a sociedade moderna – metrô, aeroporto, centros comerciais, anúncios de publicidade. Nesse contexto, tanto a proximidade do ―outro‖, quanto à multiplicação de ―zonas francas‖ precisam ser consideradas como processos interdependentes que marcam a sociedade contemporânea, a partir dos quais diferentes culturas entram em contato e, muitas vezes, em conflito. Zonas francas quer dizer espaços sociais que já não podem ser identificados com segurança como pertencentes a esta ou aquela cultura, a este ou aquele tipo de sociedade ou de economia. Zonas francas como lugares simbólicos nos quais os indivíduos experimentam a fragilidade das fronteiras simbólicas nos respectivos sistemas a que pertencem. Zonas francas onde cada um pode consumir alguma coisa que provém do Outro sem preocupar-se demais com métodos de produção do objeto ou do bem simbólico do qual se apropria. (SEPULVEDA, 1996 apud PACE, 1997, p.27) Uma vez que observamos algumas transformações associadas ao processo de globalização que estão redefinindo o lugar, a função e o próprio conceito de religião, podemos notar que tal fenômeno apresenta-se mais como uma rede de 124 significados dentro da qual devemos interpretar novas e velhas formas de relações sociais. A religião passa a ser sem fronteira sem ser, contudo, universal ou única. Pace (1997) trata do fenômeno da globalização como um processo de decomposição e recomposição de identidades individuais e coletivas, do qual decorre, segundo este autor, uma dupla tendência: a abertura à mestiçagem cultural, por um lado, e o refúgio em universos simbólicos, por outro. Velho (1997), diante dessa discussão, assinala alguns desafios que a incorporação da literatura sobre a globalização tem colocado para a disciplina da antropologia. Aborda a complexa relação existente no contexto da modernidade globalizada, a partir do qual concepções de pessoa baseadas em noções fixas de identidade, construídas por meio de oposições, são reavaliadas a partir de fenômenos como o dos multipertencimentos culturais e religiosos e da destradicionalização. Nesse sentido, a globalização é tida, pelo autor, como um recurso cultural. Dado as tantas articulações e inserções em um contexto de movimentos religiosos onde a multiplicidade de formas de seitas e crenças perpassa a questão da religiosidade na sociedade contemporânea, assim como as escolhas dos indivíduos, Carvalho (1992) aponta para o problema do centro, assim como para os possíveis conflitos das transições. Para o autor, a questão geral da religiosidade contemporânea deve ser colocada no confronto entre a pluralidade externa e a pluralidade interna, uma vez que interessa saber a síntese que o indivíduo constrói com as mais variadas e diferenciadas inserções no campo religioso. Tratar de religião no contexto da modernidade é, pois, tratar da modernidade em sua forma reflexiva, em que a autonomia do indivíduo se põe em contato com os fluxos de um contexto globalizado. Nesse sentido, a religião parte do indivíduo que busca e escolhe, constrói sínteses e muitas vezes a tem como produto e não mais como um processo. Tal inversão - da busca e da escolha que partem do indivíduo é relevante quando abordamos as tendências do campo religioso na modernidade, uma vez que, como recurso cultural ou como instrumento metodológico, o fenômeno da globalização nos permite aproximar dos sentidos e valores que estão sendo produzidos no campo religioso. Pace (1997) ao tratar do conceito de globalização traz dois nós conceituais: primeiramente, dado a grande mobilidade das grandes massas de pessoas, trata da perda de identidade e da tendência ao desenraizamento; em segundo lugar e em 125 conseqüência disso, trata da tendência à crença no relativo. O autor comenta que a produção de mercadorias e a especulação financeira rompem os limites das nações e criam zonas francas que, por sua vez, permitem tanto a proximidade do outro, quanto o mimetismo nos consumos. A perda do sentido de identidade cultural, a queda do nível de identificação simbólica ou mesmo o processo de desculturalização advém, portanto, desse contexto. Já o desenraizamento, abalando as imagens estáveis do mundo e a memória coletiva, produz certa crença no relativo, ao mesmo tempo em que produz uma queda da confiança antes fundada nos valores comuns e nas relações partilhadas. Na análise de Pace, considerando o desenraizamento e a crença no relativo, a globalização passa a ser um processo de decomposição e recomposição da identidade individual e coletiva que acaba por fragilizar os limites simbólicos dos sistemas de pertencimento. Disso se tem, de acordo com o autor, a dupla tendência da globalização: a abertura a formas híbridas de um lado, e a busca de raízes, de outro - o que permite continuar imaginando unida e coerente uma realidade social fragmentada. Pace aborda, dessa maneira, sincretismos e fundamentalismos não como processos divergentes, mas como resultados de atitudes tencionais e das diversas experiências culturais e religiosas da modernidade globalizada, ou seja, como produtos endógenos do campo religioso frente a permeabilidade das fronteiras inter-religiosas. Na abordagem de Velho (1997), a desconfiança crescente quanto à referência necessária a totalidades fechadas, que pressuporiam relações permanentes entre suas partes e também com o mundo exterior faz-se uma das transformações ocorridas no campo da antropologia com o contexto da globalização. Nesse sentido, o autor cita o crescente desprestígio da noção de tribo e as revisões da noção de cultura como modificações que apontam para a revisão da disciplina. Para ele, o conceito de cultura deve ser tomado como uma dinâmica que considera a ação humana como geradora desta. Relacionada a essa alteração conceitual há uma ênfase crescente nos processos e nas interconexões culturais e então, hibridismos e sincretismos passam a ser tratados – dado seus reaparecimentos significativos – como fenômenos constitutivos de uma dinâmica cultural mais ampla. Essas novas tendências têm ressonância nas próprias concepções de sujeito, uma vez que as noções fixas de identidade acabam sendo abaladas, como já tratado anteriormente. 126 A questão da modernidade nos leva a considerar, portanto, o embate entre as experiências fundamentalistas que buscam na religião, no nacional ou na etnia a afirmação de valores locais, e as experiências sincréticas que produzem um novo pluralismo a partir de formas híbridas de religião e cultura – o que aparece, muitas vezes, sob a denominação de religião difusa. Dessa maneira, a autonomia do indivíduo dada pela modernidade reflete dos sistemas políticos e econômicos nas concepções e práticas religiosas. A religião dada à gestão da livre iniciativa individual e liberada do controle institucional, transforma-se em uma nova fonte de imaginação simbólica. Disso, procede a necessidade de deslocarmos a atenção da análise da função religiosa para compreender a religião como um sistema simbólico. (Pace, 1997) Portanto, a religião, deste ponto de vista está em crise como fonte de imagens, estáveis e distribuídas no tempo, do mundo que uma autoridade religiosa reconhecida enquanto tal entrega de geração a geração, ou melhor citando Bourdieu (1971) – os mecanismos de reprodução do capital simbólico que são protegidos por uma religião graças ao trabalho incessante de seus guardiães, dos seus sábios, dos seus especialistas em coisas sagradas. Em termos estritamente sociológicos tudo isso tem um nome. Chama-se processo de libertação religiosa: afastamento dos crentes das religiões institucionais ou frágil pertencimento (e identidade) do indivíduo às instituições religiosas ‗de origem‘. (PACE, 1997, p.34) Temos, pois, que a religião em crise como fonte de imagens, autoridade e tradição, atualmente demanda uma relação entre a realidade local e a perspectiva global. Nesse contexto é que temos a síntese feita pelo indivíduo - como sujeito autônomo - uma vez que em contato com diversas ‗províncias de significados religiosos‘ de culturas diferentes, precisa produzir sentidos e significados que se sustentem num mundo fragmentado e por vezes, em conflito. [...] uma espécie de síntese na medida das exigências da ação social de sujeitos ou de grupos de sujeitos, uma world-religion visível e que se pode consumir sem ter que prestar contas às instituições tradicionais de tipo religioso. Tudo isto está, em parte, presente no fenômeno do New Age. Essa world-religion pode alimentar todos aqueles movimentos que reinventam uma tradição, que reinterpretam símbolos de um patrimônio ou de vários patrimônios religiosos para dotar-se de uma identidade que só aparentemente se coloca em continuidade com o passado: o passado é um pretexto mítico na realidade para produzir uma nova, moderna, sociabilidade religiosa [...] utilizando a simbologia religiosa como quem diz por conta própria, sem levar em consideração nem a memória codificada de uma tradição religiosa determinada nem muito menos a paciente exegese dos seus textos sagrados. (PACE, 1997, p.34-35) A preocupação com a ética numa linguagem mais universal passa a ser a questão central dos discursos e dos bens simbólicos, atendendo, assim, a demanda de um contexto de modernidade globalizada. A crença no relativo, acompanhada 127 pelo desenraizamento planetário, de fato abala as bases tradicionais de consenso dos sistemas religiosos institucionais e abre novas perspectivas nas relações entre modernidade e religião. Tratar dos problemas da espécie humana significa, para as religiões, ajustar-se aos problemas que se colocam como globais; em tempos de interdependência observa-se, pois, certo espírito mundial. Desse modo, a globalização torna-se uma condição para a subjetivação dos sistemas de crenças, em que há dificuldades de se regular sistemas religiosos dentro de limites seguros e estáveis. Isso pode ser observado nos discursos e nas ações estratégicas das Igrejas que sofrem influência dos processos de globalização, como observa Pace sobre o catolicismo contemporâneo: Os custos que a Igreja Católica se mostrou disposta a pagar têm sido dois: dar mais espaço ao particularismo das Igrejas locais, diminuindo as pretensões centralistas de Roma, por um lado, e transformar a mensagem estritamente teológica em uma proposta de malhas largas de ética pública internacional [...] Disto derivam seja o esforço por parte da Igreja para abrirse – aqui está então a globalização – a outras religiões (hebraísmo, islã, ortodoxia e, em parte, anglicanismo), seja a tentativa de estabelecer-se em contextos internacionais (ONU, Conferência do Cairo sobre população e desenvolvimento, Conferência sobre o Mediterrâneo de Barcelona) como um interlocutor confiável das políticas sociais e econômicas no nível planetário. (PACE, 1997, p.35) O movimento esotérico, nesse contexto, marca a rejeição da religião estabelecida, ao tempo em que procura reintroduzir-se nas religiosidades através de múltiplas reinterpretações. A Nova Era é, pois, um importante fenômeno dentro de uma proposta de reformulação e crítica que vem sofrendo o cristianismo. De encontro com o caráter oficial e político, tradicional e estável do cristianismo, o esoterismo vai a caminho do autoconhecimento e da mística perdida pela racionalização cristã; tudo isso de acordo com os fluxos e os sincretismos próprios de nosso tempo. Ainda sobre o movimento esotérico, é válido citar: Ressurgido no século XIX e coetâneo da crise histórica e cultural que convencionamos chamar de desencantamento do mundo, esse movimento esteve primariamente restrito à elite intelectual européia, porém mais tarde, através de várias mediações, influenciou uma parcela muito mais ampla de indivíduos e recolocou questões relevantes sobre a religiosidade na era moderna como um todo. Considero o esoterismo moderno um grande movimento, intelectual e espiritual, constitutivo da religiosidade contemporânea, que mantém com o cristianismo uma posição conflitiva. (CARVALHO, 1992, p.139-140). De acordo com Carvalho (1992), essa tentativa de reencantar o cristianismo em plena época do desencantamento - dado pelo Renascimento - provocou certa fragmentação da tradição cristã e alguns de seus símbolos foram, então, reprocessados em novos contextos; o que acabou por contribuir para a formulação de novas sínteses religiosas, cuja repercussão e significado histórico este artigo se 128 propõe a apontar. Para o autor, o movimento esotérico enfatiza um modo de olhar para todas as religiões mundiais, em busca de equivalências e de complementações - o que não deixa de ser uma demanda própria da modernidade globalizada. Nesse movimento está presente uma corrente de idéias de seu tempo que procura reintroduzir na religiosidade a multiplicidade de reinterpretações, assim como a idéia de produto acima da idéia de processo. Nesse contexto, Carvalho também cita os rituais e as técnicas corporais que colocam o esoterismo como um caminho à espiritualidade, em que a autoconsciência da religião assume uma forma de terapia, apresentando-se, portanto, como mais um fenômeno contemporâneo que tem relação com outros processos de descontextualização e de autonomização das esferas da cultura na era moderna. E acrescenta: Nessa área da técnica espiritual deparamo-nos com uma questão filosófica fundamental: a dificuldade de conciliar, sem haver uma redução empobrecedora, a cosmovisão ocidental moderna, racionalista e cientificista, a qual pressupõe uma natureza desencantada, com visões de mundo tradicionais, sustentadas por princípios metafísicos e suprasensíveis. [...] a religião vista como conexão imediatista e muitas vezes fugaz com uma técnica ritual ou um conjunto de crenças das quais se desconhecem suas implicações simbólicas, suas articulações cosmológicas, seus mitos, seu sentido interno mais transcendente etc.(CARVALHO, 1992, p.148-149) De acordo com Velho (1997) há mudanças das funções da religião que precisam ser assinaladas: primeiramente a tendência de deixar de ser fundacional e orgânica; em segundo lugar, a tendência de tornar-se disponível para papéis mais amplos, ou seja, a religião tomada mais como um recurso cultural. Para o autor, o processo da globalização abre para uma dinâmica que nos possibilitaria escapar da referência à identidade e à diferença com dualismo, etnocentrismo, alteridades fixas e opositivas, para tratarmos então de referências de reconhecimento das semelhanças que permitam tanto o movimento e as conexões, quanto a reconciliação entre diversos campos. A religião, diante a modernidade, se faz mais algo a ser buscado do que a ser herdado, trazendo consigo tendências que precisamos considerar quando nos dispusemos a tratar do campo religioso em contexto de globalização. A globalização, sem ser sinônimo de totalidade, ocuparia a sua posição como o novo nome do desenvolvimento e da modernização que se querem universais. Mas, agora, universais não mais como metafísica, nem – depois do momento pós-colonial – como projeto imposto, maliciosamente ou não, de determinado lugar, ou, inversamente, como simples oposição a este. Pode ser tratada como um jogo de linguagem permitido por interconexões concretas, como artefato e ao mesmo tempo como um mito com muitas versões. Mas versões num sentido forte, que acentua a inseparabilidade entre mito e seus usos. Usos que permitem reinterpretar o aqui e agora e, 129 neste contexto, poderão até reafirmar identidades e interesses particulares, não autorizando nenhuma ingenuidade que ignore as realidades de poder envolvidas. Os discursos sobre a globalização serão outras tantas apropriações e leituras em face do mito, que constituem formas de ação e de objetivação diante das quais não é possível se omitir. E não excluem a possibilidade de versões contra-hegemônicas do mito, quer por seu conteúdo, quer pelo lugar de onde são emitidas. (VELHO, 1997, p.57-58) Abordar as tendências do campo religioso na modernidade significa tratar tanto de subjetividade e individualismo, quanto de autonomia e autodeterminação em um contexto de pluralidades. Com o processo de privatização, acentua-se a relevância da religião para a identidade pessoal e sua função terapêutica e/ou ética. Ao tempo em que a conduta moral e os costumes desvinculam-se do contexto religioso tradicional, novos movimentos internacionais ou cosmopolitas – tais como a Nova Era – tendem a repudiar o autoritarismo eclesiástico. Do ponto de vista das instituições religiosas, o pluralismo surge muitas vezes como uma ameaça a sua identidade, na medida em que este significa uma perda do controle sobre os sentidos e os bens simbólicos produzidos em seu interior. Esta ameaça tem dado origem a duas atitudes recorrentes no campo institucional, como já abordado: a afirmação do exclusivismo, que delimitaria o seu universo a um círculo restrito de adeptos, ou da tolerância, que as abriria para a acolhida em seu interior da fragmentação produzida pela modernidade sobre o campo religioso. (Portella, 2006) A religião passa a ser de foro íntimo, fruto da construção identitária subjetiva e autônoma, que não precisa mais prestar contas a uma tradição ou instituição. Mas mesmo dentro das tradições - para quem adere de forma singular a uma tradição e a ela se vincula - a pluralidade se faz presente também na lógica do subjetivo, da eficácia simbólica e segmentaria, numa autonomia das experiências e de referências religiosas onde o indivíduo ou grupo busca reconduzir a tradição a uma visão particular e fragmentada de mundo a partir de ressignificações da semântica desta. Na abordagem de Giddens (1990) dentre os dilemas da modernidade encontra-se a questão da confiança, uma vez que os laços comunitários e afetivos são perdidos ou enfraquecidos. No entanto, para o autor, no contexto da modernidade, afetividade e impessoalidade não devem ser vistos como forças concorrentes, já que a confiança passa a significar um projeto a ser construído, implicando numa abertura do indivíduo para o outro e, conseqüentemente, um processo mútuo de auto-revelação. O homem moderno tende, também desse modo, a construir seu próprio sistema de crenças a partir de inserções nos vários sistemas religiosos, o que significa dizer, no mundo globalizado. 130 Nas condições modernas há diferentes possibilidades de se construir a religiosidade num universo de pluralidades. A modernidade estabelece, através de um individualismo religioso, relações de partilha, reciprocidade e participação na diversidade de sistemas e signos de crença. Uma parcela dos novos movimentos, onde a cultura da Nova Era configuraria sua vertente mais fluida, parece apontar ainda para a criação de novos conteúdos dado a reelaboração no âmbito das experiências espirituais. O movimento místico-esotérico apresenta, em seu caráter de fluidez acentuada, a articulação individual de diferentes cosmologias religiosas, em um processo de sincretismo, bricolagem, sínteses, trânsitos e pertencimentos construídos subjetivamente. Assim, características da multiplicidade que vivencia o homem moderno orientam-no cada vez mais ao que chamamos de uma religião difusa. Temos, portanto, que traços como a privatização da religião, o trânsito religioso e o alargamento das suas fronteiras para os demais setores marcam o processo da globalização que, ao mesmo tempo em que aproximou sistemas religiosos distantes através da compressão espaço-tempo criando uma situação de interculturalidades, também produziu uma mercantilização do campo religioso, em oposição a uma visão tradicional que enfatizava a sua dimensão sagrada. (Steil, 2001) É a partir de uma visão secular moderna que o campo religioso se apresenta com uma idéia de consumo, onde o indivíduo opta por símbolos e experiências espirituais que produziriam adesão por identificação – e não por conversão necessariamente - frente a uma imensa variedade de alternativas. A New Age se coloca, no entanto, apenas como a condensação de uma tendência mais abrangente que atravessa o campo religioso e que aponta para certa diluição das fronteiras do religioso na sociedade contemporânea. As religiões populares e as experiências religiosas contemporâneas estariam, dessa maneira, muito mais centradas na produção de sentidos do que o pólo ideológico. Trata-se da recriação de um mundo que, embora autônomo em sua base estrutural, está habitado por deuses, forças, energias e magias. Ao invés de pensar tradição e modernidade como um contraste binário, o presente artigo preferiu apontar as tendências de arranjos entre elementos de diferentes origens, vivenciados em experiências pessoais e coletivas que ultrapassam a possibilidade do controle das instituições religiosas, mesmo quando inseridas nestas. Por fim, faz-se importante ressaltar que as experiências religiosas 131 ainda hoje se apresentam como importantes instâncias de produção de narrativas sociais, nas quais os indivíduos e grupos sociais continuam a inscrever sua ação. Nesse sentido é preciso considerar algumas questões quando se trata de um contexto de modernidade, tendo em vista as novas perspectivas de interpretações para as relações sociais, sobretudo as religiosas, que a globalização traz. REFERÊNCIAS CARVALHO, José Jorge de. Características do fenômeno religioso na sociedade contemporânea. In BINGEMER, Maria Clara Lucchetti (org.). ―O impacto da modernidade na religião‖, Ed. Louola, 1992, PP 133/159. GIDDENS, Antony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1990. ORTIZ, Renato. Anotações sobre religião e globalização. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.16, n°47, São Paulo, Oct.2001. PACE, Enzo. Religião e globalização. In ORO & STEIL ―Globalização e religião‖ Ed. Vozes, 1997. PORTELLA, Rodrigo. Religião, Sensibilidades Religiosas e Pós-Modernidade: Da ciranda entre religião e secularização. Revista de Estudos da Religião/REVER, PUC – São Paulo, n°2, ano 6, 2006. STEIL, Carlos Alberto. Pluralismo, modernidade e tradição: transformações do campo religioso. Revista Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 3, n. 3, p. 115-129, oct. 2001. VELHO, Otávio. Globalização: antropologia e religião. In ORO & STEIL ―Globalização e religião‖ Ed. Vozes, 1997. 132 ENTRE SENTIDOS E SABERES: IMPACTO DAS CRENÇAS RELIGIOSAS NOS PROCESSOS DE ENSINOAPRENDIZAGEM Carlos João Parada Filho52 Resumo: A existência de conflitos entre professores e estudantes da Faculdade de Educação da UFF, tendo as crenças religiosas dos segundos como motivação central, levou-me a realizar uma pesquisa de campo na qual constatei que, sempre que os conteúdos acadêmicos questionam ou contradizem as crenças religiosas destes estudantes,estas prevalecem sobre aqueles.Diante disso passei a trabalhar em uma disciplina as patologias da experiência religiosa (fundamentalismo, intolerância, etc), tendo em vista a construção de perspectivas e vivências espirituais mais saudáveis, educativas e socialmente mais responsáveis. A disciplina, preedominantemente vivencial, tendo sido muito procurada pelos estudantes, deu origem ao Projeto Educação e Espiritualidade no qual estão envolvidos, inicialmente, estudantes de Pedagogia, Letras e História. O Projeto contempla ensino, pesquisa e extensão. Palavras-chave: crenças religiosas; ensino-aprendizagem Vera Regina53, aluna do 4º período do Curso da Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, quando soube que estava em curso uma pesquisa a respeito da temática Educação e Religião ficou interessada e prontamente ofereceu-se para ser entrevistada. Nossa conversa ocorreu num clima de muita descontração. Bastou que eu lhe fizesse duas perguntas iniciais (você identifica algum conflito entre suas crenças religiosas e os conteúdos das disciplinas ensinadas aqui na Faculdade? Quando identifica conflitos ou controvérsias, qual é o seu procedimento?) e, pronto, já estávamos conversando como se fôssemos velhos conhecidos. Diante da primeira pergunta Vera não teve dúvidas, foi logo respondendo que sim e que os conteúdos conflitantes com suas crenças religiosas estão geralmente situados nas disciplinas Filosofia, História e Sociologia da Educação. Ela disse-me que os professores geralmente são muito críticos em relação à atuação das Igrejas e seus conteúdos doutrinários, tais como vida após a morte e ―ensinamentos bíblicos‖. Quando lhe perguntei como é que reagia, na Universidade, diante de situações em que via sua fé sendo questionada, ela desatou a falar. Passo então a relatar partes de seu depoimento. 52 Professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. [email protected] Nome fictício, embora a aluna me tivesse autorizado a divulgar seu nome. Vera tem 21 anos de idade e disse freqüentar semanalmente sua religião. 53 133 ―Quando há conflitos a gente faz que nem no segundo grau, né, a gente estuda, ouve aquilo que o professor fala, mas não incorpora, não assimila. A gente guarda aquilo para poder dizer o que ele quer, no trabalho, na prova. Estes conteúdos não alteram em nada a minha vida, na verdade intensifica (sic) ainda mais as minhas crenças religiosas. E considero como que equivocado o que é dito na Universidade. Minhas crenças religiosas fazem parte totalmente de minha vida, é 24 horas por dia. Eu levo a minha vida de acordo com as minhas crenças, a minha religião, os meus princípios. Não tem como separar isso: quando venho para a Universidade sou uma pessoa religiosa. Pode até mudar algumas pessoas, não aquelas que são agarradas em suas convicções. Então deveria haver diálogo entre estes conteúdos acadêmicos e as crenças religiosas. Agora, tem gente esquizofrênica, que acha que pode ser duas pessoas ao mesmo tempo: ter suas crenças e aceitar teorias contrárias. A religião, como no meu caso, vem desde pequena, já está incorporado‖. Por que, ao referir-se aos conteúdos acadêmicos conflitantes com suas crenças religiosas, Vera Regina empregou a palavra incorporar para logo em seguida traduzi-la como assimilar? Podemos traçar várias hipóteses. Vamos começar pelas mais banais possíveis que são aquelas baseadas na suposição de que existe acaso. Teríamos então: ela utilizou incorporar como poderia ter utilizado qualquer outra palavra; foi o que primeiro veio à sua cabeça; é a palavra que ela utiliza com mais freqüência; será que é espírita?54 E assim por diante. Mas por que o assimilar logo em seguida? Ah, à toa, por dizer; porque foi a palavra que ela se lembrou na hora; porque quis reforçar o que estava dizendo, e por aí afora. Hipóteses mais inteligentes (porque mais interessadas nos significados, nos motivos ocultos) poderiam arriscar: porque incorporar diz mais que assimilar; ainda que os dicionários praticamente equiparem uma palavra à outra, assimilar parece dizer respeito mais ao pensamento, à racionalidade, enquanto incorporar (a palavra já diz, tem mais materialidade, mais corpo) remete ao todo; incorporar parece querer dizer que agora a coisa, a idéia, é da gente, toma até o corpo da gente (como na incorporação pelos orixás e demais entidades); a gente passa a fazer parte da idéia, é como se ela se tornasse a gente; porque a gente se reveste dela 55. Mas por que ela logo em seguida traduziu incorporar por assimilar? Talvez achando que assim estivesse reforçando mais a idéia, ou por, inconscientemente se dar conta que assimilar atendesse melhor à compreensão do professor; ou mesmo ter percebido que assimilar talvez ficasse melhor no contexto de um colóquio acadêmico. Mas são possibilidades. E estas possibilidades indicam a seriedade da situação. Trocando em miúdos, como dizia o poeta, o que Vera Regina parece estar querendo mesmo dizer é que aqueles conteúdos acadêmicos entram por um ouvido 54 55 Não, não é. Ela é evangélica. Cf: Dicionário Houais, verbete incorporar, p. 1599. 134 e saem pelo outro. Parece nada; ela está dizendo isso com todas as letras. Não adianta querer eufemismar. E Vera pelo menos ouve idéias contrárias às suas crenças religiosas. Suspeito que no caso dos alunos mais radicais aqueles conteúdos não cheguem nem mesmo a entrar por um dos ouvidos. Dando prosseguimento à fala da aluna. Se os conteúdos conflitantes ou contrários às crenças religiosas não chegam ao coração, não saem do papel, o que é que acontece então com os demais conteúdos? Podemos simplesmente supor que são apreendidos, assimilados, ―incorporados‖. Mas podemos não estar totalmente certos. Vejamos. Vera diz que aqueles ―conteúdos conflitantes‖ ―não alteram em nada [sua] vida (...)‖. E os demais será que alteram? Se para ela a religião funciona como um referencial tão importante (―minhas crenças religiosas fazem parte totalmente de minha vida, é 24 horas por dia‖), não é uma impossibilidade que todo e qualquer conteúdo que tangencie, ainda que de leve, questões éticas e de ordem prática em geral passem pelo crivo de suas crenças religiosas. Se estou certo, apenas aqueles conteúdos mais gerais das disciplinas, que não dizem respeito à vida cotidiana, são aceitos sem maiores problemas. O que, no entanto, não quer dizer que sejam ―incorporados‖, que passem a fazer parte de seu referencial. E mais uma vez nos vemos às voltas com as questões relacionadas à subjetividade, à natureza do conhecimento e da própria Educação. ―Então deveria haver diálogo entre estes conteúdos acadêmicos e as crenças religiosas‖ nos diz Vera Regina, apontando mais uma vez o caminho. O diálogo com as crenças e vivências religiosas de nossos alunos se coloca hoje como uma das condições indispensáveis à superação da esterilidade de muitas de nossas práticas educativas. Caso contrário corremos o triste risco da auto-ilusão. De um lado nos consolamos e retroalimentamos com belos sonhos e discursos de práticas educativas ―libertadoras, formadoras de consciência crítica e de cidadania‖ e de outro nos frustramos frente à dura e crua realidade da nossa ineficácia. Ineficazes porque talvez não levemos em consideração o outro, em sua riqueza e autonomia. Porque, pelo que muitas de nossas práticas revelam, tratamos o outro (o aluno) como alguém intelectualmente menor. A perspectiva enunciativa dialógica de Bakhtin56 nos ensina que a linguagem não está só naquele que pronuncia a palavra, 56 Estética da Criação Verbal, especialmente pp. 403 e 404. 135 ou só naquele que escuta, mas fundamentalmente no encontro entre vozes e sentidos que se dão na relação. Dialogismo é o segredo, comunhão a atitude básica. Só assim haverá verdadeira comunicação e conseqüentemente autêntica Educação. A exemplo de Vera Regina, 70% dos estudantes do Curso de Pedagogia da mesma Universidade afirmaram haver conflitos entre suas crenças religiosas e aquilo que é ensinado 57 . As reações, frente ao desconforto, também são muito semelhantes. Perguntados a respeito, 83% dos entrevistados58 afirmaram que em caso de conflitos invariavelmente optam por suas crenças religiosas. Apenas 8% dos entrevistados declararam modificar suas crenças em função dos conteúdos acadêmicos59. Os restantes dividiram-se entre: 3% disseram que ― procuram não misturar as coisas‖; 6% afirmaram que ―buscam conciliar as duas visões‖ 60. É significativo que a totalidade dos estudantes que afirmaram haver conflitos entre suas crenças religiosas e os conteúdos ministrados na Universidade resolvam a questão de maneira idêntica àquela adotada por Vera Regina: ― (...) se eles [os professores] querem que a gente repita o que eles dizem a gente repete, mas agente continua pensando da mesma 61 maneira‖ . Ou ainda: ―não mudo meu modo de pensar as questões da religião, mas a gente tem que saber dosar as coisas, aqui o pensamento é outro, eu só estou aqui uma parte da minha vida, então se agente tem outra filosofia, tudo bem, a gente estuda como os assuntos são apresentados aqui, mas meu pensamento continua o mesmo, aquele em que eu venho 62 desde pequena, e no caso, a fé cristã‖ . Tem se tornado lugar comum identificar os evangélicos, especialmente aqueles vinculados às igrejas neo-pentecostais, como sendo os mais ciosos de suas crenças, os mais intransigentes e mais refratários á perspectiva cética predominante na academia. Mas não foi bem isso o que pude constatar. Vejamos. Nair, católica praticante, aluna do último período do Curso de Pedagogia nos diz: ― Eu procuro não deixar que a faculdade, os conteúdos acadêmicos me afetem. Minha fé está acima do que eu estou estudando aqui na universidade. Não que não seja importante o que eu estudo, é importante. Às vezes eu até procuro conciliar as coisas, mas quando não dá para conciliar, prevalecem minhas crenças religiosas. Aí, embora escreva para o professor o que tenho que escrever, isso não quer dizer que eu acredite e seja a favor daquilo. A minha religião prevalece‖. 57 Dados das Pesquisas realizadas em 2004 e 2006. Num universo de 125 alunos (à época 40% do corpo discente da Instituição). 59 Estes são predominantemente os católicos não praticantes. 60 São em sua maioria aqueles que se declararam espíritas. 61 Do depoimento de uma aluna do 6° período. 62 Aluna do 1° período. 58 136 Mesmo diante de depoimento tão claro poderíamos argumentar que ainda assim as crenças religiosas dos estudantes talvez não mereçam lá tanta consideração pois é possível que só nos casos em que conteúdos acadêmicos muito específicos se choquem com as crenças religiosas haja rejeição explicita por parte dos estudantes, mas que no geral não haveria tanta necessidade de considerar as referidas crenças. Ocorre que assim sendo estaríamos apostando na hipótese de uma religiosidade mais formal, o que não parece ser o caso, pelo menos dos alunos por mim entrevistados. Vejamos o que ainda pode nos dizer Nair. Perguntada a respeito da existência ou não de uma possível relação entre suas crenças religiosas e sua formação profissional ela disse: ―a religião me possibilita uma sensibilidade maior até mesmo em relação aos problemas educacionais. A minha religião está sempre em primeiro lugar e influencia minha vida em todas as suas dimensões‖. Como podemos ver, a coisa não é tão simples quanto parece. Até mesmo da parte dos espíritas de quem se poderia esperar uma atitude mais flexível frente a problemática dos conflitos crenças religiosas versus conteúdos acadêmicos, colhi os seguintes depoimentos: ―(...) eu sou espírita. Tenho motivos de sobra para acreditar em minha crenças religiosas. Escuto outras opiniões mas minhas crenças e princípios prevalecem. Numa prova, por exemplo, por mais que eu decore e escreva aquilo em que não acredito, depois disso o que conta mesmo e aquilo em que eu acredito. Minhas crenças religiosas estão presentes em todo o meu cotidiano. Por exemplo, quando se trata de Teoria de Darwin, ainda que eu não aceite, posso muito bem dizer numa prova; segundo Darwin, o que não significa que eu aceite aquilo. Em todos os meus atos, meu modo de vida, minha fé se faz presente. Eu não vou dizer que aquilo que eu acredito é o certo, mas é aquilo em que eu acredito. Procuro até conhecer outras opiniões, idéias, mas isso acaba reforçando ainda mais 63 minhas convicções, que vão ficando mais consolidadas‖ . Há casos de posturas mais rígidas, como a que se segue. Márcia, evangélica, aluna do 1º período declara: ―minha doutrina sempre fica intocável, eu não sei se levaria tanto a ferro e fogo uma questão da universidade. Não é só porque o conteúdo é dado na universidade que por si só está certo‖. Seria cômico não fosse dramático o quadro que temos diante dos olhos. Júlia, aluna do 8º período fala com desenvoltura e com todas as letras para quem quiser e estiver podendo ouvir: 63 Aluna do 5º período do Curso. ―tem que na prova escrever o que o professor cobra, 137 esquecendo um pouco no que acredita e fazer como se acreditasse no que o professor está falando. Mas tenho claro que não acredito. Mas penso: agora tenho que escrever sobre isso, de acordo com as crenças do professor‖. Talvez dentre nós, educadores, existam aqueles que possam pensar assim: tudo bem, mas isso não importa muito, pois são poucos os conteúdos acadêmicos que se chocam, afinal de contas, com as crenças religiosas dos nossos alunos. Então não há motivos para tanta preocupação. Mas será que isso é tão simples assim? Amparado por tais dados posso concluir afirmando que o estudante da FEUFF é majoritariamente religioso e que sua Religião se inscreve dentro dos moldes mais tradicionais, ou seja: é nas instituições religiosas que a Religião de nossos informantes revela sua visibilidade. Nem precisaríamos de muitas análises para já preliminarmente nos colocarmos a seguinte questão: pode a escola continuar ignorando a pertenças e as crenças religiosas daqueles que pretende educar? Uma outra questão proposta pela pesquisa pode ser ainda mais esclarecedora. A pergunta foi a seguinte: Você acha que suas crenças religiosas interferem ou possam interferir em sua formação acadêmica? Como? O percentual dos que disseram sim ficou em 12,35%, e dos que disseram não em 82,45%64. Os que responderam afirmativamente declararam que sua religião interfere na formação acadêmica porque: - desvaloriza algumas disciplinas [que vão contra as crenças]; - não há nada que abale minha crença; - posso ver de maneira mais clara algumas matérias ao relacioná-las no contexto bíblico; - me dando segurança nos meus propósitos; - levo tudo para o lado da religião. Ao que parece, contrariamente ao que continuam pensando muitos professores, o Curso de Pedagogia da FE-UFF não só não tem questionado a 64 Os que responderam negativamente não explicitaram seus motivos, razão pela qual não tecerei comentários a respeito do percentual obtido. 138 maioria dos estudantes quanto as suas crenças e práticas religiosas, mas alguns de seus conteúdos vêm sendo utilizados, senão para reforçar tais crenças, para endossar suas práticas nas instituições religiosas a que estão vinculados. Isto levanos a uma conclusão: nós, professores da FE-UFF, não conhecemos ou conhecemos muito pouco os estudantes com os quais trabalhamos, o que coloca em dúvida a qualidade e a eficácia do nosso trabalho. Mas vejamos as outras respostas. A primeira das respostas elencadas parece-me emblemática. Ainda que ocorra apenas uma única vez de forma tão explícita como aqui aparece, ―desvaloriza algumas disciplinas‖, podemos encontrá-la velada em diversas outras ocasiões. Vejamos: quando é afirmado que ―tenho critérios pré-estabelecidos que às vezes podem estar impregnados da minha fé‖ ou que ―acredito em tudo o que minha religião me passa‖ ou que ―nada abala minhas crenças‖, não consigo ver outra coisa que: em primeiro lugar minha religião e suas verdades, depois o resto. Em outros termos: o que não é contra meus princípios religiosos é bem vindo, caso contrário... Para não dizer que há unanimidade, sete estudantes disseram: ―a formação acadêmica levou-me a questionar muitas coisas na minha religião‖; ―o curso abre horizontes, levantando questionamentos‖; ―o curso nos dá margem a reflexões e ver o que antes não víamos em nossa religião‖; ―eu comecei a questionar determinados discursos religiosos‖; ―me fez perceber as falhas da teoria religiosa e as contradições de maneira mais clara‖; ―passei a questionar mais sobre o que é ensinado‖ e ―muda completamente a forma de observar a religião, passa-se a questioná-la‖. Mas, como já era de se esperar, os cinco primeiros definem-se como católicos não-praticantes, e os dois últimos como católicos praticantes. Não houve sequer um evangélico ou espírita que tenha afirmado questionar suas crenças ou delas discordar motivado por sua formação acadêmica. Mas o mais hilário (?) foi quando me deparei com os casos de estudantes65 que, quando perguntados a respeito da interferência ou não do Curso em suas crenças religiosas responderam: ―sim, interfere, pois estou pretendendo aplicar as dinâmicas que aprendi com as disciplinas na catequese de adultos‖; ―interfere positivamente pois posso aplicar o que aprendi em minha Igreja‖; ―sim, pois me auxilia com conteúdos para os projetos religiosos que possuo‖; ―sim, enriquece meu trabalho com as crianças em minha Igreja‖; ―sim, pois participo de retiros em janeiro e em julho e por causa das greves, sempre estou em aula mas 65 Dentre aqueles 16,23% que admitem a interferência do Curso em suas crenças e práticas religiosas. 139 não deixo de ir [aos retiros] só que me atrapalho um pouco porque tenho eu faltar aula‖; ―sim, tive que diminuir meus compromissos dentro da Igreja depois que entrei para a Faculdade‖. Não é uma coincidência o fato de que vários daqueles estudantes que colocam explicitamente suas crenças religiosas em primeiro plano sejam os que na pergunta posterior admitiram a interferência do Curso em suas crenças porque ―aprendem métodos para aplicar na catequese‖ ou ―por questão de tempo‖. Isso é ilustrado pelo fato de haver uma certa paridade entre o número daqueles que admitem a interferência das crenças religiosas (12,35%) em relação àqueles que afirmam haver interferência do Curso sobre suas crenças religiosas (16,23%). O que parece apontar, mais uma vez, para a supremacia das crenças religiosas sobre os conteúdos acadêmicos. Dito de outra maneira: ao declararem que sua formação acadêmica está sob influência de sua fé religiosa a tal ponto que, uma avaliação positiva do Curso dependeria indiretamente da aplicabilidade ou não de seus ensinos nas atividades religiosas, os estudantes estariam afirmando que suas crenças religiosas são prioritárias, se comparadas aos conteúdos acadêmicos. Mas o que é que pensam os professores destes estudantes? Todo o percurso feito até aqui tem como meta a compreensão das relações entre as crenças religiosas dos estudantes da FE-UFF e sua formação intelectual. Para tanto é preciso que conheçamos, ainda que não tão profundamente como eu gostaria, o perfil religioso desses estudantes e como eles próprios percebem a relação entre crenças religiosas e os conteúdos das disciplinas acadêmicas. Mas ainda fica de fora um elemento muito importante: o professorado. Como é que os professores da FE-UFF pensam a relação entre a religiosidade de seus estudantes e a ―postura científica‖ cultivada na Universidade? Algumas respostas a esta questão foram dadas nas páginas anteriores. Vamos retomá-las. Como teremos ocasião de ver, em se tratando de Religião, o senso-comum acadêmico, repetindo as velhas ideologias gestadas no século XIX, não consegue ir muito além da idéia da incompatibilidade entre pensamento científico e crenças religiosas. A FE-UFF não foge muito à regra embora surpreenda-me o significativo percentual de professores 140 religiosos em seus quadros66, o que no entanto não modifica muito o estado das coisas. Para começar, quando perguntados a respeito da postura a ser tomada pela Universidade frente ao crescimento de movimentos religiosos e conflitos dessa natureza em seu interior, 30% dos professores (que se declaram religiosos) simplesmente deixaram de responder à questão. Mas antes mesmo de computar os resultados desta questão eu já havia me assustado com eles (os professores ditos religiosos), pois 20% deles, quando perguntados como vêem o envolvimento dos estudantes da Pedagogia em movimentos religiosos, responderam que com indiferença. O mais assustador, porém, é que perguntados se a formação acadêmica dos estudantes é influenciada pelas crenças religiosas, 65,50% responderam que sim. Aliás, o franco desinteresse manifestado pelo corpo docente da FE-UFF diante da pesquisa, embora afirmando o contrário em reuniões departamentais e mesmo pessoalmente a mim, configura um indício de que as coisas parecem não ir muito bem. Vejamos, na tabela seguinte, a perspectiva dos demais professores (os que se declararam ateus, agnósticos e sem religião). Como vêem o envolvimento dos estudantes de Pedagogia em movimentos religiosos? 31,03% dos professores declaram-se indiferentes; 17,25% vêem com desconfiança a participação dos estudantes em movimentos religiosos; 20,68% se dizem preocupados; 17,25% dizem sentir satisfação diante da situação; os demais não deram resposta à questão. Mais uma vez o choque. Como é que 31,03% podem se declarar indiferentes se, mais adiante, afirmam que a formação acadêmica é influenciada pelas crenças religiosas?67 Para esta pergunta (as crenças religiosas interferem na formação acadêmica?) os dados são: 65,50% as crenças influem; 17,25 as crenças não influem e 13,79% simplesmente deixaram de responder. Esse desinteresse, ou apatia se preferirmos, poderia ser creditado ao significativo número de não religiosos somados aos agnósticos, o que os tornaria um grupo quase do tamanho dos professores religiosos. O problema é que 80% dos sem religião possuem, também 66 Dos 29 professores participantes da pesquisa, 34,48% se dizem religiosos; 34,48% se dizem sem religião; 17,24% se dizem ateus e 13,48% afirmam serem agnósticos. Dos sem religião, 80% possuem crenças religiosas, os demais 20% não; quanto aos agnósticos, 50% possuem crenças religiosas e os outros 50% não. 67 Poderíamos supor que os 31,03% que se dizem indiferentes não façam parte dos 65,50% que reconhecem a influência das crenças na formação acadêmica. O problema é que os que disseram não são apenas 17,25% e os demais 17,25% deixaram de responder. Isso significa que, ainda que parte destes 31,03% esteja incluída nos 17,25%, os 13,78% restantes se dizem indiferentes mesmo depois de reconhecerem que a religiosidade de seus alunos interfere em sua formação acadêmica. 141 eles, suas crenças religiosas e, por seu turno, 50% dos agnósticos também afirmam possuir crenças religiosas. Quanto ao procedimento da Universidade frente ao crescente surgimento de manifestações religiosas e conflitos daí decorrentes em seu interior, temos os seguintes resultados: 48,27% dos professores disseram que é preciso entender o que está ocorrendo;; 24,15% não forneceram nenhuma resposta; 20,68% disseram ser necessário instaurar o diálogo e o debate; 3,45% disseram que a Universidade deve ignorar a situação e 3,45% disseram que a Instituição precisa tomar providências. Aqui, como podemos ver, a atitude dos professores já muda um pouco em relação à indiferença manifestada quando perguntados a respeito de como vêem o envolvimento do alunado em Movimentos Religiosos. Ainda assim me parece um tanto sintomático que 24,15% não tenham dado resposta à questão e 3,45% tenham dito que a Universidade deve ignorar o crescente surgimento de manifestações religiosas e os conflitos de tal natureza em seu interior. E ainda mais porque, não é de mais relembrar, 65,50% do corpo docente afirmou que a formação acadêmica dos estudantes é influenciada e recebe interferência de suas crenças religiosas. Recapitulando: os resultados dos questionários aplicados em 2006 revelam que o número de alunos ateus ou agnósticos diminui e cresceu o percentual daqueles que, mesmo que não tendo vinculação às religiões instituídas, possuem suas crenças religiosas. Não voltei a ouvir os professores mas, pelas respostas hoje dadas pelos alunos, foi-me possível constatar que a situação não se modificou embora os conflitos pareçam ter diminuído de intensidade. A diminuição dos conflitos entre professores e alunos, tendo como motivo (aparente) aqueles de ordem religiosa, a meu ver parece resultar de dois movimentos semelhantes e complementares: de um lado os professores continuam ignorando a interferência das crenças religiosas de seus alunos em sua formação acadêmica, de outro os alunos, em sua grande maioria, ignorando aqueles conteúdos que ferem ou contradizem suas crenças religiosas. E tudo segue como se nada estivesse acontecendo. É como disse nossa já conhecida Vera Regina: ―Estes conteúdos não afetam em nada a minha vida, na verdade intensifica (sic) ainda mais as minhas crenças religiosas‖. 142 Para os professores o ressurgimento da religiosidade entre seus alunos segue sendo explicada da mesma maneira como pensavam seus precursores sociólogos de dois séculos atrás. Em suma, Religião tem a ver com atraso, infantilidade, falta de consciência crítica, resultado do neoliberalismo, resposta aos desencantos e dificuldades financeiras, e por aí vai. Olhada a partir de uma perspectiva exclusivamente objetivo-racionalista, a realidade manifestada pelos dados e depoimentos há pouco apresentados, nada mais significaria do que a encarnação da velha disputa entre Ciência e Religião. É certo que esta disputa, ainda que ultrapassada e tão pouco criativa, ainda se faz presente, mas a meu ver ela é hoje apenas a ponta de um gigantesco iceberg. Conhecê-lo e transformá-lo exige disponibilidade e coragem para olhar mais a fundo do que freqüentemente estamos acostumados e dispostos a fazer. Concretamente isto significa realizarmos uma viagem ao nascedouro desta secular inimizade com a intenção de não só identificarmos suas origens e conhecermos melhor seus meandros e fundamentos, mas sobretudo para podermos identificar em nós mesmos e em nossas práticas, sobretudo nas pedagógicas, os ranços e resquícios de uma época à qual nossas tradições epistêmicas parecem continuar afetivamente presas68. Por mais instigante e intelectualmente estimulante que possa ser, não posso aqui me permitir prosseguir apresentando dados e tecendo comentários. Por outro lado, não há como deixar de relatar, ainda que brevemente, os frutos iniciais desta pesquisa. Dentre as conclusões a que cheguei, destacam-se as seguintes: o não reconhecimento e valorização das crenças e vivências religiosas dos estudantes, (e em alguns casos discriminação e ridicularização) por parte de seus professores tem produzido sérios prejuízos à realização de uma genuína Educação que seja instrumento de formação de seres humanos mais solidários, sensíveis e compromissados com os valores humanitários. E não apenas isso. Na medida em que a empatia e o respeito se fazem ausentes dos processos pedagógicos, até mesmo uma pretensa formação técnica se vê irremediavelmente comprometida e fadada ao fracasso. Tal situação agrava-se ainda mais porque vem acarretando uma 68 Para Freud os afetos são a manifestação a nível emocional de experiências muito fortes e nas quais grande energia psíquica foi investida. Cf. FREUD, Obras Completas, Vol. I, pp. 460-470. 143 acentuada fragmentação e um crescente distanciamento entre o que é vivido cotidianamente pelos estudantes e o que lhes é ensinado no ambiente acadêmico. Temos como mais um dos nefastos resultados, desta fragmentação, o aprofundamento das há muito tensas relações entre Ciência e Religião. Esta dicotomização empobrece estas duas legítimas e importantes dimensões da existência. Some-se a isso a produção de um autêntico ―mecanismo de defesa‖ (Freud) a partir do qual, frequentemente, a recusa do professorado em dialogar com as ―visões de mundo‖ (Gramsci) religiosas de seus estudantes tem provocado: uma reação em cadeia contra o pensamento científico moderno; a adesão nem sempre crítica aos discursos por vezes separatistas, fundamentalistas e excludentes, presentes em algumas denominações religiosas e o reforço à dicotomia ciência – religião, nos moldes norte-americanos da insalubre, equivocada e perniciosa disputa entre darwinistas e criacionistas. O diálogo entre Ciência e Religião, além de possível, faz-se hoje imprescindível. Através dele podemos dar passos significativos visando a superação tanto da insensibilidade e do descompromisso ético ainda comuns em determinados setores do meio científico quanto dos fundamentalismos e intolerâncias em significativos segmentos religiosos. A proliferação de manifestações religiosas de natureza acentuadamente conservadoras tem interferido, nem sempre positivamente, no dia a dia das escolas públicas, cenário privilegiado na acolhida aos futuros professores formados na Universidade. Em freqüentes situações há reclamações no sentido de que o que estaria sendo colocado em risco seria o próprio caráter laico do espaço públicoeducativo. Saber lidar de forma madura e respeitosa com tais tipos de conflito tornase hoje uma exigência na formação e na prática do educador. Diante destas constatações, venho - desde o primeiro período letivo de 2008 - oferecendo para o Curso de Pedagogia, uma Atividade intitulada Educação, Ciência e Religião. Esta Atividade nasceu com o objetivo geral de promover o diálogo entre Ciência e Religião tendo em vista o exercício de leituras responsáveis e respeitadoras das crenças e vivências religiosas dos estudantes e a integração destas duas dimensões (Ciência e Religião) na formação do educador. Ao longo dos quatro períodos letivos em que foi oferecida, a Atividade foi sendo procurada por crescente número de estudantes da Pedagogia e de outros Cursos da Universidade. Há casos de estudantes que já estão inscritos pela terceira 144 vez na Atividade, forçando a Coordenação do Curso de Pedagogia a proceder à modificação do código da mesma para que isto lhes seja possível. Em decorrência da crescente procura e da realização profissional que a Atividade me vem proporcionado entrei com o pedido de transformação da Atividade em Disciplina Optativa para o Curso de Pedagogia e Eletiva para as demais Licenciaturas e para os Cursos de Serviço Social e Psicologia. Desde o presente semestre letivo (2010/2) a disciplina passou a ser oferecida. De 2008 para cá (2010/1) a Disciplina Educação, Ciência e Religião vem passando por um processo de aprimoramento que tem lhe conferido, cada vez mais, um caráter acentuadamente vivencial. Assim sendo, as 60 horas necessárias à sua realização não se dividem mais em 50 hs teóricas e 10 hs práticas, como em seu início, mas em 30 hs teóricas e 30 hs práticas. Isso vem produzindo bons frutos na medida em que os processos reflexivos vêm sendo reforçados e ganhando visibilidade na medida em que são experienciados. Por ter uma perspectiva transdisciplinar, a Disciplina Acadêmica possibilita aos participantes a integração de saberes oriundos das mais diversas áreas do conhecimento. Aproximando reflexão e vivência, e favorecendo o diálogo entre Ciência e Religião a Disciplina facilita a superação da não saudável fragmentação entre vida cotidiana e produção acadêmica (teoria e prática). A perspectiva dialógica que norteia a Disciplina incentiva o respeito e favorece o intercâmbio entre as mais diversas Tradições Espirituais da Humanidade, do Ocidente e do Oriente, da África e da América. As grandes Matrizes Espirituais da Humanidade, em suas origens, têm no autoconhecimento a sua centralidade. Ora, o autoconhecimento é hoje uma necessidade reconhecida, por renomados educadores a exemplo de Régis de Morais e Ubiratan D‘ Ambrosio (UNICAMP); Ruy do Espírito Santo (PUC-SP); Cláudio Naranjo (Chile-Espanha) e outros, como essencial à formação do educador. Recentemente a Secretaria de Educação de Porto Velho realizou, com sucesso absoluto, o processo de formação de professores na perspectiva do autoconhecimento: ―SAT na Educação. A experiência pioneira dos professores de Porto Velho e a humanização na educação‖ (Cf. site: www.simposioeducacão.com.br). A Disciplina Educação, Ciência e Religião propõe dinâmicas de grupo e outras técnicas que facilitam o ―diálogo interno‖ tão ausente e tão necessário ao ser 145 humano contemporâneo. Embora seu idealizador tenha formação em Psicologia Clínica, tais exercícios e vivências oriundas das mais diversas abordagens psicológicas, com destaque para a Gestalt-terapia de F. Perls; a Logoterapia de Victor Frankl; o Psicodrama de Moreno, a Psicologia Analítica de C. Jung e a Psicologia Transpessoal de G. Durckheim, dentre outras, não pretende constituir-se em Terapia de Grupo ou num substituto das psicoterapias. Trata-se de possibilitar a vivência daquilo que se estuda nos textos, filmes, músicas, utilizados ao longo do Curso. É acima de tudo um exercício de iniciação ao Conhecimento de Si, o que aproxima a Disciplina da Filosofia Antiga, das Tradições Orientais e das Tradições Indígenas Latino-americanas. Para educar é preciso educar-se. No dizer do filósofo G. Gusdorf, ―O trabalho da Educação, sejam quais forem suas modalidades particulares, representa, acima de tudo e no fim das contas, um trabalho de nós próprios sobre nós próprios‖ (GUSDORF, 2003, p. 61). Os grandes temas trabalhados pela disciplina remetem-nos à auto-ecologia (cuidado de si: desde a alimentação, saúde física, mental e espiritual; cuidado do outro: compreensão, respeito e consideração; cuidado com o planeta: gratidão pela generosidade com a qual nos acolhe a Mãe Terra). Em termos concretos, os participantes são incentivados e orientados a: exercitar-se cotidianamente no autoexame, na auto-observação e na prática do cultivo de pensamentos saudáveis e positivos (o que lhes é facilitado pela prática das anotações no Diário que são orientados a manter). A outra face desta mesma moeda se traduz na prática do respeito às diferenças, na busca do diálogo consensual e no combate (em Si) de todas as formas de descriminação; exclusão e demonização do Outro. A Comunhão respeitosa e responsável com a Natureza torna-se assim, um reflexo natural das práticas auto-educativas anteriores (o que é facilitado pelos exercícios realizados fora da sala de aula, em meio à natureza). É por isso que a Disciplina possui também um caráter eminentemente Holístico que valoriza e busca preservar a perspectiva de Totalidade, em sua afinidade com a Teoria da Complexidade de Edgar Morin; prestando sua contribuição ao exercício de uma ―ciência com consciência‖; de religiosidades promotoras de seres humanos chamados à Comunhão entre si e a realização de práticas educativas consagradas à construção de uma sociedade Saudável e Fraternal. A cada semestre, findo o Curso, seus participantes são convidados a avaliar sua participação em termos qualitativos, o que inclui a elaboração de uma reflexão 146 que contemple, dentre outros tópicos, seu crescimento pessoal e as implicações concretas de suas vivências e reflexões em sua vida cotidiana e em suas práticas pedagógicas. São significativos os emocionantes depoimentos dos participantes presentes em seus relatórios finais (alguns dos mais significativos em anexo). O Projeto Espiritualidade prevê um estudo sistemático e analítico destes depoimentos com a finalidade de fornecer suporte às práticas pedagógicas na formação de futuros educadores. Concluída sua participação na Atividade Educação, Ciência e Religião, os ―egressos‖ passam a fazer parte de um banco de dados do qual constam seus endereços eletrônicos e telefones, permitindo o envio sistemático de textos teóricos e prático-reflexivos, indicação de filmes, peças de teatro, publicações, eventos científicos e músicas que versem sobre a Temática Central da Atividade. A isso venho chamando ―Manutenção‖, que nada mais é do que um apoio para que aqueles que participaram da Atividade (Disciplina) sintam-se motivados a prosseguir nos estudos, reflexões e no Processo Permanente de auto-transfomação e possam manter-se atualizados. É também um jeito de manter os participantes em contato uns com os outros, incentivando e possibilitando o intercâmbio. O Projeto prevê, para o segundo semestre letivo de 2010, um Encontro para o qual serão convidados todos os alunos da UFF que já participaram da Atividade e terá por objetivos principais: promover uma avaliação da influência da Atividade em sua vida cotidiana, incluindo suas práticas pedagógicas; o intercâmbio de experiências (como o aprendizado realizado na Atividade tem se concretizado em minhas práticas? Que dificuldades e facilidades tenho encontrado?) e servir de incentivo, reabastecimento e fortalecimento dos ideais de uma Educação Espiritualizada69. A constituição de um Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Espiritualidade70 (2010/2), com a participação de alunos do Curso de Pedagogia, Letras, Serviço Social e História, é hoje uma das perspectivas de continuidade mais visível do Projeto Educação e Espiritualidade. 69 Uma educação centrada na perspectiva do autoconhecimento. Um embrião deste Grupo de Estudo e Pesquisa já encontra-se em funcionamento, tendo como participantes estudantes de Pedagogia, História e Letras da UFF, bolsistas de Iniciação á Docência. Cf: WWW.espiritualidadenaeducacao.blogspot.com. 70 147 REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. (1997). Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. D‘AMBROSIO, Ubiratan. (1997). Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena. FREUD, Sigmund. (1976). ―Atos Obsessivos e Práticas Obsessivas‖. Completas, vol. IX, pp. 121-131. Rio de Janeiro: Imago. Obras ______________. (1976). “Além do princìpio do prazer”. Obras Completas, vol. XVIII, pp. 33-34. Rio de Janeiro: Imago. GRAF DURCKHEIM, K. (1994). O zen e nós. São Paulo: Pensamento. ________________. (2001). Em busca do mestre interior: mestre, discípulo e caminho. São Paulo: Paulinas. o ser humano como GUSDORF, Georges. (2003). Professores para quê? Para uma pedagogia da pedagogia. São Paulo: Martins Fontes. HOUAISS, Antônio et VILLAR, Mauro Salles. ( 2004). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva. MATURANA, H. et VARELA, F. (2002). A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena. MORAIS, Régis. (1997). Stress existencial e sentido da vida. São Paulo: Loyola. ____________. (1997b). Sobre sociedade e ciência no mundo atual (A Psicologia). Campinas: Cadernos de pesquisa – NEP. ____________. (2002). Espiritualidade e Educação. Allan Kardec. Campinas: Centro Espirita NARANJO, Cláudio. (2005). Mudar a Educação para Mudar o Mundo. o desafio mais significativo do Milênio. São Paulo: Ed. Esfera. PORTELLI, Huges. (1984). Gramsci e a questão religiosa. São Paulo: Paulinas. SANTO, Ruy C. do Espírito. (2000). O renascimento do sagrado na educação. O Autoconhecimento na formação do educador. Campinas: Papirus. 148 GT 7: RELIGIÃO, FILOSOFIA E GLOBALIZAÇÃO Coordenação: Dra. Maria Eliane Rosa de Souza Resumo: Este grupo de trabalho é um espaço que se propõe a refletir sobre temas ou problemas que envolvam a filosofia em diálogo com a religião e/ou com as questões políticas, sociais, culturais e éticas pertinentes ao mundo globalizado. Objetiva-se desenvolver um diálogo de fundamentação filosófica que se abra, porém, a aproximações com outras áreas do saber, sobretudo com as ciências da religião, as ciências sociais e a antropologia, no sentido de acolher a diversidade que o tema ―Filosofia, Religião, e Globalização‖ suscita. Palavras-chave: filosofia, religião, globalização, sociedade, cultura. 149 AS INFLUÊNCIAS DAS CRENÇAS RELIGIOSAS NA SOCIEDADE POLÍTICA DOS ESTADOS UNIDOS. UMA REAÇÃO CRÍTICA ÀS QUESTÕES LEVANTADAS POR ALEXIS DE TOCQUEVILLE MARIA RITA MEDEIROS FONTES ([email protected]) RESUMO A relação da religião com política não é, de forma alguma, algo novo que se apresenta nas considerações acerca desses dois temas instigantes. Muito já foi analisado sobre essa questão, o que traduz uma constante preocupação em definir os limites de atuação dos valores religiosos na vida dos cidadãos no Estado. Este artigo se propõe a discutir criticamente as considerações de Alexis de Tocqueville sobre a formação da democracia, conforme seu livro A democracia na América, em especial sobre a sua concepção de constituição da população americana e as consequências das interferências ocasionadas pelas diversas orientações religiosas. Pretende também apresentar a proposta de Hannah Arendt para a conciliação do tema, com o intuito de enriquecer o debate e ampliar as perspectivas para a sua compreensão. Palavras-chave: Democracia. Expressão da religiosidade. Religião. A leitura do livro A Democracia na América, especialmente dos capítulos em que Alexis de Tocqueville aborda a questão da religião na implantação da democracia do Novo Mundo, motivou a confecção deste artigo. As teorias desenvolvidas por esse autor, em especial nos capítulos em que analisa as interferências diretas e indiretas da religião na formação democrática estadunidense, foram apresentadas consoante suas observações sobre uma formação política inédita que havia se instalado no Novo Continente. Tocqueville compreendeu o favorecimento da democracia como fruto da orientação dos costumes que a religião pode promover entre seus adeptos, na forma como era preconizada pelo catolicismo, no desenvolvimento do sentimento de igualdade. Pelo fato de ter acompanhado a Revolução Francesa e seus resultados, cujo movimento buscava a igualdade e a liberdade, pode evidenciar que, diferentemente do seu País, os anglo-americanos estavam identificados com as 150 necessidades orientadas pela igualdade e pela ânsia de liberdade e, por isso, souberam consolidar um regime político em que a expressão da vontade da coletividade se tornara possível. É compreensível que, para um jovem aristocrata do Velho Mundo, ‗descobrir a América‘ produziu uma visão entusiástica no que concerne ao movimento popular democrático. Procurou compreender as maneiras como esse contingente humano havia se organizado em torno de instituições que refletiam as manifestações de um povo que deixara seus países de origem e deles não conservavam as tradições. Esse povo, que veio para colonizar o Novo Mundo, tinha percebido que o antigo regime não mais produziria frutos e, mediante uma expressão política inovadora, soube como em nenhum outro lugar do mundo conhecido, colocar em prática o sonho da liberdade e da igualdade. Não obstante todo o entusiasmo natural diante da novidade promissora, entende-se que o autor não evidenciou com todas as nuances o que realmente aconteceu naquela nova estrutura, atribuindo à religião, principalmente ao catolicismo, grande parte da responsabilidade na estruturação de uma mentalidade solidária que favoreceu a implantação do regime democrático. Tocqueville considerava que a formação religiosa dos anglo-americanos era constituída, em sua minoria, de católicos irlandeses, dos quais procurou se aproximar para entender de que modo aquele povo havia direcionado suas ações no desenvolvimento da democracia. Esta abordagem evidencia que Tocqueville não salientou o papel da influência da igreja calvinista, principalmente das dissidências representadas pelos metodistas, os quakers e as seitas batistas que, de acordo com historiadores, compunham o cenário social daquela região recém-independente da Inglaterra, enfatizando o caráter geral do cristianismo. Historiadores afirmam que o Novo Continente foi colonizado, em uma primeira etapa, por protestantes europeus, principalmente ingleses, por volta do século XVII. Essas pessoas fugiam da pobreza em que viviam; havia nas cidades inglesas uma grande massa de homens pobres, resultado do êxodo rural provocado pelas apropriações de propriedades rurais que provocaram a expulsaram dos colonos de suas terras e de suas tradições. Esses imigrantes ocuparam as colônias do Norte, também chamada de Nova Inglaterra. A economia ali desenvolvida era de pequenos produtores para o mercado interno, comerciantes, com predominância da mão-deobra livre e remunerada. Havia ainda uma outra camada da população, de origem 151 burguesa, que sofria com as perseguições religiosas nos seus locais de origem. Essa ocupou as colônias do Sul e prosperaram na produção agrícola, em grandes latifúndios, mas eram exploradas pela Inglaterra, mediante o Pacto Colonial. Formaram uma elite econômica baseada na mão-de-obra escrava, com costumes tradicionais e produção de exportação para a metrópole. Posteriormente, franceses, holandeses e alemães vieram se juntar à população da América, tornando esse país um dos principais representantes da convivência entre raças e etnias. Essa mescla de povos trouxe para o novo arranjamento social suas religiões e culturas que nem sempre conviveram pacificamente, como queria demonstrar Tocqueville. No período em que as comunidades de colonos foram se instalando ao longo da costa americana, vários grupos constituídos por religiosos de algumas igrejas, principalmente entre as reformadas, foram ocupando espaços sociais e impondo sua maneira de viver. Mesmo diante dessa profusão de seitas e igrejas instituídas, que foram se formando a partir da colonização, Tocqueville asseverou a existência de uma harmonia e convivência pacíficas, difícil de serem sustentadas. Esse autor engloba todos os cristãos em um grupo homogêneo e com fundamentações semelhantes, não conferindo a esses as especificidades que não podem ser preteridas, sob pena de reconciliar aspectos pouco ou quase nada conciliáveis. ―Quanto a religião, a fé cristã é quase universal para os americanos de Tocqueville e a abrangência e as relações entre diferentes denominações 71 não parecem ser fonte de tensões fundamentais‖ (REINHART, 1997, p. 61). Para Tocqueville os imigrantes logo se acomodaram em suas culturas e crenças e ―procuraram harmonizar a terra com o céu‖. Afirmou que ―desde o princípio, a política e a religião acharam-se de acordo […]‖. No entanto, em nossa pesquisa, constatamos que existia uma hostilidade velada entre os diversos cultos e que, em muitas seitas, havia o predomínio da intolerância e do patrulhamento moral. Torna-se evidente que uma análise sobre tais questões na formação da democracia americana não pode abster-se de abordar as diferenças entre as respectivas metafísicas religiosas de católicos e calvinistas, por serem essenciais na construção da visão de mundo daqueles grupos sociais. É possível apresentar, a título de exemplo, a organização moral a que os puritanos eram submetidos. A racionalização 71 No original: “As for religion, Christian faith is nearly universal among Tocqueville’s Americans, and the range and relations of different denominations do not seem to be sources of fundamental tension.” (tradução da autora). 152 da fé atingiu seu ápice com essa expressão religiosa oriunda do presbiterianismo rigorista, segundo Weber: Os católicos não levaram tão longe quanto os puritanos a racionalização do mundo, a eliminação da mágica como meio de salvação […] O sacerdote era um mágico que realizava o milagre da transubstanciação e que tinha em suas mãos a chave da vida eterna (WEBER, 1994, p. 81). Ainda entre os calvinistas a vida social representava o meio pelo qual o seguidor poderia alcançar a salvação. Diferentemente dos católicos, esses adeptos utilizavam as ações sociais como meio de glorificar o seu Deus e, assim, possibilitar uma vida de harmonia e santificação pelas suas obras. Não havia traços de amizade, uma vez que essa emoção era indiferente aos calvinistas, que agiam pelo bem comum para elevar o nome de Deus. Isso contraria a versão de Tocqueville quanto à independência protestante e as ações por interesse, na medida em que tais adeptos viam na cooperação algo muito superior. Não havia entre essas instituições religiosas a paz desejada por Tocqueville. Os adeptos do puritanismo se achavam mais ―puros‖ que os católicos e suas reuniões festivas eram sempre contidas e vigiadas, o que impedia as manifestações espontâneas. O autocontrole era a principal virtude do puritano e seu ideal prático. Isso é ainda passível de confirmação pois ―que ainda hoje distingue o melhor tipo de gentleman angloamericano‖ (WEBER, 1994, p. 83). Tocqueville compara os homens americanos a alguns habitantes da europa, atribuindo aos primeiros mais esclarecimento e maior liberdade. No entanto notou que havia mais espontaneidade e alegria entre os grupos ignorantes e miseráveis do Velho Mundo do que aqueles a quem observou. ―Vi, na América, os homens mais livres e mais esclarecidos, situados no meio das condições mais felizes existentes no mundo; tive a impressão de que uma espécie de névoa cobria habitualmente os seus traços; pareceramme graves e quase tristes, mesmo em seus prazeres.‖ (TOCQUEVILLE, 1994, p. 409). Destacam-se, ainda, os puritanos por sua racionalização da fé. Para eles ―somente uma vida guiada por uma reflexão contínua poderia obter vitória sobre o estado de natureza. O cogito, ergo sun de Descartes foi adotado pelos puritanos com esta reinterpretação ética.‖ (WEBER, 1994, p. 82). A participação política não era aceita entre os metodistas72 (movimento nascido e desenvolvido pelos angloamericanos) e entre as seitas batistas73. Os representantes dessas instituições incentivavam a obediência às leis, mas se recusavam a aceitar as funções públicas. 72 Movimento religioso cristão, de princípios muito rígidos, que se processou dentro da Igreja anglicana no século XVIII, liderado pelo teólogo inglês John Wesley (1703-1791). 73 Grupo de seitas protestantes que professa que só os adultos crentes podem ser batizados e que o batismo só é válido pela imersão completa do batizando. 153 Havia entre os quakers74 a orientação de sequer pegar em armas e prestar qualquer juramento em nome dos assuntos políticos. Para Tocqueville não havia diferenças sociais marcantes, nem lutas de poder entre as diversas seitas que proliferavam naquela época. Os ricos americanos não eram tão ricos e os pobres, nem tão pobres. Na América de Tocqueville não havia disputas de terras nem de poder. Os cidadãos tinham em mente uma vontade única de viver em sintonia com as leis e defender os interesses gerais em detrimento dos interesses particulares. ―Considerando, novamente, as lacunas da cartografia de Tocqueville, a ausência das pessoas e relações, as maneiras pelas quais – historiadores e críticos têm apontado durante anos – sua visão de uma nação sem classe e sem antagonismo de base exagera enormemente o grau de igualdade 75 material e consenso cultural‖ (REINHARDT, 1997, p. 60). Ainda que Tocqueville não defendesse explicitamente o catolicismo liberal professado entre os franceses 76 , parece que tentava despertar nos europeus em geral, e entre os franceses em particular, a chama democrática que tanto o havia encantado. Percebe-se em suas defesas da convivência social e da proliferação da fé como esperança de liberdade e igualdade uma imensa vontade de implantar esse ideal no seu próprio País. É com inegável ardor que Tocqueville defende o cristianismo. É também notória sua defesa em favor de uma fé que se professa em liberdade, argumentando até mesmo em favor do panteísmo. No entanto perguntase: se essa afirmação do panteísmo é verdadeira, por que, então, a Índia, nação predominantemente panteísta, cuja fé é incontestável e que também foi dominada pela coroa inglesa, não se tornou uma democracia semelhante à americana? Para Juan Manuel Ros, autor do livro Los dilemas de la democracia liberal, a abordagem tocquevilliana perpassa pela compreensão de que, quando a religião está separada do Estado, do poder político, ―exerce uma influência benéfica sobre o espírito da liberdade democrática‖ (2001, p. 253). Se bem entendida essa defesa, é possível constatar que é o espírito religioso, a expressão da religiosidade dos indivíduos, que propicia a convivência entre os cidadãos e favorece o desabrochar da experiência democrática. 74 Membros de seita religiosa protestante inglesa, também chamada de “a Sociedade dos Amigos”, fundada no século XVII. Prega a existência da luz interior, rejeita os sacramentos e os representantes eclesiásticos, não presta nenhum juramento e opõe-se à guerra. 75 No original: “Consider, again, the gaps in Tocqueville’s cartography, the missing people and relationships, the ways in which – as historians and critics have been noting for some years – his survey of a nation without class and without fundamental antagonisms greatly exaggerates de degree of material equality and cultural consensus”. (Tradução da autora). 76 É importante não perder de vista o peso das tradições católicas na formação do próprio Tocqueville. 154 Hanna Arendt, em seu livro Sobre a Revolução, também conduz sua análise em uma direção que engloba essa visão. Para essa autora, os americanos se reuniram em organismos ou associações que visavam estabelecer compromissos mútuos e assim fazer prevalecer uma nova ordem no País. O próprio organismo constituído era já uma inovação proveniente das necessidades e do engenho desses europeus que haviam decidido abandonar o Velho Mundo, não apenas no intuito de colonizarem o novo continente, mas também com o propósito de estabelecerem uma nova ordem secular (ARENDT, 2001, p. 223). Diante disso, Arendt defende que os americanos quando decidiram não mais se submeter ao rei inglês, não retrocederam ao ‗estado de natureza‘, pois embora houvessem rompido o pacto com o monarca, suas associações e compromissos os mantiveram unidos, prevalecendo o espírito de igualdade que implantaram. Nas práticas desenvolvidas nos condados, como bem observou Tocqueville, os americanos aprenderam a formar acordos e compromissos mútuos e puderam se opor aos ingleses com força e determinação, diferentemente dos revolucionários franceses que não possuíam liames sociais consistentes para unir o povo e assim tomar o poder. Arendt chamou de ―organismos políticos civis‖ as associações que os americanos criaram, estabelecendo ―um novo começo a meio da história da humanidade ocidental‖ (ARENDT, 2001, p. 241). Por maiores que tenham sido as influências religiosas nos colonizadores americanos, cuja herança cristã não pode ser descartada, também a evidência de que eram ‗homens das luzes‘ precisa ser devidamente retomada. Muitos professavam sua fé apoiados no que denominavam ‗luz interior‘ ou ‗luz da consciência‘, que os tornavam favoráveis à recepção de um dever vindo do Deus que se manifestava no interior de suas próprias consciências. Segundo Manuel Ros a religião insuflou no espírito de seus seguidores o sentimento de igualdade e de liberdade e elevou barreiras morais que impediram os movimentos despósticos de proliferar. Para ele, Tocqueville compreendeu a organização da sociedade americana que conseguiu unir ―em estreita harmonia o espírito religioso e o da liberdade democrática sem mesclar seus respectivos domínios institucionais [...]‖ (ROS, 2001, P. 253). Para Arendt, uma vez feitos os primeiros movimentos da independência, os americanos precisaram estabelecer uma lei fundamental da sociedade civil. Diante dessa empreitada precisaram invocar a tradição religiosa para fundar e legitimar 155 essa nova ordem, talvez movidos pelas reminiscências da tradição européia – da ‗cristandade‘ – cujos fundamentos se apoiavam na crença de ―leis de natureza‖ e de um direito formal instituído por um ‗legislador universal‘. […] dificilmente podemos evitar o fato paradoxal de que foram precisamente as revoluções, as suas crises e o seu aparecimento, que levaram os próprios homens ―iluminados‖ do século XVIII a defender a existência de uma sanção religiosa, no momento exato em que estavam prestes a emancipar totalmente o domínio secular das influências das igrejas e a separar de uma vez para sempre a política da religião (ARENDT, 2001, p. 229). Se for possível entender as ações dos americanos na Declaração da Independência como religiosa, essa religiosidade poderia ser compreendida no sentido romano do religare – uma religação com o começo, com o que os americanos denominaram fouding fathers. Semelhante à tradição romana do culto aos fundadores e à ―Cidade Eterna‖, os americanos invocaram a sabedoria de seus ancestrais para fundar e legitimar democracia, utilizando o recurso de retomar a luta e a conquista do Novo Continente e transformar a história. Arendt afirma que essa vinculação com o passado, com a história dos fundadores como anunciadores de um novo tempo que virá foi ―talvez o gênio político do povo americano, ou a enorme boa sorte que sorriu à república americana, […] consistisse na extraordinária capacidade de olhar o passado com os olhos dos séculos vindouros‖ (ARENDT, 2001, p. 245). Diante dessa afirmação, entende-se que ao retroceder no tempo, baseandose nas histórias de lutas e conquistas dos antepassados, que suscitaram inclusive lendas de heróis desbravadores e fundadores do novo País, remontou-se uma origem de difícil confirmação histórica. A especulação permite que se retomem os atos de coragem dos antepassados e, por meio de tais atitudes, a possibilidade da formação de uma consistente ordenação social, fundado em um passado heróico que legitime o novo regime, sem recorrer à tradição religiosa. É possível compreender a ênfase atribuída ao papel da religião na constituição dos costumes que favoreceram a democracia americana, sustentada por Tocqueville em sua abordagem, considerando a sólida formação católica que recebeu na sua juventude. De acordo com Goldstein, pode-se afirmar que Tocqueville era, certamente, um idealista, ―se conceituarmos idealismo como a 156 crença na possível perfeição da vida em harmonia com um ideal espiritual.‖ (1960, p. 380) 77. Mas é inegável que a defesa que Tocqueville faz do sentimento religioso, e não da vinculação da igreja ao poder do Estado, favorece as relações entre os cidadãos e produz na sociedade sentimentos de solidariedade. Agnès Antoine, no livro L’impensé de la democratie, afirma que ―a religião corrige o excesso de racionalidade e de independência do indivíduo democrático [...]‖ 78 e, ainda, ―protege a humanidade das possibilidades da organização sociopolítica que nós qualificamos hoje em dia como totalitarismo‖ 79 (203, p. 140 – 141). Portanto, a defesa que Tocqueville faz da religião não deve ser entendida sob a forma de uma união do Estado com instituições religiosas, onde a organização clerical se torna uma estrutura de poder e defende seus dogmas como se sustenta o pilar de uma potência, onde a intolerância é muitas vezes disseminada e até incentivada. Para Tocqueville o espírito da religiosidade que habita cada ser humano foi o responsável pela convivência harmoniosa entre os americanos que, movidos pela tolerância e a boa vontade inerente ao espírito de religiosidade, pode congregar um povo e reuni-lo entorno de um ideal: liberdade e igualdade. REFEFÊNCIAS ARENDT, H. Sobre a Revolução. Tradução de I. Morais. Lisboa: Relógio D‘Água, 2001. ANTOINE, A. L’Impensé de la democratie – Tocqueville la citoyenneté et la religion. Paris: Fayard, 2003. GOLDSTEIN, D. S. French Historical Studies. I (4), 1960. MANUEL ROS, J. Los dilemmas de la democracia liberal – sociedad y democracia en Tocqueville. Barcelona: Crítica, 2001. REINHARDT, M. The Art of Being Free – Taking Liberties with Tocqueville, Marx and Arendt. Ithaca; London: Cornell University Press, 1997. 77 No original: “[…] if one defines idealism as belief in the possible perfection of life in harmony with a spiritual ideal.” (Tradução da autora) 78 No original: “La religion corrige l’excès de rationalité ET d’indépendence de l’individu démocratique.” (Tradução da autora) 79 No original: “[...] protege ainsi l’humanité dês potentialités de l’organisation sociopolitique que nous qualifons aujourd’hui de totalitaires.” (Tradução da autora) 157 TOCQUEVILLE, A. A Democracia na América. 3. ed. Tradução de Neil Ribeiro da Silva. São Paulo: Itatiaia; Universidade de São Paulo, s.d. WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 8. ed. Tradução de M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tamás J. M. K. Szmrecsányi. São Paulo: Pioneira, 1994. PLURALIDADE RELIGIOSA E PERGUNTA PELO ABSOLUTO EM HEIDEGGER Victor Hugo de Oliveira Marques ([email protected]) Resumo À luz das manifestações de uma visão de mundo como Aldeia Global, os impactos sobre os fenômenos religiosos são inevitáveis, sobretudo pela constatação de uma pluralidade. Deste modo, suscita-se, inevitavelmente a pergunta pelo absoluto e sua validade. Uma hermenêutica possível deste fenômeno é feita pela proposta do filosofo Heidegger que recoloca a pergunta pela essência do fundamento a partir âmbito ontológico da transcendência, ou seja, da abertura do ser-aí ao seu mundo, constituindo uma ontologia da finitude. Palavras-Chave: Religiões, Heidegger, Absoluto Problematização entre Globalização e Religião A globalização é um fato e não cabe aqui um estudo detalhado das forças originantes deste. Menos ainda, cabe fazer uma leitura simplista do mesmo. Apenas, dizer do que se trata quando se fala ―globalização‖, já que tal termo não se constitui de uma equivocidade semântica. Portanto, adota-se aqui o conceito do sociólogo contemporâneo Wallerstein citado por Enzo Pace, sociólogo italiano, em seu artigo Religião e Globalização. Globalização é, portanto, não tanto um fenômeno a descrever, mas antes ―um instrumento metodológico de pesquisa e de compreensão da realidade social contemporânea‖ (PACE, 1997, p.26). Assim sendo, o que está em jogo neste artigo são os efeitos intencionais e não intencionais a partir do paradigma global sobre a sociedade urbana contemporânea, sobretudo frente às religiões. Mas não apenas isto. É também objeto desta, a reflexão filosófica, 158 especialmente uma leitura hermenêutico-fenomenológica destes efeitos, em vias de uma compreensão ontológica da realidade. É incontestável que seus primeiros efeitos se mostram de modo mais direto nas relações políticas, econômicas e sociais. Apesar de tal instrumental estar recheado de ideologias e aparatos de marketing, o que lhe dá uma conotação estritamente positiva, por outro lado, é fruto de uma ―incoerência econômica e de uma desordem social‖ (PERROT, 2001, p.14.). Não obstante, os efeitos de um processo global não se limitam apenas em seu aspecto externo, ou seja, nas manifestações políticas, econômicas e sociais. Esta aproximação internacional entre as nações, gerada por uma necessidade cada vez mais urgente de uma ―unificação global‖, implica ainda, em última instância, na subjetividade humana, ou seja, no modo de compreensão do imaginário simbólico dos indivíduos. Um dos aspectos relevantes deste grande cenário imaginativo, subjetivo e simbólico humano que tem sentido as influências do fenômeno global, e que constitui o recorte epistemológico desta comunicação, é, sem dúvida, a religião. Em um passado, não muito remoto, as religiões em geral possuíam um papel significante, e de certo modo, determinavam o modo organizacional e moral de muitas sociedades. Hoje, com a nova organização mundial caracterizada como Aldeia Global, que desconhece as fronteiras de raça, região e religião, põe-se em questão o verdadeiro papel das mesmas. Neste sentido, questiona professor indiano Wilfred (2001, p.35): ―Estão as religiões fracassando e em vias de torna-se apenas resquícios de uma sociedade pré-moderna, como a tese da secularização e privatização gostaria que fosse?‖. Ou ainda, há a necessidade de se repensar o universo religioso num mundo globalizado? Ou seja, qual é, então, o papel de uma religião em um mundo globalizado, se é que ainda existe? Por um lado, a ideologia global tem como idéia motriz a pretensão da ―unidade de toda família humana‖ (WILFRED, 2001, p.36). Isto significa que, em tese, a globalização não subsumiria somente a política, a econômica e as tecnologias de aproximação social, mas implicaria necessariamente num efeito social que tenderia a uma verdadeira unidade global. Neste sentido, muitos teóricos (como é o caso de Fukuyama) lêem tal fenômeno como uma meta-história do capitalismo, que tem seu fim na unidade e na universalidade da humanidade. Deste modo, a religião passaria ser compreendido, em consonância homogeneização, como um ethos humano único, como explica Wilfred: com a 159 Em harmonia com o processo de homogeneização, também as religiões passariam por um processo de metamorfose: transformar-se-iam numa religião ideal acoplada a uma ética global com embalagem atraente que qualquer pessoa no mundo inteiro poderia como mercadorias ou bens espirituais e morais padronizados (2001, p.37) Dentro deste modelo, o ideal capitalista atingiria seu auge, já que as pluriformidades e dissonâncias religiosas seriam subsumidas pela lógica do capital, ocultando sua verdadeira face mediante um falso humanismo e uma preocupação filantrópica. Esta idéia de uma religião única é, em abstrato, o favorecimento do universal em detrimento do particular, ou seja, um universal que subsume os particulares enquanto negação da negação (numa dialética hegeliana). Ao contrário do que aparenta ser, esta ideologia de nenhum modo representa a afirmação do Absoluto, como propõe as cosmovisões religiosas. A idéia do Absoluto nas cosmovisões religiosas não implica no abandono do particular, pelo contrário, as religiões de um modo ou de outro travam tensões entre universal e particular, sendo que um depende do outro: ―A abertura universalista de uma tradição religiosa é real na medida em que ela está enraizada em sua particularidade‖ (WILFRED, 2001, p.38). O que consistiria, então, um Absoluto? É possível conceber uma idéia religiosa de Absoluto que subsuma todas as suas particularidades? Se isto for possível, ainda sim, poderia ser classificada como religião? Por outro lado, a globalização, mesmo não parecendo, em uma passada rápida, traz à tona um certo tom de particularismos. O próprio instrumental global é um particular que se acendeu em detrimento de outros. Deste modo, um processo homogeneizador e globalizante implica, necessariamente, a convivência das diversas realidades que comporá o todo. Este processo Wilfred (2001) denomina, genericamente, de ―tribalismo‖. Sob a perspectiva religiosa, o contato cultural intercontinental proporcionou a coexistência entre diversos tipos de manifestações religiosas que postas numa realidade urbana se assemelham a verdadeiros mercados religiosos. Ao contrário do que muitos teóricos projetaram, um mundo cada vez mais tecnocientífico dispensaria a existência das religiões, é a marca da atualidade. Quanto mais se avança em ciência e tecnologia, mais se prolifera a busca pela espiritualidade e conseqüentemente as manifestações religiosas 80. A 80 Cf. MARQUES, Victor Hugo. Introdução. In: Cristianismo e Filosofia nos três primeiros séculos da era cristã: Análise dialético-histórica, 2008. 160 realidade social que outrora era marcada pela predominância de um credo único num determinado terreno ou mesmo se podia dizer da religião de uma nação, hoje, isto já não mais é possível, de um modo geral. O pluralismo religioso é, hodiernamente, um fato, como mesmo constata o teólogo José Maria Vigil (2003)81. Do mesmo modo que um universalismo homogeneizador, engendrado por uma idéia de uma religião global implica em por em questão o que se compreende por Absoluto, um tribalismo ou pluralismo, fruto do mesmo paradigma global, também o põe em questão. Um mundo marcado pelo pluralismo religioso incorre em relativismos ou mesmo niilismo, uma vez que, é característica de cada religião a pretensão de estar de posse da verdade última. Se assim é, como pensar a idéia de Absoluto onde coexistem várias particularidades afirmando, cada uma, o seu único e exclusivo acesso? Ou uma possuiria certeza ou, então, a validade do próprio Absoluto estaria comprometida, pois, é absurdo pensar em dois absolutos coexistentes. Se o Absoluto é possível, logo, uma dentre elas estaria correta, qual seria? Que critérios deveriam ser adotados para descobri-la? Como se ter tal certeza? Por outro lado, se o Absoluto não existisse, por que proliferam, espantosamente, tantas manifestações religiosas que o pregam? Neste sentido, tanto de um lado como de outro, o instrumental globalizante sobre o universo religioso põe em questão aquilo que lhes servem de fundamento último, ou seja, o conceito do Absoluto, sem entrar em suas concreções factuais próprias de cada religião. Sendo assim, é possível ainda pensar uma idéia de Absoluto? A proposta de Heidegger frente à idéia de um Absoluto Diante da aporia acima exposta, entre o paradigma globalizador e a idéia do Absoluto, muitas leituras podem ser feitas como propostas de análise. Contudo, a pergunta pelo Absoluto, propriamente, remete aos fundamentos últimos da existência. O que implica dizer que, tal problema, enquanto abstração, necessita de um campo de discussão que consiga interpenetrar em tão denso inquérito. O horizonte que melhor toca a idéia do Absoluto é o ontológico, pois, todas as demais ciências trabalham com ―recortes‖ deste campo, os entes, restando à ontologia sua abordagem totalitária. Do ponto de vista ontológico, muitas ontologias podem ser 81 Cf. VIGIL, J. M. (Dir). Por los muchos caminos de Dios, 2003. 161 acessadas como tentativas de interpretação do Absoluto. Não obstante, depois do pensamento crítico kantiano, muito se desconfiou das pretensões ontológicas, chegando mesmo ao ponto de Nietzsche afirmar a ―morte de Deus‖ enquanto sinônimo da falência do Absoluto. Entretanto, é no século XX (justamente com advento da própria globalização) que a ontologia novamente é retomada e re-proposta como questão genuinamente filosófica e existencial, sobretudo, com o pensamento de Martin Heidegger (18891976). A temática do esquecimento do ser pela metafísica e sua re-colocação enquanto pergunta existencial reabre a necessidade da pergunta pelo Absoluto. No pensamento de Heidegger, a pergunta pelo Absoluto é intrínseca à pergunta pelo fundamento ontológico, ou seja, pelas condições de possibilidade ontológicas da própria existência. Neste sentido, Heidegger, para tratar do fundamento, faz um confronto com a tradição racionalista-moderna, na pessoa de Leibniz no que diz respeito ao Princípio de Razão Suficiente82. Em sua obra, Monadologia, Leibniz argumenta que nada pode ser considerado existente ou verdadeiro numa proposição se não tiver uma razão suficiente que a fundamente. Mesmo as verdades e os fatos considerados contingentes estão dotados de alguma razão suficiente. Destarte, para Leibniz não existe o acaso, tudo está fundamentado sob uma Razão Suficiente, que em última instância, afirma o filósofo, se identificaria com Deus.83 Contudo, para Heidegger, o Princípio de Razão Suficiente que tem uma pretensão ontológica do Absoluto (pois se identifica com Deus) se limita ao fundamento lógico, dando a este um caráter de fundamento último. Ora, como pensar o Absoluto apenas sob o ponto de vista lógico-lingüístico? Para confrontar Leibniz, Heidegger apresenta sua ontologia fundamental como proposta de pensar o fundamento, incluindo a possibilidade do Absoluto. Nestes termos, uma ontologia deve ter por início a pergunta pelo ser que, de imediato, aponta para o ente que lha faz, ou seja, o Dasein. Assim, há uma distinção fundamental entre ser e ente, que ficou conhecido como ―diferença ontológica‖. O Dasein, ente humano que se pergunta pelo ser, é caracterizado como a condição de possibilidade ontológica para que se possam estabelecer as bases ontológicas da própria existência, pois, este – o Dasein – é o único existente. 82 83 Cf. HEIDEGGER. A essência do fundamento, 2007. Cf. LEIBNIZ. Monadologia. In: Obras escolhidas, s.d., pp.165-167. 162 Neste sentido, a pergunta pelo fundamento se converte em pergunta pelas condições existenciais do Dasein que o fazem ―permanecer sendo‖. O modo de ser do Dasein que o caracteriza enquanto tal é seu ―aí do ser‖84, i. é, sua abertura para o ser. É neste ―recinto‖ que Heidegger vê a possibilidade de problematizar o fundamento. Se o Dasein é caracterizado como um ser aberto, esta abertura é, por sua vez, caracterizada ontologicamente como “transcendência” (Transzendenz). Ao contrário da tradição, a transcendência é um modo constitutivo do Dasein que o faz sair de si mesmo e encontrar o mundo que também o constitui de modo intrínseco. Transcender, portanto, não é encontrar a si mesmo, pois, o Dasein é um ser-nomundo (Sein-in-Welt). Com efeito, a transcendência do Dasein junto ao mundo é caracterizada pelo seu projetar. Projetar é, de alguma forma, lançar-se em suas próprias possibilidades, ou seja, é lançar-se para aquilo mesmo que se é, haja vista que, se compreende que o Dasein é a sua própria possibilidade. Aquilo que se ―antecipa‖ enquanto projetar do Dasein é compreendido como “liberdade” (Freiheit). A liberdade, então, é interpretada como a instância última da qual se pode pensar uma relação ontológica entre o Dasein e o seu mundo. É na liberdade do Dasein, não como fora compreendida pelos demais filósofos, mas como caracterização mais própria da abertura do Dasein ao mundo, que Heidegger afirma: ―a essência da verdade é a liberdade‖ (1979, p.137)85. Sem a liberdade, que o faz de sair de si e ser encontrado pelos entes, o ente humano não compreende a verdade, pois, é ela – a liberdade – que ―deixa-ser‖86 o ente. É importante frisar, aqui, que por liberdade não se refere a nenhum conceito já formalizado pela filosofia (como sinônimo de vontade, autodeterminação, opção de escolha, entre outros). A liberdade no pensamento heideggeriano tem a ver com o horizonte ontológico, na qual o ser, distinto do ente, ―se-dá‖ como tal. A liberdade é, no fundo, um modo de ser da transcendência do Dasein. É um ―comportamento‖87 que tem caráter de fundamento. Entretanto, pensar a liberdade como ―origem‖ do fundamento, ou como o próprio Heidegger afirma: ―a liberdade é o fundamento do fundamento‖ (HEIDEGGER, 2007, p. 123), é pensar na finitude atribuída para o ―Para reunir, ao mesmo tempo, numa palavra, tanto a relação do ser com a essência do homem, como também a referencia fundamental do homem à abertura (―aí‖) do ser enquanto tal, foi escolhido para o âmbito essencial, em que se situa o homem enquanto homem, o nome ‗ser-ai‘.‖ (HEIDEGGER. O retorno ao fundamento da metafísica, 1979, p.58). 85 Cf. HEIDEGGER. Sobre a essência da verdade. In: Conferências e Escritos Filosóficos, 1979. 86 Id. Ibid. 87 ―toda relação de abertura, pela qual se instaura a abertura para algo, é um comportamento‖ (HEIDEGGER, 1979, p.136). 84 163 fundamento. O Dasein é marcado ontologicamente pelo seu caráter fáctico, ou seja, tem como certeza absoluta o seu fim (ser-para-morte). Se assim é, seu transcender livre ao mundo, portanto, também estará limitado a esta condição fáctica, i. é, sua liberdade é finita. Se o fundamento tem como originariedade a finitude da liberdade do Dasein, o seu dar-se às possibilidades finitas, conclui Heidegger que a liberdade do Dasein , enquanto fundamento, é um ―Abgrund‖, ou seja, um “afundamento”. O chão ontológico em que pisa o fundamento do Dasein não pode ser fundamentado, mas é um ―abismo‖ ou mesmo um ―afundamento‖ (Abgrund). Isto porque, o horizonte ontológico do qual está dado a reflexão do fundamento – o darse do ser como liberdade – não pode ser visto como um fundamento. Estabelecer um fundamento, em última instância, é prescindir da diferença ontológica, é tomar um ente pelo ser, é entificar o próprio ser. A pretensão de estabelecer um fundamento, a partir de Heidegger, é posta em questão em termos de sua possibilidade. Qualquer ―coisa‖ que se arrogar enquanto fundamento, incorre em equívocos, pois, não existe nada que possa se sustentar enquanto ente sem a determinação do ser e não existe um ser fora do ente. Há, portanto, um círculo hermenêutico. Por isto, o único fundamento possível é o ―afundamento‖ (Abgrund) encontrado na liberdade do Dasein, enquanto abertura transcendente ao mundo. O “Afundamento” e o Absoluto Mediante as considerações acima, o que dizer da possibilidade do Absoluto numa realidade global? A leitura hermenêutica de Heidegger tem um alvo certo: a pretensão absolutista dos racionalistas modernos, na figura de Leibniz. Para estes, o Absoluto era algo perfeitamente possível, pois, se assegurando da veracidade lógica, se assegurava a ontológica. O Absoluto existe, pois logicamente era possível. Esta pretensão, de algum modo, está presente tanto no fenômeno global quanto nas diversas manifestações religiosas, a partir da linguagem. Falam-se do Absoluto sem se questionar se, de fato, é possível dizê-lo. Enquanto o processo global fala da pretensão do Absoluto mediante a linguagem tecnológica (principalmente as telecomunicações como a internet); as religiões o fundamentam nas experiências subjetivas da fé das grandes massas. Neste sentido, a leitura que Heidegger faz sobre o fundamento aponta para duas questões importantes: a) a pergunta pelas condições de possibilidade do 164 acesso ao fundamento último; e b) o dado da liberdade como manifestação do Absoluto possível. No que tange ao primeiro ponto, tanto uma pretensão de uma religião universal como os embates causados pelo pluralismo religioso obrigam as diversas manifestações religiosas a se perguntarem pelas condições de possibilidade do acesso ao Absoluto. Ou seja, qual é a porta de entrada para acessá-lo. Este, que em tempos passados fora pressuposto, sendo inclusive, objeto de manipulação de interesses privados, deve agora ser objeto de análise rigorosa. Com Kant, as provas racionais da existência de Deus perderam sua validade, mas as prerrogativas do seu uso permaneceram. A contribuição heideggeriana para a questão do Absoluto é justamente na pergunta pela ordem de conhecimento capaz de se falar do Absoluto. Para as cosmovisões religiosas, em sua maioria, o Absoluto é garantindo pela linguagem subjetiva da fé. A questão é, se a linguagem da qual tem-se corriqueiramente acesso é capaz de validar objetivamente o Absoluto. Pode uma experiência subjetiva linguistificada ser tomada como fundamento para o Absoluto? Consoante Heidegger, a subjetividade não é capaz de validar um fundamento último, nem qualquer linguagem objetiva ou metafísica (mundo virtual da internet) o faz com propriedade. O único Absoluto possível é o não-Absoluto. Neste sentido, estaria posto em questão o sentido das religiões, considerando-as como algo desnecessário ou irracional? Para esta questão, um segundo ponto da contribuição heideggeriana é fundamental. Se nem a linguagem subjetiva nem a objetiva são capazes de dizer do Absoluto, por um lado, a primeira coisa a fazer é aceitar a finitude dos discursos religiosos. Nenhum discurso, religioso ou não, é capaz de acessar e falar com propriedade do Absoluto. Todas as religiões são finitas, não haveria aquela que deveria subsumir as outras. Por outro lado, há uma possibilidade de se pensar em um fundamento finito, que não é bem um fundamento, mas uma possibilidade originária do não-Absoluto: ―a liberdade‖. A coexistência religiosa no pluralismo deve levar à reflexão que a única possibilidade de um fundamento se manifestar é no nãofundamento, e isto significa dizer que é na liberdade como abertura do ser para o outro que há condições do Absoluto possível se dar. Não parece isto contraditório? Mas, se se olha mais atentamente, o que Heidegger propõe é que quanto mais se tenta enquadrar o Absoluto (entificação do ser) nas estruturas, seja pela lógica, seja pela fé, mais ele escapa. Quanto mais se linguistifica e normatiza o Absoluto mais ele é inatingível. Neste sentido, a questão é reconhecer que são nas 165 possibilidades de abertura livre ao outro e ao mundo é que é há possibilidade do não-Absoluto, do abismo, afundamento se dar. Este espaço ontológico incognoscível, infundado, abissal, tem uma consonância ao conceito de mistério das religiões. Ao invés das mesmas se embaterem dogmaticamente na luta pelo Absoluto, há de se encontrar o espaço, a clareira, o abismo da qual se dá na liberdade do homem frente o mundo. É no encontro com o mundo e nas finitas possibilidades que se tem com ele, é que o não-Absoluto, o mistério, o afundamento, é possível se manifestar. Isto, portanto, significa dizer que, a falência do conceito do Absoluto, não faz perder a validade das religiões, pelo contrário, faz repensar a linguagem da qual se acessa e se manipula o Absoluto. É justamente na ausência do fundamento, no não-Absoluto, no afundamento da realidade que se dão as maiores possibilidades se expressar daquilo que se arrogou por Absoluto. Referências HEIDEGGER, M. A essência do Fundamento. Edição bilíngüe. Lisboa: 70, 2007. _____. O retorno ao fundamento da metafísica. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1979. LEIBNIZ. Obras escolhidas. Trad. Antônio Borges Coelho. Lisboa: Livros Horizontes, s.d. PACE, Enzo. Religião e Globalização. In: Globalização e Religião. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1997. PERROT, Etienne. As ambigüidades da globalização. In: Concilium. Petrópolis, v.5. n.293, pp.14-23, 2001. MARQUES, Victor Hugo de Oliveira. Cristianismo e filosofia nos três primeiros séculos da era cristã: Análise dialético-histórica. Pará de Minas, Virtual Books, 2008. VIGIL, José Maria. Por los muchos caminos de Dios. Desafíos del pluralismo religioso a la teología de la liberación. Quito: Centro Bíblico Verbo Divino, 2003. WILFRED, Felix. As religiões em face da globalização. In: Concilium. Petrópolis, v.5. n.293, pp.35-43, 2001. 166 GT 8:. O SAGRADO FEMININO E A GLOBALIZAÇÃO Coordenação: Dr. José Carlos Avelino da Silva e Dranda. Maria Cristina Bonetti Resumo: O Sagrado Feminino será revisitado mediante um diálogo entre as várias concepções, trazendo para este Grupo de Trabalho conhecimentos e conceitos que revelam a riqueza das discussões contemporâneas sobre o tema. A Antigüidade e seus reflexos no mundo globalizado serão um dos focos de abordagem. Palavras-chave: Sagrado Feminino, Antigüidade, Mundo Globalizado. 167 ATENA, A DEUSA DA SABEDORIA José CarlosAvelino da Silva RESUMO Tendo saído do guerreiro mor, não podia deixar de ser guerreira. Tendo saído de sua cabeça, estava referenciada à sabedoria. O encontro dos princípios masculino e feminino é a base do vir-a-ser dos processos naturais. Quando Zeus reúne em si mesmo os dois princípios, ele transcende a natureza. É pela transcendência que ele põe Atena no mundo. Nascida guerreira, Atena fez opção pelo cosmo masculino. A deusa presidiu o julgamento de Orestes. Palavras-chaves: Atena, sabedoria, transcendência. A arqueologia mostra que Atena é deusa pré-olímpica, mas infelizmente há muito poucas referências e informações sobre ela para que se possa dizer alguma coisa de seu perfil original. Sua inserção no mundo clássico é mais conhecida. Depois de Métis estar grávida de Zeus, este ficou sabendo que o destino dela era ter uma filha e depois um filho que se tornaria maior que o pai. É inerente ao poder querer se manter no poder, e Zeus engoliu Métis para aniquilar qualquer possibilidade de que surgisse um ser maior que ele. Ao ser devorada, Métis tinha Atena em seu ventre. Métis, a Prudência, é uma divindade da primeira geração e foi a primeira mulher de Zeus. Torrano (Hesíodo, 2001, p. 155) chama Métis de Astúcia. Na relação entre Prudência e Astúcia pode estar a explicação de por que ela foi a primeira mulher de Zeus. Prudência é a atitude que busca evitar o que pode ser fonte de erro ou dano. Por outro lado, só pode agir com Prudência quem tem ajuda de Astúcia, caso contrário a prudência, impotente, torna-se medo. Zeus, ao engolir Prudência/Astúcia, absorveu essas qualidades e, assim, tornou-se a referência celeste desses valores, Doutor pela Universidade de Paris (1980). Professor no Departamento de Filosofia e Teologia e no Doutorado em Ciências da Religião da PUC Goiás. Membro da International Association for Greek Philosophy. E-mail: [email protected]. 168 que ele usava politicamente. Lembremo-nos de que Métis foi sua ‗primeira‘ mulher, fato que o coloca na situação de exercer pela primeira vez o princípio masculino. Apesar de iniciante, Zeus está disposto a tornar-se não somente prudente como também astucioso e assim identificar o bom e o ruim. Hesíodo, na tradução de Torrano, dá um sentido mais geral ao bom e ao ruim, denominando-os bem e mal. Mas Zeus engoliu-a antes ventre abaixo para que a Deusa lhe indicasse o bem e o mal (Hesíodo, 2001, p. 157). Essa primeira experiência lhe dará igualmente oportunidade de tornar-se a síntese dos princípios masculino e feminino. Vejamos como os acontecimentos se passaram. Tendo Métis engravidado, Géia profetizou a Zeus que ela teria uma filha e depois um filho, que suplantaria o pai. Temendo Zeus que pudesse ocorrer com ele o que tinha sucedido a Crono, que ele havia destronado, Zeus devorou Métis. Quando o tempo de gestação foi alcançado e com uma dor de cabeça insuportável (ahh, as dores do parto!), Zeus colocou a cabeça sobre uma bigorna e mandou Hefesto, o ferreiro do Olimpo, rebentá-la. Ouviu-se um estrondo e nasceu Atena: ela entoou seu grito de combate e iniciou um rito de guerra, mostrando estar pronta para enfrentar o inimigo. Tendo saído do guerreiro mor, não podia deixar de ser guerreira. Tendo saído de sua cabeça, estava referenciada à sabedoria 88. Tendo percorrido trajetória ascensional (da barriga de Zeus, órgão menos nobre e situado mais abaixo, deslocou-se para sua cabeça, este sim, órgão vital), estava destinada ao sucesso, à vitória, o que levou os gregos a escolherem-na madrinha de sua mais gloriosa cidade: Atenas. Tendo a deusa da sabedoria nascido sem a presença feminina, surge a questão: trata-se simplesmente de mais uma manifestação (exagerada) do patriarcalismo do mundo antigo? Normalmente se associa o fato de Atena ser a deusa da sabedoria ao fato de ela ter sido gerada na ‗cabeça‘ de Zeus. Mas esta é uma explicação insuficiente. A transcendência que envolve o nascimento da deusa completa a compreensão. Senão vejamos. O encontro dos princípios masculino e feminino é a base do vir-a-ser dos processos naturais. Quando Zeus reúne em si mesmo os dois princípios, ele não precisa ir ao encontro de Hera ou de alguma outra deusa ou princesa, sendo desde já completo, sendo desde já a base do vir-a-ser. Essa completude não é natural, vale dizer, não faz parte da natureza, mas transcende-a. 88 E “ateneu” tornou-se uma designação para escolas do ensino médio. 169 É pela transcendência que ele põe Atena no mundo. Zeus deu transcendência a Atena que, de outra forma, não seria a expressão da sabedoria. A sabedoria, Atena, já nasce transcendente e adulta. Pela sabedoria o ser humano transcende a natureza. O mito do nascimento de Atena dá margem a uma interpretação favorável ao patriarcalismo. Enfrentemos a questão, haja vista a exclusão, pelo menos aparente, do princípio feminino e a afirmação de Zeus, inquebrantável representante do princípio masculino. As concessões que o mito faz à maneira indo-européia de ver a vida e a sociedade não são questões centrais. Também não é importante, ao contrário do que alguns dizem, ela ser deusa da sabedoria por ter saído da ‗cabeça‘ do senhor do Olimpo. Sair da cabeça é uma simples indicação, não mais do que isso. Importante – e aqui está o ponto central da questão – é ela ser o resultado de um processo transcendente, de um processo que vai muito além da natureza. Atena soltou um grito de guerra e iniciou uma dança guerreira. Tinha acabado de nascer, pulando para fora da cabeça de Zeus. Ao conceber sozinho a deusa, Zeus não dispensou o princípio feminino, mas, em vez disso, reuniu em si os dois princípios, transcendendo a natureza, onde a união dos sexos é a regra. Atena, deusa da sabedoria, não poderia ser resultado de um processo natural já que, pela sabedoria, o ser humano transcende a natureza. A sabedoria é transcendente desde sempre, ou não seria sabedoria. Sabemos que o ser humano vai além da natureza ao substituir as determinações instintivas pela cultura. Sua liberdade é a superação das amarras de seus instintos. Isso equivale a dizer que o homem transcende a natureza pela liberdade: mas o que é a sabedoria senão uma forma superior de liberdade! Tendo Atena nascido de Zeus, Hera se revoltou com o fato de Zeus ter gestado e dado nascimento a um ser sem o princípio feminino. Ela sentiu-se despeitada por Zeus ser completo e ela não. Hera é uma divindade de que se tem notícia desde a civilização cretense (Brandão, 1993, p. 59), mas os valores de que Hera participa são anteriores: a humanidade sempre prestou culto à fertilidade, principal expressão do princípio feminino. A idéia de um princípio feminino responsável pela geração da vida atravessa os tempos e se perde nas origens da consciência humana, tendo encontrado uma formulação bastante sofisticada na mitologia grega clássica. Atena olímpica é, sem dúvida, aquela que mais se identifica com os valores masculinos. Seu nascimento diz muito. Sendo filha exclusivamente de Zeus, não 170 tem vínculo umbilical com o feminino. Nascida guerreira, Atena deixou clara sua opção pelo cosmo masculino. Não era ser guerreira a expectativa que a cultura grega admitia para uma mulher. A mulher, na Grécia Clássica, estava destinada a ser a guardiã da virtude do lar. Assim que nasceu, a deusa da sabedoria se colocou do lado do pai na luta contra os Gigantes. Esses ‗monstros‘ (assim chamados pelos vencedores, os olímpicos) eram manifestações de Géia, manifestações de um momento em que a deusa Mãe-Terra dispunha-se a criar seres masculinos para se defender. Em sua pureza feminina, Géia não se conformava em estar dominada pelo cosmo olímpico e patriarcal, em estar dominada pelo princípio masculino, situação que se perpetuava desde quando Urano deitou-se sobre ela e a envolveu. A mais nova filha de Zeus matou os gigantes Palas e Encélado. ―O primeiro foi por ela escorchado e da pele do mesmo foi feita uma couraça; quanto ao segundo, a deusa o esmagou, lançando-lhe em cima a Ilha de Sicília‖ (Brandão, 1987, p. 24-5). A opção de Atena pelo cosmo masculino apareceu com o próprio nascimento (o grito de combate e a dança de guerra) e se confirmou quando ela se colocou ao lado de Zeus para combater os Gigantes. Entretanto, o momento mais marcante de afirmação do patriarcalismo de Atena se deu no julgamento de Orestes, exposto por Ésquilo na peça Eumênides, terceira parte da trilogia chamada Oréstia (1991, p.141), quando, pelo chamado voto de Minerva (nome que a deusa assumiu entre os romanos), ela se posicionou pelo cosmo masculino. Orestes estava sendo julgado pelo assassinato de sua mãe, Clitemnestra, por sua vez assassina de Agamenon, seu marido e pai de Orestes. Na disputa, em que se enfrentaram as Erínias e Apolo, ambos os lados baseavamse no fato de que matar um parente era crime contra a divindade. O que estava em jogo era se havia parentesco entre os dois. Se Orestes fosse parente de sua mãe Clitemnestra, ele teria cometido um crime religioso e seria condenado. Se o jurado chegasse à conclusão que Clitemnestra e Orestes não tinham laços de sangue, Orestes não teria cometido nenhum crime. No confronto entre os dois mundos, reeditado por Ésquilo na Oréstia (1991), as Erínias, representando os valores femininos, afirmavam que Orestes era filho de sua mãe, tal como se pensou durante milênios, quando não era conhecido o papel do pai como genitor. Neste caso, Orestes teria cometido impiedade. No outro extremo, Apolo defendeu que Orestes era filho do pai e não da mãe, a mãe serviria apenas de recipiente para o desenvolvimento da semente que o homem planta. 171 Responderei também a isso e saberás que todos os meus argumentos são corretos. Aquele que se costuma chamar de filho não é gerado pela mãe - ela somente é a nutriz do germe nela semeado -; de fato, o criador é o homem que a fecunda; ela, como uma estranha, apenas salvaguarda o nascituro quando os deuses não o atingem. Oferecer-te-ei uma prova cabal de que alguém pode ser pai sem haver mãe. Eis uma testemunha aqui, perto de nós - Palas [Atena], filha do soberano Zeus olímpico -, que não cresceu nas trevas do ventre materno (Ésquilo, 1991, p. 172-3). Atena, que presidia a seção do julgamento do assassino de Clitemnestra, desempatou a favor de Orestes, inocentando-o de criminalidade e confirmando o direito de Dike reinar. Ésquilo colocou em confronto duas concepções de mundo, o feminino, herança das populações pré-históricas, pré-urbanas, em que o filho era um produto da mãe (quando o papel do homem na concepção era desconhecido ou desconsiderado) e o masculino e urbano de Zeus e Apolo, em que o homem planta uma semente e a mulher simplesmente dá as condições de a semente se desenvolver. Nesse caso, o filho seria filho do pai, e assim matar a mãe não seria um crime de sangue (de um parente). Esses dois mundos tinham duas referências simbólicas, Têmis e Dike. Têmis é a antiga deusa da justiça. Ela representa o direito divino, costumeiro, agrário e feminino. Quando não se conhece o autor de uma lei, mas ela é usada por força da tradição, essa lei é atribuída aos deuses, porque existe desde sempre (perde-se no tempo sua origem). A punição divina é coletiva, todo o grupo (o clã) sofre as consequências. O erro é ir contra a vontade dos deuses, causando um horror religioso. Dike substituiu-a, representando os valores masculinos e urbanos. Codificados, eles dão origem ao direito positivo. O direito positivo nasceu urbano e masculino. Ele retira dos deuses a prerrogativa da justiça, porque são os homens que se reúnem e decidem o que é certo e o que é errado. A punição torna-se humana e individualizada. A individualização do crime surge com a codificação do que é justo e 172 do que é injusto. O erro torna-se crime, porque vai contra a lei, contra a decisão que os homens tomaram em um determinado momento. Refletindo a tendência de os homens decidirem o que fazer, os deuses perdem prerrogativas. Édipo, na peça de mesmo nome, escrita por Sófocles ( 2001), comete duas impiedades, quando descobre que matou o pai e casou com a mãe. Primeiro, ele questiona os deuses por seu destino e pergunta: Oh, deuses, por que eu? Em seguida, ele se revolta contra os deuses, pois se julga, se condena e executa a pena (arranca os olhos para pagar o crime com o sofrimento, pois a morte seria uma punição branda). Édipo decide o seu destino (o sofrimento até a morte) e executa a sentença: os deuses são alijados do processo decisório. Antígona, na peça homônima de Sófocles (2002), segue a mesma tendência e decide o seu destino ao se enforcar, antecipando assim a sua morte. Ela fora condenada ao emparedamento vivo. Presa em uma gruta, ela deveria ficar ali até que os deuses ditassem o momento de sua morte. Mas Antígona se recusou a obedecer os deuses e se enforcou. Na mesma peça, Creonte, rei de Tebas, também retira dos deuses o privilégio do destino quando publica um édito proibindo as honras fúnebres a Polinices, porque o jovem pretendente ao trono havia marchado sobre Tebas com um exército estrangeiro. As honras fúnebres fazem parte do direito divino, que é negado pela decisão de Creonte. A família ampliada, o clã, era descendente de uma divindade e o assassinato de qualquer pessoa do clã era considerado um atentado à divindade originária do clã. Quando assassino e vítima pertenciam ao mesmo clã (sendo parentes e descendentes portanto do mesmo deus), havia um crime religioso e o culpado devia ser punido por impiedade. Quando quem matava era alguém de fora do clã, passava-se à vingança, que é um direito e mesmo obrigação do clã da vítima para limpar a desonra feita ao deus. A reforma constitucional de Sólon baniu a vingança e foi clara ao definir que era crime matar alguém, tanto do mesmo clã quanto de fora dele. E Dike se impõe como força inelutável. Quando Zeus sozinho deu à luz Atena, ele se dispôs a ser a totalidade, postura essa já anunciada anteriormente por ele representar o cosmo, a totalidade organizada e com significado. Ele transmitiu a Atena a totalidade centrada no masculino e a propensão à ordem patriarcal. Ela assumiu a completude – uma forma de totalidade – ao rejeitar qualquer relação matrimonial: ela já era completa, não carecia de um homem com quem viesse a formar uma unidade. Atena se manteve virgem o que 173 denota sua força: o matrimônio implicaria em subordinação e submissão, atitudes que Atena rejeitava. Em Atenas, a ateniense perdia sua virgindade depois de se tornar esposa. Se ela perdesse a virgindade fora do matrimônio, a tendência era ela tornar-se prostituta, apesar de em geral a prostituta ser estrangeira e escrava. Ambas, esposa e prostituta, estavam a serviço do cidadão ateniense: uma para ser a guardiã da virtude do lar e gerar heróis para ele; a outra para dar prazer a ele. Atena se dispôs a permanecer virgem por não aceitar se submeter à masculinidade de um eventual marido. Postura aparentemente feminista, por não aceitar a hegemonia masculina no interior de um relacionamento. Mas isso não é bem verdade. É com uma postura masculina que ela rejeita um homem como consorte. Era a sua independência masculina que ela se recusava a perder. Atena, por ter se identificado com o cosmo masculino, rejeitava a união com um homem. Sua propensão ao progresso foi expressa na disputa que ela manteve com Posídon pelo apadrinhamento da cidade de Atenas. Os gregos tinham resolvido escolher publicamente quem iria liderar a cidade e os dois deuses se apresentaram. Na disputa, Posídon ofereceu um cavalo selvagem (próprio para a guerra) e Atena domesticou-o, tornando-o apropriado para a agricultura. Além disso, fez nascer uma oliveira, símbolo de prosperidade. Atena, a sabedoria, é mulher que adotou o cosmo masculino. Essa é a perspectiva maior de afirmação da deusa, pois a própria natureza é feminina, por ser expressão da fertilidade. Lembremo-nos de que, antes da afirmação dos deuses celestes, era Geia, a deusa Mãe-Terra, a referência maior. No momento em que Geia reinava, o ser humano começava a perceber as leis do cosmo. Na insegurança diante da possibilidade de o cosmo reagir de forma diferente das leis que estavam pouco a pouco sendo percebidas, o gênio grego colocou Zeus como responsável por validar essas leis. Zeus, celeste, é o responsável pela ordem do cosmo porque ele é o próprio cosmo. E foi Zeus – e não outro ser – que gerou algo além dele. A sabedoria não é simplesmente o conhecimento puro e simples das leis naturais, muito menos o conhecimento de muitas leis da vida. Géia já tinha, em seu âmago, o conhecimento da natureza e, ainda assim, permaneceu imanente. É preciso mais: conhecendo as leis, saber como se relacionar com elas, saber como manter a liberdade no relacionamento com elas. Conhecer simplesmente a ordem do mundo pode levar-nos, ao contrário, a uma subordinação original a essa ordem e aí retorna- 174 se à condição de ser instintivo. É por isso que Atena é resultado da superação dos processos naturais. Esta sim é uma superação radical: ela foi além do que tinha em si, superou as amarras do princípio feminino, tornando-se sabedoria. E só o feminino tem esse potencial, pois o masculino é potência, é afirmação sobre o outro, é subordinar o conhecimento à dominação, é transformar o saber em um instrumento. O princípio feminino é intrinsecamente fértil e potencialmente livre, condições necessárias para a sabedoria. No casamento de Tétis e Peleu, em que estavam presentes todas as deusas do Olimpo, Éris, a Discórdia, lançou um pomo ―para a mais bela‖, o que despertou a concorrência entre as três deusas que poderiam usar esse título, Hera, Atena e Afrodite. Páris, o juiz da disputa, concedeu o pomo de ouro à deusa do amor, reconhecendo que o amor se associa ao belo e não à vitória ou ao poder, valores representados pelas deusas rivais. Na contramão da cultura dominante na época, quando Páris elegeu Afrodite a mais bela, ele sugeriu, para quem quiser aceitar a sugestão, que as pessoas devem procurar a beleza e o amor e não o poder ou a vitória. A sabedoria, tal como a beleza, se opõe ao caos. Beleza é ordem. Sabedoria é conhecimento ordenado, é o reconhecimento da ordem do cosmo. O saber pressupõe a ordem. Caos é liberdade infinita que tem potencial de desabrochar no belo e no saber. Quando Caos abre mão da infinitude, deixa progressivamente de ser caótico e cede espaço à ordem sob forma de beleza e/ou de sabedoria. O prestigiado vaso grego é o barro ordenado, o belo. Nesse caso, beleza e sabedoria não concorrem entre si, mas são aliadas na superação do Caos. Para Platão, na República (2002), o combate mais conseqüente ao caos é o da sabedoria, mas ele também afirma o belo como negação do caos. O que pode haver em comum entre Atena e Afrodite? Ambas são versáteis e se mostram sob diversas formas. Se há referência à Atena sobre sua beleza, não há referência a Afrodite sobre sua sabedoria. A mais bela (Afrodite) não se destaca pela sabedoria, mas por fazer amor. Sendo assim, são atributos que não estão necessariamente associados, apesar de o grego considerar que a ordem é bela e se mostra por meio do saber. A sabedoria (Atena) poderia ter sido escolhida como a mais bela, mas foi preterida. O poder (Hera) pode ser belo, é uma hipótese que muitos adotam quando se sentem atraídos por ele, e o mito não evitou colocar essa possibilidade para negá-la. 175 Os deuses nascem, atingem a idade ideal e aí alcançam a imortalidade. No que diz respeito ao crescimento e desenvolvimento, há exceção para Afrodite e Atena, que já nasceram adultas com a idade ideal, com pleno domínio da qualidade essencial de cada uma: o amor e a sabedoria. São duas deusas diferentes em quase tudo: uma, amante de muitos amores, a outra virgem; uma sedutora, a outra combativa; uma nos lembra que o amor é cego, a outra que a sabedoria é universal ou não é sabedoria. Por que duas deusas tão diferentes têm essa característica comum, que é somente delas, o fato de já terem nascido com a idade ideal? Talvez pela dificuldade de se conceberem meias medidas tanto para o amor quanto para o belo, bem como para a sabedoria. Na hipótese de nos defrontarmos com uma Afrodite criança ou adolescente, poderíamos pensar em um amor pequeno e imaturo, em um amor menor. Poderíamos pensar no belo não completo. O mesmo se passa com a sabedoria: ou é madura ou não é sabedoria. Se aceitarmos que existem duas Afrodite, a Pandêmica – o amor sexual – e a Urânia – o amor puro –, as idéias tornam-se mais claras: seria possível, para os gregos, haver um amor físico que se realizaria de forma incompleta? Haveria para os gregos um amor puro que ainda não estivesse puro? Raciocínio análogo podemos fazer para a sabedoria: haveria uma sabedoria que ainda não fosse sabedoria, que ainda estivesse em preparação ou sábio seria aquele que já teria alcançado esse estágio? Apesar de todas as diferenças, algo identifica Ártemis com Atena. Junto com Héstia, são três deusas virgens, invioladas. Pode-se mesmo dizer invioláveis, pela própria natureza de cada uma, que, se perderem a virgindade, perdem sua natureza identificadora. Se as três são virgens, cada uma o é por motivos diferentes. Héstia, deusa dos recintos fechados, não poderia se abrir sob pena de perder sua identidade que se efetiva no ambiente fechado. Era ela inclusive quem protegia o interior dos outros tempos e a virgindade. Atena e Ártemis rejeitaram o amor masculino. Afrodite, diferente de ambas, se aproximava do princípio masculino pelo amor. Ártemis nega o amor ao cosmo masculino. Atena rejeita o amor por se identificar com o cosmo masculino. Atena, Ártemis e Afrodite recusaram-se a casar, recusaram-se a se transformar em guardiãs da virtude do lar, recusaram-se a se submeter ao poder masculino, inevitável no casamento ateniense. Mas elas recusaram a união com um representante do princípio masculino por motivos diferentes. Ártemis porque radicalizou sua condição de ser mulher independente. Se, para negar o poder 176 patriarcal, para se manter independente, ela precisava se colocar contra a sociedade, contra o homem, que seja: ela se afastou da sociedade e se afastou do homem. Afrodite, afirmando a busca do prazer e se dedicando ao amor independentemente de qualquer formalidade, detonou o casamento, uma das mais importantes instituições gregas. Com a mesma disposição, ela negou a dominação masculina. Atena, por ser guerreira e rejeitar o comportamento que se esperava da mulher no casamento. REFERÊNCIAS BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. Vol. I. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 1993. BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 1987. BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. Vol. III. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992. BRANDÃO, J. de S. Teatro grego: tragédia e comédia. 8a ed. Petrópolis: Vozes, 2001. DA SILVA, J.C. Avelino. O princípio feminino em Zeus. In: Fragmentos de Cultura. Goiânia: IFITEG; UCG, v. 13, nº especial, março de 2003a. DA SILVA, J.C.Avelino. Viagem à Grécia Antiga. Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2009c. DA SILVA, J.C.Avelino (Coordenador). Realidade social e mito na Grécia Antiga. Goiânia: Ed. da UCG, 2008d. ÉSQUILO. Oréstia: Agamêmnon, Coéforas, Eumênides. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 4ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. 4ª ed. Estudo e tradução: Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2001. HOMERO. A Ilíada. Tradução de Haroldo de Campos. 2ª ed. São Paulo: Mandarim, 2002. PLATÃO. A República. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2002. SÓFOCLES. A Trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. 9ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Millôr Fernandes. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. 177 NARRATIVA E REPRESENTAÇÕES MITO-SIMBÓLICAS DA DEUSA ÍSIS: A REDENÇÃO PELO SAGRADO FEMININO. Heloisa Selma Fernandes Capel89 Daniela Cristina Pacheco90 Resumo Esta comunicação pretende, por meio da leitura de O Asno de Ouro, de Lúcio Apuleio (Séc II d.C.), identificar o papel pedagógico e formador da narrativa mítica. Nascido em Madaura, por volta de 114 e 125 e tendo vivido entre os governos de Adriano (117-138 d.C.) e Marco Aurélio (161-138 d.C), Apuleio foi um representante da filosofia médio-platônica do século II e sacerdote de Cartago. Sua narrativa contém o aspecto da redenção pelo sagrado feminino relacionada à romanização de cultos estrangeiros em função da crise e aos sincretismos mágico-religiosos. Nesta comunicação, objetiva-se analisar sua mitologia mágica e o papel das representações mito-simbólicas da deusa Ísis. Palavras-chave: narrativa, pedagogia, mito Sabe-se que a narrativa das Metamorfoses ou o Asno de Ouro 91 do autor romano Lúcio Apuleio (Século II d. C.) é um mosaico de histórias (historietas), aparentemente sem nexo entre si, de difícil caracterização em um único gênero literário92, mas que possuem, um tema recorrente: a prática da magia. Prática que explorada em seu conteúdo e forma profana e sagrada se constituem em meio pedagógico de aprendizado e redenção por meio do feminino. 89 Professora Adjunta da Universidade Federal de Goiás. 90 Graduanda em História da Universidade Federal de Goiás, bolsista de Iniciação Científica do Programa PROLICEN/UFG. 91 Apuleio intitulou a obra de Metamorfoses (Methamorphoseon Libri xi, também conhecida como Asinus Aureus), mas alguns tradutores a nomeiam como O Asno de Ouro. Segundo a tradutora do livro Ruth Guimarães (Apuleio. O Asno de Ouro. Trad. Ruth Guimarães. São Paulo, Ed. Cultrix, s/d), o termo “de ouro”refere-se a uma história extraordinária, fantástica. O Asno seria o símbolo do mais baixo corporal e material, segundo Bakhtin, M. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. Brasília: UNB, 1999, p.67. 92 Conforme Sérgio Motta, Metamorfoses se caracteriza como uma sátira latina “que possui um estilo confessional em moldes de uma narrativa de viagem”. Para o autor: a sátira latina utiliza o modelo idealizante construída pelos os gregos no qual são descritas a sabedoria e a coragem do herói, e os mitos sagrados para contrapor uma representação anti-heróica caricatural dos tipos sociais e morais próximos do mundo real. (Motta, 2006 p. 162). Entretanto, encontraremos autores que identificam conteúdos trágicos na obra. A esse respeito ver: TEIXEIRA, Cláudia. O Sentido do Trágico em Apuleio: tradição e/ou ruptura? Atas do IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Estudos Literários/ Estudos Culturais. Évora, 2001. Disponível em http://www.eventos.uevora.pt/comparada/indice_geral.htm 178 O conteúdo da obra é bastante conhecido. Em seu romance, Apuleio conta a história de um jovem culto, parente materno do filosofo Plutarco, que viaja a negócios para a cidade de Hípata, província de Tessália. Após ouvir histórias sobre feiticeiras e prática miraculosas de magia que correra em algumas cidades e províncias Gregas, enche-se de curiosidade e, pelo fato dessas cidades serem conhecidas pelas artes mágicas, o protagonista Lúcio vai ao encontro com o fantástico, envolvendo-se com a feitiçaria. Ao chegar a Hípata, hospeda-se na casa de Milão e Panfilia, uma mulher conhecedora das artes mágicas. Na casa de seus hospedeiros, Apuleio envolve-se com a escrava Fótis e por uma série de enganos, transformase em asno, e não em ave como era seu plano original. A curiosidade de Lúcio leva-o a praticar a magia de forma indevida, ou seja, de forma não ritualizada, e, como um castigo, é transformado em asno, sofrendo diversas penitências na sua jornada em busca de redenção. Depois de muito sofrimento, Lúcio recorre à deusa Ísis que se compadece dele e, em um de seus festejos, devolve-o à forma humana. Agradecido pelo ato bondoso da deusa, Lúcio torna-se seu sacerdote e, dessa forma, inicia-se na ritualidade dos mistérios de Ísis e Osíris. Para Nicole Fick (1985, p.133-134), a obra foi escrita antes de 197 d.C., bem depois do processo, por magia, a que sofreu o autor, por ter se casado com uma viúva rica. Ainda, segundo outros autores, (Hidalgo de La Vega, 1986, p.19; Phillipe Ward, 1969, p.4), se analisadas em conjunto, as obras de Apuleio possuem um sentido único e apontam para o ensinamento e uma distinção entre a boa e a má magia. Assim, o autor estaria se justificando como alguém que, adepto das religiões de mistérios, por seu interesse filosófico, envolveu-se em práticas mágicas. Quando pensamos em conteúdos com fins pedagógicos, isso nos remete, de imediato, ao tratamento do trágico na Antiguidade. Sentido, este, que, embora tratado com diferentes estéticas, foi definido normativamente por Aristóteles na poética93: na construção da trama das figuras trágicas ideais, ocorre a mudança da fortuna (metabasis) e a prática do erro, a ofensa à ordem estabelecida, a chamada hamartia. Assim, a figura trágica precisava ter grande reputação e fortuna e apresentar traços de similaridade com os homens comuns para que se permitisse a identificação do público com a personagem. Sua queda deveria ser na proporção exata e possuir uma conexão causal, para induzir no público o que ele chama de philantropon, o sentimento de justiça natural. Caso houvesse um exagero, o 93 Poética. Aristóteles. Imprensa Nacional/ Casa da Moeda. 179 conteúdo pedagógico se transformaria em ―repulsa moral‖, o que impediria que os objetivos educativos do gênero fossem amplamente alcançados. Na tragédia grega, a comunicabilidade entre deuses e homens, o desenvolvimento dos preceitos e tramas, restringia-se ao plano humano. A reposição da justiça só poderia ser realizada neste nível. Nas historietas satíricas de Apuleio há conteúdos trágicos, mas, ocorrem mudanças. Ocorre o erro, a identificação das personagens, mas a recompensa está no nível do divino, identificado com os cultos isíacos. As personagens nem sempre possuem nexos causais em relação à sua hamartia. São, por vezes, homens comuns a que a tragédia se abateu. Entretanto, sua recompensa está na vida após a morte, como nos cultos orientais e estará posteriormente nas religiões de salvação. Se as personagens das grandes tragédias gregas ensinavam por seus erros a evitar, em Apuleio, por sua perfeição, são modelos que podem favorecer o desejo de imitação. Por uma série de mudanças estruturais no Império, pela instabilidade política e pelo sincretismo, haverá, portanto, uma refiguração do sentido trágico em Apuleio. Vamos encontrar essa mudança em algumas histórias, como na narrativa de Cárite e Tlepólemo94. Todavia, esse não será o sentido evocado quanto à prática da magia. A magia feminina em Apuleio é uma magia profana e só pode ser redimida em suas conseqüências trágicas se encarada de forma ritualística e sagrada. Apuleio e seus contemporâneos acreditavam na magia, elemento que, por sua crença coletiva, segundo Marcel Mauss95, pode se colocado no patamar das forças coesivas de representação, como parte do imaginário social. A magia, entretanto, precisava adequar-se ao patamar da religião romana, pois a religião romana é uma religião mais de culto que de doutrina, em que o sacerdote é quase um técnico. Assim, como um personagem que usou da magia indevidamente, Lúcio tornou-se um asno. Lúcio é o anti-herói que em sua tragédia vai do mais baixo animal à redenção humana, mas isso não ocorre com as personagens femininas: elas são mulheres inconseqüentes, usam a magia sem a prática ritual necessária, visando interesses próprios. Elas não são punidas, pois a trama é realista, mas nosso personagem principal toma contato com suas ações para que as observe e 94 Adaptação do mito de Ísis e Osíris em Apuleio. 95 MAUSS, Marcel. Esboço de uma Teoria Geral da Magia. Lisboa: Edições 70, 2000. 180 aprenda pelo que deve ser evitado. Observemos o contato de Apuleio com a magia de Panfília. Como uma mulher casada, Panfília era rica e vivia no ócio. Era uma mulher adúltera que dava autonomia à escrava e que profanava os deveres do lar. Utilizava seu tempo praticando artes mágicas e isso afetava a cidade pelo medo, princípio sobre o qual se funda a magia malévola, diferente da magia religiosa inspirada pela piedade. A religião dos romanos foi politeísta e ritualista e não possuía dogma ou autoridade espiritual, era estritamente ligada às estruturas sociais, ao Estado e aos seus valores. Cícero96 vinculou os romanos aos deuses deixando claro que a religião tinha uma função cívica, sendo baseada na pietas e na religio97. Pietas era o cuprimento dos deveres religiosos, além de significar, ainda o deveres com a família, e à pátria. A religio era compreendida como a prática da religio, ou seja, o homem que realiza o culto pela atenção diligente e serena e não pela superstição, elemento impulsionado pelo medo, o temor aos deuses. O homem religioso não é o que teme, mas o que ―considera atentamente‖. Isso só se faz com o cumprimento de práticas rituais, diligentemente observadas, mas sem os excessos de escrúpulos temerosos próprios da superstição. Dessa forma, o culto não deveria ser uma expressão somente privada, mas uma obrigação da comunidade, dos magistrados que se tornaram membros das classes sacerdotais. A prática correta do culto garantiria a subsistência do Estado romano. O cidadão romano deveria participar dos ritos públicos como membro da Urbs. Panfília era uma mulher que manipulava as forças elementais e fazia temer a cidade. A personagem Birrena adverte Lúcio: ―guarda-te, guarda-te energicamente dos perigosos artifícios e da criminosa sedução dessa Panfília‖(Livro II, V). Suas práticas eram de natureza individual e sem a ética da religio da Urbs: Panfília utilizase de práticas mágicas para seduzir amantes e transforma opositores em pedras, carneiros e outros animais98. Conforme explicou Durkhein, o aspecto individual da magia leva à prática imoral, anti-social e desviante, rompendo assim com a função de coesão social e 96 Marcus Tullius Cicero (106 a.C./43 a.C.), foi um filósofo, orador, escritor, advogado e político romano. Escreveu De Natura Deorum, livro em que discute teologia. 97 Sanzi, Ennio. Cultos Orientais e Magia no Mundo Helenístico-Romano. Fortaleza: Ed. UECE, 2006. 98 Apuleio. Livro II, IV. 181 solidariedade das religiões cívicas99. Mesmo que ocorram práticas mágicas na religião, a magia laica tem recepção diferente nas sociedades em que é praticada. Diferente das práticas religiosas em que é preciso um tradutor, um intermediário entre o transcendente e o adepto, na magia laica, a manipulação das forças divinas é um aprendizado da natureza. Elemento que prescinde, portanto, da intermediação do Estado e das instituições a ele ligadas. Sabe-se, entretanto, que em Apuleio, a magia profana é o elemento que o faz bestializar-se, pois a magia profana não interessava à religião romana. Em Roma, Ísis não é mais a deusa egípcia da magia independente, mas a deusa da magia tutelada, ritualizada e orientada pelo Estado. Dessa forma, Apuleio ensina, pela sátira realista e pelos elementos trágicos nela contidos, que não se pode praticar magia de forma aleatória. Em sua pedagogia a deusa é essa força filosófica e transcendente que unifica na diversidade e que deve ser compreendida no bojo de normas ritualistas da religião romana. Portanto, aspectos bem diferentes da magia e mitologia egípcia serão trabalhados na obra, a partir do feminino sagrado de Ísis em Apuleio. Nele, a deusa se apresenta em todo seu esplendor e natureza unificadora: Venho a ti Lúcio, comovida por tuas preces, eu mãe da natureza o mundo inteiro me venera sob formas numerosas, com ritos diversos, sob múltiplos nomes. Os frígios, primogênitos dos homens, me chamam deusa-mater, e deusa do Pessinúncio; os atenienses autóctones, Minerva Cecropiana; os cipriotas banhados pelas ondas, Vênus Pafiana; os cretenses portadores de flechas, Diana Ditina; os siclianos trilingues, Prosérpina Estigia; os habitantes da antiga Elêusis, Ceres Acteana; uns Juno, outros Belona, estes Hecate, aqueles Ramnúsia. Mas os que o Sol ilumina com seus raios nascentes, quando se levanta e com seus últimos raios, quando se inclina para o horizonte, os povos das duas Etiópias e os egípcios poderosos por seu antigo saber honram-me com o culto que me é próprio chamando-me pelo meu verdadeiro nome: Rainha Ísis (Metamorfoses XI, 5). Segundo diversos autores, Isis conhece um sucesso excepcional no mundo romano da fase helenística. Conquistará terras da Ásia Menor, da Grécia, Sicília e, em Roma, será inserida nos calendários oficiais em 71 d.C. Comparece nas moedas de Vespasiano (69-79) e Caracalla (211-217) a promove como divindade oficial do Império. Sua personalidade e atributos serão ampliados. Plutarco100 que reconstrói a história mítica de Isis. 99 Durkheim, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1977. 100 46-126 d. C . De Iside et Osiride. 182 Portanto, em Apuleio, a magia está ligada à teurgia (obra divina) e ao seu caráter filosófico. Influenciado pelo sincretismo e pela necessidade de assimilação dos cultos estrangeiros, refigurados, o sagrado feminino e a magia vão encontrar-se em Ísis, personagem a partir da qual ocorre sua redenção. Nos cultos isíacos assimilados em Roma, o ritual é revalorizado e a ética mágica acompanha um novo relacionamento com os deuses, que se preparam para as religiões salvacionistas e das recompensas pos-mortem dos campos de Ialu Osiríacos. O sagrado feminino é evocado pela magia teúrgica, ritual, em seu aspecto regenerador, de reunião e totalidade simbólica. Uma volta às origens com novos contornos. REFERÊNCIAS APULEIO, L. O Asno de Ouro. Trad. Ruth Guimarães. São Paulo, Ed. Cultrix, s/d. ARISTÓTELES. Poética. Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1986. BAKHTIN, M. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. Brasília: UNB, 1999. DURKHEIM, Emile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1977. MAUSS, Marcel. Esboço de uma Teoria Geral da Magia. Lisboa: Edições 70, 2000. MOTTA, Sérgio Vicente. O Engenho da Narrativa e sua Árvore Genealógica: das origens a Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Editora UNES, 2006. SANZI, Ennio. Cultos Orientais e Magia no Mundo Helenístico-Romano. Fortaleza: Ed. UECE, 2006. SILVA, Semíramis Corsi. Aspectos da Religiosidade em Apuleio: entre magia e filosofia no II século D.C. Anais do II encontro Nacional do GT de História das religiões e Religiosidades. Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH – Maringá/PR, v.1, n.3, 2009. p. 11. TEIXEIRA, Cláudia. O Sentido do Trágico em Apuleio: tradição e/ou ruptura? Atas do IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Estudos Literários/ Estudos Culturais. Évora, http://www.eventos.uevora.pt/comparada/indice_geral.htm 2001. Disponível em 183 O PARTENON DE ATENAS, REFLEXO DO SAGRADO FEMININO DAS GRANDES MÃES Macsuelber de Cássio Barros da Cunha101 Resumo Nas sociedades antigas clássicas a mulher era relegada a 2º plano, mas o mesmo não acontecia no âmbito da religião, onde diversas deusas eram veneradas e cultuadas. Esta prática que revela o sagrado feminino nestas sociedades teve origem remota nas Grandes Mães, deusas da fecundidade-fertilidade. Na Grécia, Atena, que tem origem nestas Grandes mães, possuía em sua Acrópole um templo dedicado a seu culto, o Partenon, templo que mostrava toda a força e influência que a deusa possuía na vida da população. As regras e medidas desta arquitetura fantástica, com o poder de concretizar as relações religiosas entre deusa e homem foram posteriormente compiladas por Vitrúvius no ―Tratado de Arquitetura‖, servindo de modelo para toda construção religiosa romana. Palavras-chave: Atena, Partenon, Grandes Mães. Como se sabe a sociedade antiga era baseada na oralidade, de tal modo que muito de suas crenças eram passadas exclusivamente de forma oral, não nos permitindo ter aceso na totalidade a essas crenças. Porém, algo do que não podemos perceber através da documentação escrita, podemos perceber por meio da cultura material, pois essa expressa de modo concreto a mentalidade das pessoas da época, nos permitindo, portanto, analisar aspectos da sociedade por meio desta forma de expressão. Dentre os produtos da cultura material, o templo com todas suas regras arquitetônicas e estilo nos mostra algo das crenças religiosas da época. Neste trabalho temos por objetivo analisar o templo dedicado à deusa Atena, o Partenon, bem como perceber como o sagrado feminino desta sociedade se expressa na estrutura arquitetônica deste templo fazendo um paralelo com o culto as Grandes Mães que originam o culto à deusa Atena. Para análise do templo nos utilizaremos da obra ―Tratado de Arquitetura‖, de Vitruvius, autor romano que escreve no século I a.C.. Antes, porém de focarmos nossa atenção no templo, necessário se faz que compreendamos um pouco melhor sobre a figura das Grandes Mães que estão presentes no imaginário antigo e da qual Atena provém. 101 Estudante de História – UFG ([email protected]) 184 De acordo com Pierre Lévêque (1985), a deusa Atena possui sua origem nas Grandes Mães cretenses. Ele defende que na verdade a Grécia foi uma das últimas a ter acesso a uma cultura já altamente sofisticada e que a crença nestas Deusas Mães remonta ao período paleolítico, quando podemos encontrar inúmeras estatuetas representando figuras femininas com poderes supremos de vida que presidem à reprodução das espécies animais e humanas. Seriam, portanto ligadas à fecundidade e possuindo importância impar no imaginário dos primeiros caçadores. No período neolítico, com a maior sedentarização e com o desenvolvimento da agricultura, as deusas da fecundidade têm seus poderes ampliados, sendo associadas também à fertilidade, de tal modo que essa dupla característica não mais se destruirá, sendo a partir daí deusas de fecundidade-fertilidade. Em Creta vemos uma continuidade dos cultos às Grandes Mães, de modo que elas possuem presença marcante e que se sobrepõe à menor presença das divindades masculinas. Além disso, essas crenças religiosas influenciam no modo como a sociedade se organiza, pois: Religiosamente, a supremacia da mulher cretense é inegável e óbvia; ela é a sacerdotisa: os sacerdotes surgiram mais tarde e apenas como acólitos. Afinal, a augusta divindade de Creta é a Grande Mãe... Não foi por ironia que Plutarco afirmou que os cretenses chamavam a seu país não de pátria (de patér, pai), mas de mátria (de máter, mãe). Na ilha de Minos a mulher não governava, mas reinava (BRANDÃO, 1993, p. 60). Mesmo posteriormente, no período micênico, com a influência das crenças indo-européias e com o sincretismo das duas culturas, percebemos que este culto à Grande Mãe não perece, continuando forte e persistindo durante os períodos subseqüentes ao lado do culto aos deuses masculinos que a partir de agora passam a ser as figuras principais do panteão. Com o passar dos séculos e com as mudanças e influências que perpassam as crenças gregas ocorre uma mudança na figura de Atena, que como havíamos dito possui suas origens nas Grandes Mães cretenses. Atena no período clássico é vista como uma deusa guerreira, filha de Zeus, mas que ainda assim não perde suas características de provedora da fecundidade e fertilidade, de tal forma que mesmo sendo uma deusa virgem, possuía, segundo a lenda, um filho surgido de modo peculiar, além disso, é considerada uma curotrofa, ou seja, uma cuidadora de crianças. 185 O culto à Atena exerceu grande influência na sociedade, modelando, por exemplo, a forma como a mulher agia na pólis. Em Atenas Clássica a mulher era vista de modo ambíguo por parte dos homens. Segundo Christiane Sourvinou-Inwood (1995, p.111-121), na sociedade ateniense Clássica havia uma distinção entre duas instâncias, a vida pública e a vida privada e que o papel da mulher seria distinto nestes dois campos de atuação. Esta autora afirma que na vida particular, ou doméstica a mulher era desigual com relação ao homem e subordinada ao chefe de família, mesmo nos assuntos religiosos do âmbito doméstico; já em uma esfera particular da vida pública, na religião, a mulher era complementar e igual ao homem. Desta forma a autora defende que enquanto a posição da mulher na esfera privada era de obediência e subordinação aos homens, na esfera pública as mulheres representavam papeis iguais e complementares aos dos homens, o que corresponde ao fato de que na religião da pólis a unidade básica não é o oîkos, mas o indivíduo. Podemos analisar a partir daí como o sagrado feminino se manifesta na sociedade que ergueu o Partenon, pois as sacerdotisas de Atenas agiam como oficiantes e ao executarem seus papéis rituais estavam agindo em favor de toda pólis ou uma de suas subdivisões, pois a pólis dependia, para sua sobrevivência e prosperidade, das mulheres realizando seus trabalhos adequadamente, além disso, as mulheres não eram substituíveis em seu papel religioso pelos homens. ―Era uma mulher, a sacerdotisa de Atena, que oferecia preces pela pólis à mais importante divindade políade, no mais importante culto da pólis, e isto não poderia senão afetar a percepção da importância das mulheres no esquema das coisas‖.(1995, p.11-12) Diante disso podemos dizer que o papel da mulher no que tange o aspecto sagrado da sociedade ateniense Clássica era de singular importância, e se isso ocorria no mundo dos mortais, na esfera dos deuses imortais isso é ainda mais visível, pois a deusa Atena, patrona da cidade, era a deusa mais cultuada. Tendo estabelecido esta rápida visão sobre a mulher em Atenas, podemos então tratar com mais vagar sobre o Partenon e suas características, além de visualizar como estas características se liga ao sagrado feminino e à importância da grande deusa Atena. 186 Para estabelecer a compreensão do templo antigo, seu estatuto e suas especificidades, recorreremos ao ―Tratado de Arquitetura‖ de Vitruvius, único texto antigo a trabalhar o assunto. Muito pouco se sabe sobre o autor do Tratado de Arquitetura, a não ser o que ele mesmo deixou escrito sobre si no interior da obra. Vitruvius foi arquiteto, engenheiro, agrimensor e pesquisador romano que viveu no século I a.C. Ao que tudo indica Vitruvius foi um engenheiro no exército de Júlio Cesar e mecenado de Otávio Augusto, tendo escrito sua obra em 27 a.C. dedicando-a ao imperador. Sua obra é composta de dez livros onde versa sobre a arquitetura, planejamento urbano, técnicas e materiais de construção, ordens gregas, templos, edifícios públicos, dentre outros. Apesar de ser um romano do século I a.C. sua obra muito ajuda na compreensão da arquitetura grega e de suas características e funções, pois como se sabe a arquitetura religiosa romana teve grande influência da grega. Vitruvius dedica os livros 3 e 4 unicamente aos templos, suas medidas, comensurabilidades, proporções, partes e ordens a que pertencem, sendo estes livros o nosso ponto de partida sobre o qual se realizará nossa compreensão da relação entre o Partenon e o sagrado feminino. Antes de qualquer coisa, necessário se faz compreender qual a noção que se tem do templo na antiguidade, ou seja, qual o significado que o templo possuía para um homem antigo como Vitruvius. Para isso recorremos a um trecho de sua obra onde diz: ―Por conseguinte, se (os gregos) nos transmitiram regras para todas as construções, elas destinam-se sobretudo aos templos dos deuses, porque as qualidades e os defeitos dessas obras permanecem eternos‖(3,1,4). Podemos perceber claramente nesta passagem a crença que existia na eternidade do templo, reflexo da eternidade dos deuses que o habitam, é por causa desta crença, por exemplo, que os templos são construídos em pedra e são evitados materiais que deteriorem rapidamente. Vitruvius confere à arquitetura grega um caráter modular, ou seja, que serve de medida para a arquitetura romana, além disso, vê a arquitetura como imitação da natureza, pois segundo ele, este seria a única forma de se conseguir a perfeição dos traços arquitetônicos. Dentro desta busca de imitação da natureza outro ponto que traduz sua forma de pensar é a relação que ele estabelece entre as medidas do corpo humano e as medidas do templo, pois para ele o corpo humano era o grande 187 referencial para se pensar a relação modular de cada parte do templo com relação a sua totalidade. Percebemos também em sua obra um comprometimento com o belo, de forma que deixa claro que o arquiteto tem como objetivo produzir obras belas para o deleite de quem as vê. Nesta perspectiva do belo, o Partenon supera em grandiosidade e beleza todos os outros templos construídos até então e possuía em sua decoração esculturas belíssimas, além de uma grande preocupação com os detalhes. Mas por que o Partenon possui estas características? Para responder a isso é necessário que compreendamos um pouco do contexto de sua criação e quais os objetivos que estavam por trás deste projeto grandioso. O Partenon, templo dedicado à deusa Atena Partenopéia (virgem), está localizado na acrópole de Atenas. Segundo Lewis Mumford (1998), a Acrópole onde se localizava o templo, era o centro espiritual da pólis e o templo era sua estrutura dominante. Esta morada do Deus era composta de um grande salão com uma antessala e um pórtico frontal. Geralmente abrigava as imagens esculpidas do deus ou deusa cobertas de ouro e ―as esculturas exteriores e a decoração geométrica seriam pintadas em fortes tonalidades brilhantes, todas conduzindo uma pesada sobrecarga de significado simbólico.‖ (p. 162) O Partenon foi construído entre 448 e 438 a.C. sob as ordens de Péricles, estratego grego responsável pelo ―imperialismo ateniense‖ na Liga de Delos, Liga que tinha como objetivo se preparar para possíveis ataques persas. Além disso, o templo foi construído para substituir o antigo templo de Atena que havia sido destruído pelos Persas em 480 a.C.. Construído no estilo dórico e ricamente ornado de esculturas não só nos frontões e frisos como também nas métopas, tinha em seu interior a famosa estátua da deusa Atenas, esculpida por Fídias. Segundo Ana Beatriz Florezano: Os materiais empregados foram escolhidos para ultrapassar todos os outros templos: todas as suas partes, inclusive as telhas, foram feitas de mármore, pintado de muitas cores, com inúmeros detalhes acrescentados em metal. Por isso, a sensação de ser esta construção uma verdadeira caixa de jóias, um presente para Atena. Este é um edifício que inclui em seu projeto três espaços para receber esculturas arquitetônicas: as métopas, os frontões e os frisos. Além disso, a grande estátua [...] (de ouro e marfim) da deusa, colocada na cela do templo tinha toda a base esculpida, bem como as sandálias e o escudo. (2010, p.6) 188 O templo possuía sua entrada voltada para leste como a regra exigia. Neste sentido Vitruvius esclarece que o templo deve ter sua entrada voltada para ―a região vespertina do céu, de forma que os que se aproximam do (altar) para imolar ou fazer sacrifícios olhem para a parte do céu nascente e para a imagem que estiver no templo [...]‖ (VITRÚVIUS, 2007: 221). Porém no Partenon há uma especificidade, pois não possui um altar (ara) para imolação localizado em frente à entrada do templo, como deveria ocorrer a todos os templo destinados ao culto dos deuses, isso pode ser explicado pelo fato de ser este templo uma espécie de presente à deusa Atena e não precisamente um lugar destinado aos ritos sacrificiais. Além disso, Florezano diz que: [...] a antiga estátua de culto – de madeira de oliveira – de Atena Pólias nunca morou neste templo e nem os ritos dos quais a deusa era objeto (banho anual no mar e troca das vestes) nunca disseram respeito à estátua colossal de ouro e marfim que ficava dentro do Partenon. É por isso que alguns autores gostam de acreditar que o Partenon poderia ser visto pelos antigos gregos como uma oferenda à divindade patrona da cidade, como se fosse uma caixa de jóias a ela ofertada. Pode também ser considerado como uma caixa forte, onde os tesouros da cidade estivessem bem protegidos. (2010, p.2) As colunas que rodeiam todo o templo são ao estilo dórico, que segundo Vitruvius se relaciona à ―proporção, a solidez e a elegância de um corpo viril‖ (4,1,6), pode ser relacionado no caso do Partenon ao fato de Atena ser a deusa guerreira, portadora de um porte bastante masculinizado, como mostra por exemplo a panóplia que usa em algumas representações. Essa relação da deusa com aspectos masculinos trata-se de uma visível influência do trifuncionalismo indoeuropeu e do sincretismo entre esta influência e os cultos às Grandes Mães cretenses do qual já falamos anteriormente e de onde provém a figura singular da deusa Atena. Os frontões, os frisos e as métopas são as partes do templo que melhor expressam o requinte de detalhes do qual ele é portador, pois são neles que estão dispostas as principais esculturas do templo, que trazem as imagens do mito da deusa que ali reside. Apesar de se localizarem nas partes mais altas do templo, deixando claro mais uma vez a superioridade dos deuses e a pequenez dos mortais, eles são projetados de modo que possam ser vistos pelos que ali passarem e é visível a preocupação de Vitruvius quanto às proporções que devem possuir e a forma que devem dispor para que tenham visibilidade. Florezano esclarece que no frontão oeste podia-se ver a mítica disputa entre Atena e Posídon sobre a liderança da Ática, do qual Atena sai vitoriosa ao dar a 189 oliveira de presente aos habitantes. Este frontão possuía ao centro os dois deuses que recuam para os lados diante do prodígio do nascimento da oliveira centralmente posicionada. De ambos os lados no frontão, personagens em pé ou sentados parecem assistir a cena. Já no frontão leste ―via-se o nascimento da deusa diretamente da cabeça de seu pai, Zeus. Hefesto, o deus metalúrgico, aparece também como coadjuvante deste parto sui-generis”. De um lado e de outro desta imagem central, os deuses olímpicos são representados legitimando, por sua presença, o nascimento de Atena. As métopas, que circundam toda a parte superior do templo, são também ricamente ornadas de esculturas, fato incomum na antiguidade. Elas retratam quatro episódios lendários: a luta entre gregos e Amazonas; a derrota da cidade de Tróia diante dos gregos; as batalhas entre os deuses Olímpicos e os monstros; e a história do casamento do rei Lapita que, tendo convidado para a festa os Centauros, foi obrigado a combatê-los quando se tornaram inconvenientes devido à bebida. Os frisos em alto relevo se encontram ao redor das paredes de todo o recinto interno do Partenon. Trazem inúmeros personagens que estão envolvidos na grande procissão sacrificial em honra de Atena, provavelmente durante as festas Panatenaicas. A estátua de Atena localizada na cela possuía mais de 10 metros de altura e era feita em ouro e marfim e proporcionava a quem a via um profundo reconhecimento da grandiosidade da deusa, principalmente quando esta era banhada pelos raios do sol nascente e se tornava ainda mais brilhante e dourada. É preciso lembrar que para os antigos a estátua dos deuses eram os próprios deuses ali presentes. Percebemos por meio do que foi exposto que o Partenon, com toda sua grandiosidade e profusão de detalhes, tinha como função venerar e ser ao mesmo tempo como que um presente à deusa patrona da cidade, deusa esta que possuía características claramente sincréticas onde se misturam a crença nas Grandes Mães, deusas de fecundidade-fertilidade e aspectos do trifuncionalismo indoeuropeu com sua crença em uma sociedade divina patriarcal. Além disso, o Partenon expressa claramente, através de sua arquitetura o sagrado feminino da sociedade ateniense. REFERÊNCIAS: 190 VITRUVIUS, Pollio. Tratado de Arquitetura. Trad. M. Justino Maciel. São Paulo: Martins Fontes, 2007 BENEVOLO, Leonardo. A Cidade na História da Europa. Lisboa: Editorial Presença, 1995 CAMP, J. The Athenian Agora. Excavations in the heart of Classical Athens. Introduction. Londres, Thames & Hudson, 1986, p.14-19. SOURVINOU-INWOOD, Christiane. Male and female, public and private, ancient and modern. In: E. Reeder (ed.). Pandora. Princeton, Princeton University Press, 1995, p.111-121.(tradução: Heloísa C. de S. Carvalho; revisão Marta M. de Andrade; Labeca) Disponível em: <www.mae.usp.br/labeca> FLORENZANO, Maria Beatriz. Péricles, o Partenon e a construção da cidadania na Atenas Clássica. São Paulo: Labeca – MAE/USP, 2001 GRIMAL, Pierre. Mitologia Clássica: mitos, deuses e heróis. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009 KURY, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003 LAWRENCE, A. W. Arquitetura Grega. São Paulo: Cosac & Naif Edições, 1998 LÉVÊQUE, Pierre. Animais, Deuses e Homens: O imaginário das primeiras religiões. Lisboa: Edições 70, 1985. MARINATOS, N. What were Greek Sanctuaires? A synthesis. In: Marinatos, N. and Hägg, R. Greek Sanctuaires. New approaches. Londres, Routledge: 228- 233. MUMFORD, Lewis. A Cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo: Martins Fontes, 1998 ROBERT, Fernand. A Religião Grega. São Paulo: Martins Fontes, 1988 ROBERTSON, D. S. Arquitetura Grega e romana. São Paulo: Martins Fontes., 1997 191 A RELEITURA DO MAGNIFICAT Eleno Marques de Araújo102. RESUMO A abordagem dessa comunicação pretende apresentar uma releitura de um canto judaico interpretado por duas mulheres. O canto, figura tanto no Velho quanto no Novo Testamento. Primeiramente foi cantado por Ana, no Livro de 1Sm 2,1-10 como gesto de gratidão a Deus por ter conseguido engravidar, gerar e dar a luz a Samuel, quando ela foi entregá-lo no Santuário por ser o primogênito e por ser o filho da promessa. Mais tarde, e com pouca variação da escrita, é cantado por Maria, na visita que ela faz a sua prima Isabel. A questão da unidade textual desse canto judaico é que em ambos os Testamentos são apresentados na voz de mulheres e no mesmo contexto: o de gravidez, tanto Ana como Isabel eram idosas e estéreis. A novidade é que no contexto do NT são duas grávidas: Maria e Isabel. Uma terceria vertente do mesmo texto é o Hino a Mariama de Dom Hélder Pessoa Câmara. Aqui ele apresenta uma nova releitura pedindo a igualdade e a paz para toda a humanidade. Palavras-chave: Iahweh, misericórdia, humildade. INTRODUÇÃO Observando rapidamente a Sagrada Escritura percebemos a presença de alguns cantos em diferentes livros. Citamos os que mais chamam a nossa atenção: canto de ‗Miriam‘ ou da libertação em Ex 15,1-18; o canto de Ana 1Sm 2,1-11; os quatro cantos do Servo Sofredor da profecia de Isaias 52,13ss; o famoso canto das criaturas da profecia de Daniel no AT; sem falar dos salmos que praticamente todos eles enquadram no gênero dos cantos; o canto de Zacarias (Benedictus) em Lc 1,68-79; o canto de Maria (Magnificat) em Lc 1,46-55; o Hino ao Amor em 1Cor 13; o Hino Cristológico em Cl 1,15-20, e também vários ‗pequenos‘ cantos no livro do Apocalipse. Como o objeto de nossa pesquisa constitui-se dos Cantos de Ana e do Magnificat, passemos a análise dos mesmos. 1 O CANTO DE ANA 2Sm 2,1-10 102 Graduado em filosofia pela UFG, em teologia pela PUC-GO, mestre e doutorando em ciências da religião pela PUC-GO. Coordena o curso de filosofia do IFITEG, onde leciona disciplinas de filosofia e teologia. [email protected] 192 O primeiro livro de Samuel inicia contando a história de uma família efraimita. Elcana, pai de Samuel, era um sufita e vivia na cidade de Ramá, na região montanhosa de Efrain. Elcana é filho de Jeroam, neto de Eliú, bisneto de Tou e tataraneto de Suf, um efraimita. Dessa forma temos a descendência paterna de Samuel. Fenena, a segunda mulher de Elcana, tinha gerado filhos e filhas para ele. Ana, porém, era estéril. Quando subiam anualmente a Silo para a festa das Tendas, no dia do sacrifício, Elcana tinha o costume de dar porções a Fenena e seus filhos, mas a Ana ele só dava uma porção (cf. vv 4-5). Esse fato já era motivo de humilhação para Ana, além disso, sua rival ainda a recordava que Iahweh a havia deixado estéril. A esterilidade de um ventre era considerada sempre como um castigo de Iahweh. Um ventre fértil era considerado como benção, pois podia gerar a descendência, e, sobretudo, um filho, pois a sociedade era patriarcal. Dessa forma, Ana era duplamente humilhada: por um lado Iahweh que não lhe concedeu sua benção, pois era estéril; e de outro, Fenena sua concorrente, sempre a humilhava com os presentes dados por Elcana, em função dos filhos que gerara. A reação de Ana era chorar e não se alimentava. O esposo tentava consolála, dizendo que ela devia tê-lo por mais valioso que dez filhos, mas isso não era suficiente para ela. Com profunda amargura ela vai diante do altar, no santuário apresentar a Iahweh sua dor, seu sofrimento, sua humilhação, suas lagrimas (vv 9-10). Do fundo de seu coração e com muita esperança, faz uma promessa ao Senhor: ―Iahweh dos Exércitos, se quiseres atentar para a humilhação da tua serva e te lembrares de mim, e não te esqueceres da tua serva e lhe deres um filho homem, então eu o consagrarei a Iahweh por todos os dias de sua vida, e a navalha não passará sobre a sua cabeça‖ (v. 11). Eli interpretou que Ana estivesse embriagada com vinho e a repreendeu. Ela, porém, disse a ele: ―Não, meu senhor, eu sou uma mulher atribulada; não bebi vinho nem bebida forte: derramo a minha alma perante Iahweh. Não julgues a tua serva como uma vadia. É porque estou muito triste e aflita que tenho falado até agora‖ (vv. 15-16). Como que em um gesto de desculpa ele lhe diz: ―Vai em paz, e que o Deus de Israel te conceda o que lhe pediste.‖ (v. 17). Depois de responder ―Ache a tua serva graça aos teus olhos‖ (v. 18a). 193 Depois de receber a benção de Eli, Ana voltou para casa, comeu e já não era mais a mesma. O que tinha passado com ela? A benção dada por Eli só veio no final, simbolizando o fechamento do encontro de Ana com Deus, no santuário. O infeliz pré-julgamento dele sobre o estado em que ela se encontrava, teria o levado a compadecer-se dela e lhe dar a benção como que um pedido de desculpas? Mesmo que tenha sido, para ela era motivo de esperança, a certeza de que Iahweh se lembraria dela. Na manhã do dia seguinte voltaram ao santuário para mais um momento de oração e depois retornaram para Ramá. Já em casa, Elcana uniu-se a Ana e no momento em que a possuía, Iahweh se lembrou de Ana e ela concebeu. No tempo oportuno ela deu à luz a um filho e pôs o nome de Samuel. Ana não voltou mais ao Santuário até que chegasse o tempo de entregar o filho da promessa ao Senhor. Quando Samuel já tinha 7 anos, Ana subiu com Elcana para Silo e junto a Eli ―Ela disse: ‗Perdão meu, senhor! Tão certo como tu vives, eu sou aquela mulher que aqui estive contigo, orando a Iahweh. Eu orava por este menino, e Iahweh atendeu à minha súplica.‘‖ (1Sm 1, 26-27). Então Ana cantou este Canto: 1Sm 2,1-10 O meu coração se regozija em Iahweh, a minha força se exalta em meu Deus, a minha boca se escancara contra os meus inimigos, porque me alegro em tua salvação. Não há Santo como Iahweh (porque outro não há além de ti), e Rocha alguma existe como o nosso Deus. Não multipliqueis palavras carregadas de soberba, nem brote dos vossos lábios a arrogância, pois Iahweh é Deus sapientíssimo: por ele são as obras sopesadas. O arco dos poderosos é quebrado, os debilitados são cingidos de força. Os que viviam na fartura se empregam por comida, e os que tinham fome não precisam trabalhar. A mulher estéril dá a luz sete vezes, e a mãe de muitos filhos se exaure. É Iahweh quem faz morrer e viver, faz descer ao Xeol e dele retornar. É Iahweh quem empobrece e enriquece, quem humilha e quem exalta. Levanta do pó o fraco e do monturo o indigente, para os fazer assentarem-se com os nobres 194 e colocá-los num lugar de honra, porque a Iahweh pertencem os fundamentos da terra, e sobre eles colocou o mundo. Ele guarda o passo dos que lhe são fiéis, mas os ímpios desaparecem nas trevas (porque não é pela força que o homem triunfa). Iahweh, os seus inimigos são destruídos, o Altíssimo troveja contra eles. Iahweh julga os confins da terra, dá a força ao seu Rei e exalta o poder do seu Ungido. O Canto de Ana insere-se no conjunto dos cantos judaicos que certamente faziam parte das celebrações litúrgicas. Seu estilo é de louvor e gratidão, um reconhecimento por tudo que o Iahweh fez por seu povo. No entanto, chama a atenção o fator de só aparecer no versículo cinco uma breve menção ao fator da esterilidade e da gravidez: ―a que era estéril deu a luz sete vezes e a mãe de muitos filhos definhou‖. Sete é o número da perfeição, da totalidade, portanto, Ana passa de imperfeita (= amaldiçoada) para a condição de perfeita, de abençoada. Sua rival, ao contrário, não deu mais à luz, seu ventre foi definhado, secado. Há aqui uma inversão no processo de geração da vida. 2 O MAGNIFICAT Lc 1, 46- 55 O contexto do Magnificat é diferente do canto de Ana. Quem canta o canto é uma jovem já grávida. Ela ainda nem tinha se casado e já havia concebido. A estéril aqui não é a cantora, mas Isabel. No ambiente em que surge o canto, não existe ninguém humilhando ninguém. A estéril não tem uma concorrente parideira que a humilhasse. O canto surge no momento em que Maria vai visitar sua prima Isabel, portanto, um gesto de fraternidade, de serviço prestado. Podemos perguntar: por que o canto não foi cantado por Isabel? Ela era a estéril fecundada/concebida já na velhice: ―aquela que era estéril já está no sexto mês‖ (Lc 1,36). Certamente há um interesse do autor em por o canto na boca de Maria e não de Isabel. Dois ventres estão fecundados, duas crianças sendo geradas: João, o precursor, o último dos profetas, pela tradição cristã; e Jesus, o Messias esperado. Neste encontro dos dois, ainda nos ventres de suas mães, parece estar à principal razão do canto sair da boca de Maria: ela não fala de 195 esterilidade ou gravidez, simplesmente louva e exulta em espírito, porque ―Deus olhou para a humildade de sua serva‖ e acrescentou uma espécie de profecia: ―doravante todas as gerações me chamarão bem aventurada‖ (Lc 1,48). Embora Samuel tenha desempenhado um importante papel no judaísmo, sobretudo recuperando a dignidade e a honestidade sacerdotal, pois os filhos de Eli haviam se corrompido e desviavam as funções (atribuições) por meio da iniquidade; também advertindo o povo em relação à instituição da monarquia judaica, para não ter outro rei senão Deus, ele não era o Messias, por mais que tenha exercido o sacerdócio no santuário de Silo, segundo as compreensões da época. Jesus, foi apresentado no Templo de Jerusalém, foi resgatado e seu ministério não se deu no Templo, mas foi em meio ao povo, nas sinagogas, etc. Minha alma engrandece o Senhor, E Meu espírito exulta em Deus, meu Salvador, Porque olhou para a humilhação de sua serva. Sim! Doravante as gerações todas me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor. Seu nome é santo e sua misericórdia perdura de geração em geração, para aqueles que o temem. Agiu com a força de seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou. Cumulou de bens a famintos, e despediu ricos de mãos vazias. Socorreu Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia - conforme prometera a nossos pais - em favor de Abraão e de sua descendência para sempre! 3 MARIAMA A terceira versão do Canto é interpretada por Dom Hélder Câmara. O contexto já é bem distinto dos dois anteriores. Neste momento já não se tem mais mulheres no sentido físico e no âmbito da esterilidade ou da gravidez, como nos casos de Ana, Isabel e Maria. Aqui o cantor/narrador faz uma invocação a Maria (Mariama). Sem forçar o texto, o sentido da invocação pode levar a uma compreensão de que a Igreja ou mesmo a sociedade deve ser metaforicamente engravidada para gerar uma nova comunidade de paz, de fraternidade e de esperança. Aqui o ‗mediador‘ já não é o sacerdote Eli, como no caso de Ana. Não é um anjo, como no caso de Maria. Mas é Maria em si mesma. Dom Hélder se coloca na função de intercessor: ―Mariama, pede a teu Filho... Não precisamos de uma sociedade escravista, nem hoje nem amanhã. Nada de escravo de hoje, ser senhor de escravo amanhã‖. 196 Decompondo a palavra Mariama teremos Maria + ama, parece ser este o olhar de Dom Hélder. Pois, Maria foi agraciada por Deus, por ter acolhido Seu projeto de gerar o Salvador. Ela escolheu a melhor parte, a de ser cooperadora com Deus na salvação da humanidade. Maria amou Jesus como filho e como Salvador, se fez discípula Dele, o acompanhou em sua missão, foi com Ele até aos pés da cruz, e o recebeu desfalecido em seus braços maternais. Ela foi capaz de amar incondicionalmente. Pela fé e afirmação da Igreja, continua intercessora de cada um de nós em nossas aflições. Dessa forma, D. Hélder fez a invocação a Mariama com o seguinte texto: Mariama, Nossa Senhora, mãe de Cristo e Mãe dos homens! Mariama, Mãe dos homens de todas as raças, de todas as cores, de todos os cantos da Terra. Pede ao teu Filho que esta festa não termine aqui, a marcha final vai ser linda de viver. Mas é importante, Mariama, que a Igreja de teu Filho não fique em palavra, não fique em aplauso. Não basta pedir perdão pelos erros de ontem. É preciso acertar o passo de hoje sem ligar ao que disserem. Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão. É Evangelho de Cristo, Mariama. Claro que seremos intolerados. Mariama, Mãe querida, problema de negro acaba se ligando com todos os grandes problemas humanos. Com todos os absurdos contra a humanidade, com todas as injustiças e opressões. Mariama, que se acabe, mas se acabe mesmo a maldita fabricação de armas. O mundo precisa fabricar é Paz. Basta de injustiça! Basta de uns sem saber o que fazer com tanta terra e milhões sem um palmo de terra onde morar. Basta de alguns tendo que vomitar para comer mais e 50 milhões morrendo de fome num só ano. Basta de uns com empresas se derramando pelo mundo todo e milhões sem um canto onde ganhar o pão de cada dia. Mariama, Senhora Nossa, Mãe querida, nem precisa ir tão longe, como no teu hino. Nem precisa que os ricos saiam de mãos vazias e os pobres de mãos cheias. Nem pobre nem rico. Nada de escravo de hoje ser senhor de escravo de amanhã. Basta de escravos. Um mundo sem senhor e sem escravos. Um mundo de irmãos. De irmãos não só de nome e de mentira. De irmãos de verdade, Mariama. 4 ANÁLISE DOS CANTOS 197 O Sagrado e o feminino aparecem relacionados na coragem feminina de Maria, que aceita gerar um menino-Deus que, de tanta graça recebida, é causa e consequência de Fé, Entrega, Amor e Confiança. Dom Hélder, diante de uma sociedade opressora, injusta, pré-conceituosa e ideológica, apresenta-se como esse que reza e roga pelos sofredores, humilhados e discriminados. Faz uma prece a Mariama para que interceda ao Filho e atenda as preces e necessidades dos filhos (as) de Deus misericordioso. Defendemos que Maria cantou o Magnificat e não Isabel, porque ela é a mãe do Salvador. Vejamos: Sara, a primeira estéril que apareceu no processo salvífico, concebeu e deu à luz Isaac, o filho da promessa. A fé de Abraão em Iahweh, fez com que ele quase oferecesse o filho em sacrifício ao Senhor, porém aparece um anjo que impede o ato em si, no lugar de Issac, Abraão oferece um cordeiro. O cordeiro que Abraão oferece prefigura o Cristo/Cordeiro, oferecido mais tarde. Mais tarde Ana é a segunda mulher estéril que aparece. Com sua gravidez ela tem a função de reafirmar a aliança de Iahweh com Abraão, por meio do filho de Sara, e não com o filho da escrava. O sacerdócio havia corrompido e o povo já não era mais fiel a Deus. Elcana tinha outros filhos, mas não ficaram no Santuário, não diz que ficaram sacerdotes. Samuel tem a função de religar o que estava perdido ao longo da história. No canto Ana reafirma que Deus não abandona os justos. Ela não era uma vadia, como foi acusada. Como acreditava em Deus, o Senhor não a abandonou. Em nosso estudo a terceira estéril é Isabel, ela reconhece que sua gravidez não trará o Messias, por isso diz: ―quem me dera que a mãe do Salvador me venha visitar?‖. Maria canta o canto do Magnificat reconhecendo que em seu ventre virginal Deus pôde agir em favor da humanidade. Como Maria, também percebeu Sara com o nascimento de Isaac, embora não tenha cantado de alegria exaltando a Deus, como percebera Mirian na libertação do Egito e cantou agradecendo e exaltando a Iahweh, pois o Êxodo representava um novo nascimento do povo da Aliança. Com o nascimento de Samuel Ana percebe que Deus agiria em seu filho, pois era também como Isaac, filho da promessa. Ele corrigiu os desvios do culto ao Senhor. Assim, Maria fecha o tempo das promessas e vê a realização de tudo o que o Senhor lhes prometera. Assim, o velho Simeão, cantou agradecendo a Deus por ter visto a Salvação Dele na pessoa do menino Jesus, no Templo de Jerusalém. 198 REFERÊNCIAS A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1980. GALVÃO, Antônio Mesquita. Magnificat: o evangelho segundo Maria. Petrópolis: Vozes, 1987. MARIAMA: Disponível em: http://www.pensador.info/autor/Dom_Helder_Pessoa _Camara/ <acesso em: 18/08/2010 as 10:10> MESTERS, Carlos. Maria a mãe de Jesus. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1985. SCHNEIDER, Roque. Maria de Deus – Maria do povo. Aparecida: Santuário, 1996. 199 O FEMININO GREGO E O CICLO DA VIDA E DA MORTE Ivan Vieira Neto* Resumo: A mitologia grega nos atesta a sua dupla origem: de um lado percebemos a influência da religião indo-européia e sua estrutura patriarcal, do outro o legado do culto às deusas-mães pré-helênicas. Pretendemos analisar o Hino Homérico a Deméter sob estes dois prismas, a fim de apresentar a identificação da mulher com a Natureza e estabelecer o feminino como princípio oposto e complementar ao masculino no ciclo da vida e da morte. Palavras-chave: Mitologia grega, helenismo, sagrado feminino. *** Quando pretendemos discorrer sobre a humana experiência do sagrado, as suas manifestações religiosas, seus ritos, cultos e narrativas míticas, precisamos tomar cuidado para não incorrer em equívocos e incoerências. Quanto mais quando os seus mitos oscilam entre a História e a Literatura, como acontece com a mitologia greco-romana. O pesquisador que quiser se aventurar nessas águas precisará manter-se firme em seus objetivos, a fim de evitar o naufrágio iminente. Devemos, portanto, esclarecer o que é a mitologia greco-romana, para estabelecer por quais meios nortearemos as nossas análises. A acepção geral de mito, como definido por Mircea Eliade e Joseph Campbell (para citar dois eminentes pesquisadores dedicados à história das religiões e à mitologia), é que o mito é uma narrativa de eventos que aconteceram no ―tempo antes do tempo‖, durante a origem do cosmos, quando ―o que não era passou a ser‖, graças à intervenção de entidades sobre-humanas, que criaram o mundo, os homens, os animais, alguns instrumentos de trabalho, certas práticas e instituições sociais. Esta é a concepção mais comum sobre o mito. Devemos nos lembrar, entretanto, que os autores supracitados definem assim o mito como ―mito‖, como relato integrado a determinada mitologia. O mito como objeto de pesquisa, estudo e análise, da maneira como interessa ao * Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, bolsista CAPES. Contato: [email protected] 200 historiador, portanto, precisamos definir aqui, uma vez que é por esta via que construiremos os argumentos desta comunicação. O mito é um objeto de pesquisa histórica como qualquer outro. Invariavelmente, apresenta-nos um contexto no qual foi produzido ou difundido. A mitologia de determinada sociedade esclarece como aquela cultura entendia o universo que a circundava, como pensava em termos simbólicos e quais eram as suas expectativas e os seus receios tanto para a vida quanto para o futuro postmortem. O mito representa o imaginário desta sociedade, define para os historiadores como se relacionavam com este ou aquele símbolo. Portanto, pensaremos a mitologia exclusivamente sob este aspecto, como objeto da pesquisa acadêmica, como fonte de um dado contexto histórico que nos apresenta uma realidade concreta de um imaginário ali representado. Consideramos que quaisquer outras perspectivas de análise da mitologia, se não visam subtrair dos documentos a sua historicidade e as suas representações culturais no contexto no qual o mito foi produzido, pertencerão ao campo dos estudos literários e da especulação jornalística. Se a perspectiva ressignificar a mitologia, então a sua abordagem pertencerá à arte dramática ou literária - sem participar dos interesses científicos do historiador. Estabelecida a nossa definição do que é o mito para o historiador, podemos prosseguir com a nossa explicação e apresentar os principais aspectos do sagrado feminino como representante da vida e da morte na Grécia antiga. Porém, será necessária uma breve explicação a respeito do processo histórico que cunhou aquilo que chamamos de ―sagrado feminino‖ na Hélade e nas ilhas do Mar Egeu dos períodos arcaico e clássico. Antes da Grécia histórica, existiram nas ilhas do Mar Egeu, especialmente em Creta, populações sedentárias que chamamos ―egenas‖. Segundo Félix Guirand, no livro intitulado Mythologie Générale, ―a principal divindade da Égida tinha caráter feminino‖ (GUIRAND, 1935: 75). Isto porque as populações egenas eram principalmente agricultoras e tinham a sua religião centrada no culto da Terra, que era representado pelas deusas ctônicas, divindades ligadas à agricultura e à fertilidade vegetal, animal e humana. Tais divindades eram adoradas em santuários naturais, geralmente em nascentes ou grutas, consideradas como meios de acesso ao ―mundo inferior‖ ou centro da Terra, que era por excelência o habitat dessas deusas telúricas. Essas 201 divindades podiam ser adoradas sozinhas ou em companhia de um deus-touro, representante do arado que sulca a terra durante o plantio, que também estava associado às estações da lua e ao calendário agrícola. Quando os conquistadores indo-europeus (em sucessivas levas de invasão nos Bálcãs) chegaram à Hélade e às ilhas do Egeu, a sua religião de deuses celestes e patriarcais conflitou com o culto às deusas ctônicas locais. Podemos afirmar que a religião grega nasceu, fundamentalmente, do conflito entre os deuses dos invasores indo-europeus e as deusas das populações egenas conquistadas. O que aconteceu a seguir foi um grande sincretismo, que associou as deusas préhelênicas aos deuses indo-europeus e instituiu as suas genealogias e domínios. Entretanto o conflito histórico ecoou em muitos episódios da mitologia. Adiante nos debruçaremos especificamente sobre um desses episódios de querelas e disputas: o rapto de Perséphone. Antes, entretanto, precisamos fazer uma rápida análise a respeito daquilo que podemos chamar de ―o feminino olímpico coletivo‖, que representa, fundamentalmente, o sagrado feminino na Grécia antiga. Dentre as deusas olímpicas, havia três deusas virginais (Héstia, Athena e Ártemis), outras três deusas ―casadas‖ (Hera, Aphrodite e Perséphone) e uma deusa que, apesar de não ser virgem, também não tinha marido: Deméter. Como as deusas casadas e virginais têm status diferente entre si, podemos assegurar que a virgindade ou o casamento não constituíam um padrão que definia a eminência das deusas olímpicas. O padrão é outro. Embora tenha sido a primeira das deusas a ter sua virgindade resguardada por Zeus e a honra de ser cultuada em todos os lares, Héstia é uma deusa de pouca expressão na Grécia antiga. As suas aparições mitológicas são mínimas, pelo que podemos entendê-la como uma divindade feminina completamente submetida ao grande deus indo-europeu, Zeus. Por outro lado, as duas outras virgens olímpicas, Athena e Ártemis, participaram ativamente de muitos episódios mitológicos. Isto porque, segundo podemos compreender através de nossa análise, essas deusas foram emancipadas pela ―masculinização‖. Os atributos masculinos dos quais as deusas dispõem são as suas marcas distintivas: ambas não são apenas virgens, mas são deusas que rompem a barreira do gênero e exercem funções masculinas. Por isto participam dos assuntos de Zeus, 202 especialmente Athena. O mesmo também acontece com duas das deusas casadas, Hera e Aphrodite. Embora tenham sido submetidas a deuses masculinos pelo casamento, essas deusas também foram emancipadas de seus maridos. Para mostrar a sua independência de Zeus, Hera concebeu Hefesto por partenogênese. Já Aphrodite assume uma característica que no Olimpo é estritamente masculina: mantém inúmeras relações extra-conjugais com deuses e mortais, mesmo casada com Hefesto. Deméter e Perséphone, por seu turno, são duas deusas singulares. Embora não tenha marido, Deméter também não conseguiu de Zeus o favor de permanecer eternamente virgem. Pelo contrário, foi o próprio Zeus quem a deflorou em uma união não-consensual, da qual nasceu Perséphone. Também o deus Posídon tomou Deméter contra a sua vontade, enquanto a deusa procurava pela filha que havia sido raptada por Aidoneu. Dessa união com Posídon ela gerou o cavalo Árion e a deusa sombria Despoina. A deusa Perséphone teve destino semelhante, não tendo conseguido de Zeus a proteção da sua virgindade. Segundo o Hino Homérico a Deméter, Zeus consentiu no rapto de Perséphone por Aidoneu. E consoante a versão do mito órfico, foi ele mesmo o primeiro amante de Perséphone, que teria dado à luz o deus Zagreus, o primeiro Dionisos. Por isto, encontramos nessas deusas uma característica incomum: são deusas cujos mitos narram a violência com que o masculino se assenhora do feminino. Em sua tradução e análise do Hino Homérico a Deméter, Daisi Malhadas e Silvia M. S. de Carvalho entendem esta violência e observam que o feminino representado pela deusa Deméter reage à violência. Segundo as autoras, ao rebelar-se contra Zeus e Aidoneu pelo que acordaram sozinhos, a deusa inicia uma complicada teia estabelecida sobre relações de compensação entre as instâncias masculina e feminina do sagrado grego (MALHADAS & CARVALHO, 1978: 23). Por certo, os acontecimentos relatados no Hino Homérico a Deméter são a memória que sobreviveu de um antigo conflito entre o culto das deusas ctônicas minóicas e a recém-chegada religião dos deuses guerreiros indo-europeus, especialmente pelo contraste entre elementos telúricos e celestes. Quando Zeus consentiu no rápto de Core por Aidoneu, decidiu sobre uma instância que pertencia aos domínios de Deméter. Afinal, a jovem deusa Core representa as flores e frutos da primavera, que são trazidos à Terra por sua mãe, 203 Deméter - a deusa que preside sobre a agricultura. Consoante a análise de Daisi Malhadas e Silvia M. S. de Carvalho, isto significa um pacto entre dois deuses masculinos que presidem sobre a vida (Zeus) e a morte (Aidoneu. O acordo consiste, portanto, no sacrifício de uma parcela de vida da Natureza (que pertence à Terra, o mundo dos vivos) aos mortos e ao seu soberano como forma de compensação pela esterilidade do ambiente subterrâneo e invernal no qual residem (MALHADAS & CARVALHO, 1978: 22). Entretanto, a vítima para o sacrifício é tirada da Terra (ou da Natureza), o domínio de Deméter por excelência. Mais do que interferir em seus assuntos, Zeus toma da deusa a própria filha, sacrificada a Aidoneu e à humanidade morta que reside com o deus no Hades. Devido à violência com que a filha é levada por Aidoneu, Deméter a procura sem êxito pelos quatro cantos da Terra. Após descobrir a identidade que os irmãos lhe haviam roubado a filha, a deusa abandona o Olimpo e segue para Elêusis, onde se estabelece na casa do rei Celeu, por intermédio de suas filhas. A rainha Metanira, que havia tido um filho temporão, entrega a criança aos seus cuidados. Com a intenção de tornar o pequeno imortal, Deméter alimenta-o com ambrosia (o alimento dos deuses) e procede a um ritual mágico, escondendo a criança sob a chama sagrada que consome o seu corpo mortal. Mas certa noite, a rainha surpreende a nutriz e interrompe o ritual, pelo que Deméter não concretiza a imortalização. Para as autoras, esta tentativa de imortalizar uma criança humana consistia na compensação exigida por Deméter. Tendo sido afastada da filha contra a sua vontade pelos irmãos (que são mais poderosos e mais fortes que a deusa), Deméter decide tomar de uma mortal (criatura mais fraca que ela) seu rebento. O sacrifício constitui em uma morte e um renascimento, do qual Demofão sairia imortal ―como um deus‖. Ademais, é uma compensação que os vivos deviam a Deméter, pois a filha fora sacrificada para a humanidade morta, da qual todos os homens viventes participariam um dia. E por fim, a compensação também acontece entre masculino e feminino: já que os deuses haviam sacrificado uma core (moça), a deusa agora sacrificava para si mesma um couros (rapaz), fechando o ciclo (MALHADAS & CARVALHO, 1978: 22-26). Eis a maneira como, no interior do mito, as divindades femininas da Égida resistiram à invasão das divindades masculinas indo-européias. Enquanto procurava por Core, a deusa Deméter assolou a Terra castigando a vegetação, que se tornou 204 infértil. Sem alimentos, a humanidade foi condenada à morte iminente por inanição. Sofrendo com a fome, os homens abandonaram os templos e os serviços sacerdotais, pelo que as divindades também foram punidas com a ausência dos cultos (dos quais eram também dependentes). Embora não seja uma deusa virginal, nem esteja unida a Zeus pelo hièros gamos como Hera, Deméter consegue se emancipar da vontade de seu irmão pela sua própria resignação, através do luto pela filha perdida. Algumas versões do mito dizem que foi enquanto a deusa procurava pela filha, logo antes de se enlutar e castigar a Terra com a esterilidade, que Posêidon a perseguiu, enquanto ela fugia transformada em égua, na forma de garanhão. Após o coito, Deméter deu à luz o cavalo Árion e a deusa Despoina, uma divindade negra que ela abandonou. Se por um lado a deusa buscou desesperadamente por Core (a filha amada), renegou a sua segunda criança (uma filha indesejada): segundo os gregos acreditavam, Core e Despoina representavam os dois humores da deusa Deméter: benfazeja e vingativa. Deméter se alegra e enche os campos com flores e frutos quando está com a filha amada (primavera), mas castiga a Terra quando as duas se separam e só lhe resta aquela criança indesejada (inverno). Em termos de compensação, a deusa retribui à Terra a sua própria felicidade ou seus infortúnios, que são representados por Perséphone e Despoina. Parece-nos que tais associações representavam para os antigos a necessidade de ceder uma parcela da vida àqueles que já não viviam na Terra e castigar os viventes com a esterilidade e a morte. Raptada pelo senhor dos mortos, a jovem Core representa a vida e a frutificação primaveril, portanto leva consigo uma parcela da felicidade terrestre ao sombrio Hades. Despoina, pelo contrário, é a presença da dor e da morte no inverno Terrestre. Podemos afirmar que o sacrifício compensatório entre vida e morte representava o prolongamento da vida nos domínios post-mortem, o que para os antigos denotava a continuidade da existência, tanto da vida vegetal quanto da vida humana. A eternidade era estabelecida, portanto, através das relações e dos ciclos entre as instâncias da vida e da morte. Se a vida deixava a Terra durante o inverno, quando não se poderia plantar ou colher, deveria estar escondida nalgum lugar, que era o mundo dos mortos. Além de assegurar a felicidade e a abundância às almas dos falecidos, o recolhimento da 205 vida no mundo inferior era também a garantia do seu retorno à Terra e da continuidade do ciclo agrícola do qual a humanidade viva era dependente. Estabelecia-se, portanto, uma interação entre os domínios dos vivos e o domínio dos mortos, da qual tanto os viventes quanto os falecidos eram os dependentes que se beneficiavam mutuamente. Essa relação era iniciada no mito por um processo violento, a própria morte acontecida em sentido figurado no rapto da jovem Core. Porém, ao retornar para os braços maternos, a deusa representava a regeneração da Natureza, terminando o ciclo com o sacrifíco da vida pela própria vida. Simplesmente porque a descida de Core ao mundo subterrâneo assegurava a continuidade da vida na Terra e no Hades. Portanto, concluindo, podemos afirmar que as deusas pré-helênicas sobreviveram à invasão indo-européia e tiveram o seu culto assegurado na mitologia grega. Os mitos nos dão testemunhos dos conflitos entre os dois grupos de divindades, provavelmente empreendido pelos seus devotos durante muitos séculos – e ao cabo dos quais os domínios das divindades foram estabelecidos e fixados, dando origem à religião grega que conhecemos. Após instaurar o seu culto mistérico em Elêusis, Deméter se assenhora das suas antigas funções como divindade cretense, ao mesmo tempo senhora da vida e da morte. Como deusa da vegetação, é ela quem alimenta a humanidade com os víveres que brotam da Terra. E como deusa da Terra, também recebe e guarda os corpos dos falecidos acolhidos em seu seio. A deusa Deméter, como a maior representante das deusas egenas, sofreu violentamente a intrusão dos deuses masculinos em seus domínios, que na mitologia são representados pelos seus próprios irmãos: Zeus, Posêidon e Aidoneu. Contudo, a deusa conseguiu estabelecer o seu culto em Elêusis e afirmar a sua importância no Panteão como uma divindade ligada aos mistérios, tanto do ciclo agrícola quanto da vida e da morte humana. Senhoras de dois mundos, Deméter e Perséphone asseguravam à humanidade a abundância e a felicidade post-mortem àqueles que se iniciavam nos seus mistérios em Elêusis e observavam os seus preceitos durante a vida terrestre. 206 REFERÊNCIAS BURKERT, W. Antigos Cultos de Mistério. São Paulo: Ed. USP, 1991. __________. Religião Grega na época clássica e arcaica. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. ELIADE, M. Entre o Sagrado e o Profano. São Paulo: Perspectiva, 2000. __________. Mito e Realidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001. GAZZINELLI, G. G. Fragmentos Órficos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. GRIMAL, Pierre. A Mitologia Grega. São Paulo: Brasiliense, 1982. __________. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand, 1997. GUIRAND, Félix. Mythologie Générale. Paris: Larousse, 1935. MALHADAS, Daisi. CARVALHO, Silvia M. S. O hino a Deméter e os mistérios eleusinos. UNESP: 1978. SISSA, Giulia. DETIENNE, Marcel. Os deuses gregos. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. VERNANT, Jean Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. __________. Mito e religião na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1992. __________. O universo, os Deuses e os Homens. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 207 TEOLOGIA FEMINISTA E PÓS-COLONIALISMO: CONVERGÊNCIAS ENTRE OS PENSAMENTOS DE ELISABETH SCHÜSSLER FIORENZA E BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS. José Roberto Alves Loiola103 Resumo: O crescente interesse pelos estudos feministas tem sinalizado não apenas a exaustão do pensamento moderno como também a possibilidade de superação da resistência à designação ―feminista‖, tanto em nível cultural quanto teológico.O artigo propõe uma discussão sobre a teologia feminista em perspectiva pós-colonial. Inicia com um histórico preliminar do imaginário feminino na teologia cristã ocidental na perspectiva de Delumeau(1989) e procura fazer um análise crítica do pensamento moderno a partir dos pressupostos teóricos de Fiorenza(2009) e Santos(2006). Ao introduzir o pensamento teológico de Fiorenza, o artigo apresenta o pós-colonialismo como epistemologia mais adequada para a elaboração de uma teologia feminista emancipatória. O artigo também apresenta interlocuções com as teólogas feministas; Lieve Troch(2007) e Maaike de Haardt(2007) reforçando a idéia de uma teologia feminista plural e não linear. Palavras chaves: Teologia feminista, feminismo, pós-colonialismo, modernidade, Elisabeth S. Fiorenza, Boaventura de Souza Santos, Cristianismo. Introdução Um episódio envolvendo um grupo de mulheres clérigas, no último Concílio Regional da Igreja Metodista na Quinta Região Eclesiástica104, realizado na cidade de São José do Rio Preto-SP de 25 a 29 de Novembro de 2009, demonstrou o quanto à reflexão proposta neste trabalho é relevante. Numa das plenárias em que foram realizadas as eleições da delegação ao Concílio Geral/2011, após a apuração e divulgação dos resultados, foi constatado que o quorum de mais ou menos 160 homens entre leigos e clérigos e 72 mulheres entre leigas e clérigas, não elegeu sequer, uma clériga. Tudo parecia ―normal‖, afinal, parece haver sido ―naturalizado‖ em nossa cultura ocidental que o ―homem‖ é melhor para liderar, debater, discutir e 103 Aluno do Programa de Pós-Graduação do Curso de Ciência da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. [email protected] 104 Conclave administrativo regional da Igreja Metodista composto por clérigas (os) e leigas (os), realizado a cada dois anos e presidido por um Bispo. 208 planejar. Contudo, diante desse eloqüente testemunho ―patriarcal‖ que alimenta inclusive, o ideal de que as mulheres devem aceitar a realidade como se apresenta, sendo ―submissa‖ a ―vontade de Deus‖, as clérigas metodistas da Quinta Região Eclesiástica de maneira inteligente e contundente, manifestaram o seu repúdio àquele concílio eclesiástico, questionando a comunidade kyriarcal, ―desnaturalizando‖ e ―desmistificando‖ aquele resultado. A propósito, a Igreja Metodista brasileira já ordena mulheres ao ministério pastoral desde 1970. Os testemunhos daquelas sábias mulheres nos remetem tanto à constatação de que a instituição ainda é marcada pela cultura do ―machismo‖, quanto nos remete à discussão sobre o feminismo. E é no campo da teologia que reside um dos maiores desafios para novas releituras críticas não apenas dos textos bíblicos, como também das relações de gênero e da iconografia feminina na história da religião cristã ocidental. Hoje em dia, tanto homens, quanto mulheres assustam-se com a palavra ―feminismo‖. Fiorenza (2009) teóloga feminista pós-colonial ao analisar esse preconceito como uma das barreiras para a elaboração de uma teologia nãopatriarcal ou ―não machista‖ e, portanto, uma teologia feminista, faz a seguinte consideração; [...] Pesquisas de opinião mostraram que aproximadamente 70% das mulheres se negam a identificarem-se como feministas porque, na mente delas, esse rótulo caracteriza uma pessoa como fanática, preconceituosa, misândrica (odiando varões) e louca. Assim não é nenhuma surpresa que mulh*res não queiram ser rotuladas como ―feministas‖. Não obstante, estudos mostraram também que a maioria das mulh*res apóia objetivos políticos feministas, como, por exemplo, o fim da discriminação de mulheres, o salário igual para trabalho igual, a partilha de tarefas domésticas e criação dos/as filhas/os pelos cônjuges, a descriminalização/despenalização da interrupção da gravidez, a denúncia da violência contra mulh*res e do assédio sexual e a ordenação de mulh*res [...] (FIORENZA, 2009. p. 70). Ao discutirmos nesse trabalho a teologia feminista, daremos um enfoque póscolonial buscando identificar pontos de convergências nos pensamentos de Elisabeth S. Fiorenza (2009) e Boaventura de Souza Santos (2006). A guisa de introdução apresentaremos algumas idéias de Jean Delumeau (1989) que nos ajudarão a perceber a noção do ―feminino‖ nas sociedades ocidentais, tanto medievais quanto modernas. 209 A partir dos pensamentos de Santos e Fiorenza, demonstraremos a insuficiência do paradigma moderno como epistemologia para a teologia cristã ocidental e como esse paradigma compromete tanto, uma leitura bíblica libertadora para homens e mulheres, quanto à construção de uma ética e uma política mais solidária, com vistas aos processos emancipatórios e mais democráticos no Ocidente. Finalmente, definiremos o pós-colonialismo e sua pertinência epistemológica na elaboração da ―Teologia Feminista‖, fazendo interlocução das idéias de Fiorenza com as de Lieve Troch (2007). I. NO PRINCÍPIO ERA O HOMEM... Antes de falarmos sobre ―Teologia Feminista‖, julgamos importante fazermos uma breve reconstituição da fase ―intra-uterina‖ da teologia cristã ocidental. Sabemos que o cristianismo foi um fenômeno religioso ―fecundado‖ pelo ―ethos‖ monoteísta do judaísmo em contextos fronteiriços com o império greco-romano. Fenômeno, quase ―abortado‖ historicamente, não fosse a estratégica aliança constantiniana no 3° século. A propósito, Fiorenza (2009) denuncia; [...] No processo de separação do judaísmo, os grupos cristãos apropriaram-se da bíblia judaica, considerando-a seu ―Antigo Testamento‖, e usaram-na para demonstrar que todas as suas promessas foram transferidas para eles, que agora eram o novo (verdadeiro) povo de D**s.(Esse conceito é tradicionalmente chamado de ―teoria da substituição‖). As/os cristã (os)s chamaram sua coletânea de escritos do ―Novo Testamento‖, para diferenciá-la do Antigo que é a outra parte da bíblia cristã. Desse modo, o quadro composicional da bíblia cristã está impregnado de antijudaismo [...] (FIORENZA, 2009, p.82) 1. E as mulheres foram consideradas “frágeis e vazias”! Nutrida pelo ―espírito do império‖ e marcadamente masculinizada, a religião cristã nasce e cresce protegida pela ideologia do pensamento universalista emoldurado por credos, cânones, episcopado até tornar-se um sacro-império. Os inúmeros ―Pais‖ e não, ―mães‖ da Igreja Cristã, tanto os apologistas quanto os 210 polemistas, os vários ―Santos‖ inspiradores do ideal cristão, são exemplos concretos da tradição predominantemente masculina como auto-referencial da teologia cristã. A propósito, o Concílio de Trento (1564), quando estabelece a veneração à Virgem Maria, o faz sob uma óptica visivelmente ―machista‖. Oportunamente, Maaike de Haardt (2009) ao falar do paradoxo mariano, chama-nos a atenção sobre a influência que o culto à ―Virgem mãe‖, que foi uma resignificação do ―culto à deusa virgem‖ na Roma antiga por parte do cristianismo clássico, recuperando tradições romano-helenísticas, atualizando a simbólica do ―culto à Isis‖ do qual provém o título ―Rainha do Céu‖, pode exercer sobre as mulheres tanto positiva quanto negativamente; [...] No mesmo período do Vaticano II, mulheres e teólogas feministas começaram a protestar contra as imagens tradicionais e influentes da Virgem Mãe, bem como contra os papéis e imagens impostas a mulheres, através de Maria. Características importantes dessas imagens eram: auto-sacrifício, abnegação, obediência, humildade e servidão, castidade, e especialmente a auto-anulação. A maternidade, física ou espiritual, era a vocação das mulheres. Para muitas mulheres, porém, essa imagem de uma Mãe que era virgem (e a virgindade era aqui vista acima de tudo como uma qualificação moral) era não só inimitável como uma arma poderosa nas mãos do clero, para controlar mulheres e para minimizar sua influência na Igreja e na vida pública. Conseqüentemente, muitas mulheres ocidentais tinham e ainda têm uma relação ambígua com a Santa Virgem [...] (HAARDT, 2009, pp.214.) A teologia, a historiografia e iconografia cristãs ocidentais, certamente têm muitas dívidas com o feminino. Uma delas é a representação da feminilidade como sendo ―frágil‖ e ―má‖. Por conta do estereótipo ideológico da ―Santa Virgem‖ e congêneres que definem a mulher como; ingênua, subserviente, resignada e abnegada, há muitas ―santas marias‖ apanhando diuturnamente ao redor do mundo, incluindo as periferias das cidades brasileiras. Oxalá fosse recuperado o lado ―Penha‖ 105 da Virgem Maria. Uma teologia feminista e uma historiografia feminista, sem dúvida alguma são fundamentais na reconstrução tanto da dignidade feminina, quanto da história do cristianismo e da teologia cristã. A propósito, Jean Delumeau (1989) ao relatar a história do medo no ocidente no período de 1300 a 1800, aborda como as mulheres foram representadas principalmente pela igreja cristã. Podemos perceber na descrição não-vitimizadora que o autor faz da imagem das mulheres 105 A Lei Maria da Penha – Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. É um instrumento que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.Todavia, o medo de denunciar o parceiro parece ser uma “lei” muito mais forte entre as brasileiras. 211 nesse período, dois retratos; o primeiro, é que elas/vocês protagonizaram rebeliões que marcaram profundamente a civilização pré-industrial na Europa no limiar da idade moderna; [...] Múltiplas pesquisas ressaltaram, recentemente, a variedade dos movimentos sediciosos nos quais as mulheres tomaram parte na civilização pré-industrial. Assim, na Inglaterra do começo do século XVII, elas participaram amplamente das rebeliões contra as enclosures e pela manutenção dos bens comunais. Não estiveram mais ausentes das agitações violentas ocasionadas pelas dissensões religiosas. Em Edimburgo, em 1637, a resistência ao Prayer book de Carlos I começou com uma ruidosa manifestação da ―canalha das servas‖ em Saint Giles Church. Elas interromperam a leitura do deão, lançaram tamboretes na direção do bispo e, tendo este se esquivado, apedrejaram de todas as fúrias iconoclastas que destruíram as estátuas dos santos no século XVI na França e nos Países Baixos. [...] Com certeza existe um militantismo feminino que contribuiu, por exemplo, para transmitir ás gerações do século XIX a ideologia dos anos ardentes do século XVIII. O segundo retrato feminino construído na época pré-moderna na Europa Ocidental associava a mulher à figura do Satã (Satanás). Conforme o autor, o antijudaismo e a caça às feiticeiras coincidiram; [...] Do mesmo modo que o judeu, a mulher foi então identificada como um perigoso agente de Satã; e não apenas por homens de Igreja, mas igualmente por juízes leigos. Esse diagnóstico tem uma longa história, mas foi formulado com uma malevolência particular – por uma época em que no entanto a arte, a literatura, a vida de corte e a teologia protestante pareciam levar a uma certa promoção da mulher[...] A atitude masculina em relação ao ―segundo sexo‖ sempre foi contraditória, oscilando da atração à repulsão, da admiração à hostilidade. O judaísmo bíblico e o classicismo grego exprimiram alternadamente esses sentimentos opostos. Da idade da pedra, que nos deixou muito mais representações femininas do que masculinas, até a época romântica a mulher foi, de certa maneira, exaltada [...] Essa veneração do homem pela mulher foi contrabalançada ao longo das eras pelo medo que sentiu do outro sexo, particularmente nas sociedades de estruturas patriarcais. [...] As raízes do medo da mulher no homem são mais numerosas e complexas do que pensara Freud, que reduzia ao temor da castração, ela mesma conseqüência do desejo feminino de possuir um pênis. Essa inveja do pênis não é sem dúvida senão um conceito sem fundamento introduzido subrepticiamente na teoria psicanalítica por um tenaz apego á superioridade masculina [...] (DELUMEAU, 1989. pp.310-311). Ao analisar o discurso oficial sobre a mulher no final do século XVI e XVII, o autor destaca as concepções dos teólogos em especial dos demonólogos leigos, jesuítas e dominicanos. Citando Benedicti o autor nos lembra o infeliz acróstico: MVLIER, muito difundido nesse período; ―[...]‖ M‖: a mulher má é o mal dos males; V: 212 a vaidade das vaidades; L: a luxúria das luxúrias; I: a ira das iras; E [alusão às Erínias] a fúria das fúrias; R: a ruína dos reinos [...] ―(DELUMEAU, 1989.p.328). Em harmonia com o discurso dos homens de Igreja, estava o discurso dos homens de ciência, que por sua vez, afirmavam a inferioridade estrutural do feminino. Segundo o autor, teólogos e médicos forneciam um consenso argumentativo poderoso aos juristas, a terceira fonte de autoridade oficial da época. Some-se a isso tudo uma produção literária comumente hostil à mulher. O texto a seguir citado pelo autor, é de um humanista do século XVI, Batista Mantovano e ilustra definitivamente a representação da mulher pela literatura da época; [...] Mantovano diz que o gênero feminino é servil, desprezível, cheio de veneno: cruel e orgulhoso, repleto de traições, sem fé, sem lei, sem moderação, sem razão. Desprezando o direito, justiça e equidade... Mulher é inconstante, móvel, vagabunda, inapta, vã, avarenta, indigna, suspeitosa, fingida, ameaçadora, briguenta, faladora, cúpida, impaciente, invejosa, mentirosa, leviana em crer, bebedora, onerosa, temerária, mordaz, enganadora, caftina, devoradora, feiticeira, ambiciosa e supersticiosa, petulante, inculta, perniciosa, frágil, litigiosa, ativa. Despeitada e muito vingativa, cheia de adulação e de mau humor, entregue a cólera e a ódio, cheia de fingimento e simulação, para se vingar exigindo dilação, impetuosa, ingrata, muito cruel, audaciosa e maligna, rebelde [...] (DELUMEAU, 1989. p.341). Poderíamos elencar citações de Aristóteles, Plínio e Quintiliano, leis antigas e obras teológicas que afirmaram enfaticamente a inferioridade feminina. Será que contra tal construção não devemos encetar um processo sistemático de destruição? A boa notícia é que já foi iniciado. Teólogas feministas de várias culturas e tradições epistemológicas estão trabalhando tanto na desconstrução desses ―arquétipos‖ quanto na reconstrução de novos paradigmas. A propósito, Lieve Troch (2007) anuncia; [...] Desde os seus inícios, a teologia feminista tem se compreendido como crítica radical à cultura e à religião. O objeto de sua pesquisa são as ―religiões patriarcais‖ e a ―sociedade patriarcal‖ que limitam mulheres e homens subordinados no processo de se tornarem sujeitos plenos. Na maioria dos casos, definições do sujeito humano são androcêntricas e compreendem a existência de mulheres como existência derivada, ou a mantêm presa em construções de masculinidade e feminilidade onde o masculino é o normativo. Numa primeira fase de desconstrução crítica téologas feministas procuram definir de forma nova a ―subjetividade‖ e desmascaram, ao mesmo 213 tempo, as fronteiras que religiões patriarcais e sociedades patriarcais colocam para a conduta e as possibilidades de homens e mulheres subordinados[...] (TROCH, 2007, pp.37-38). Para a autora, há que se fazer o que ela chama de ―exercícios em maravilharse‖, o que dentre outros desafios, implicaria na ―criação da identidade na tensão entre restrição e transgressão de fronteiras‖(p.36). A justificativa de uma ―Teologia feminista‖ portanto, está na visível ―formatação‖da mente,espírito e corpo da mulher pela ―andropologia teológico cristã ‖ ou não. Conforme Troch, Há que se oferecer resistência contra os condicionamentos opressores. A possibilidade da convivência das diferênças multiculturais implicará sempre numa experiência de transgressão na realidade fronteira-espaço.Todavia, se faz necessário lembrar que nem a autora e nem esse trabalho propõe um ―essencialismo feminino‖. Concordamos com Liv Sovik(2002) que ―a política identitária essencialista aponta para algo que vale lutar, mas não resulta simplesmente em libertação da dominação‖(p.12). Isto posto, a teologia feminista não se reduz ao feminino. É como o ―oxigênio‖ que todos precisam respirá-lo. É como as flores; todos podem admirá-las; homens e mulheres. II. E DISSE O ILUMINISMO: HAJA LUZ! Pensamos ser mais construtivo ao invés da reflexão da Teologia que ―fez‖ a mulher, entendermos que as mulheres se fizeram teológas e habitam entre nós, ensinando-nos novas leituras da ―graciosa sabedoria divina‖ que protesta contra toda a ―verdade‖ monolítica , autoritária e arrogante da racionalidade moderna. O pensamento moderno é concebido por Santos (2006) a partir do século XVI até meados do século XIX. Parece-nos razoável, afirmar que tanto epistemológica, quanto cronologicamente, a modernidade coincide com consolidação da teologia ocidental clássica. Isso equivale afirmar que a colonização européia é também um processo de cristianização dos povos sob o ―ethos‖ iluminista. A revolução científica que segundo Santos, caracterizou o ―novo começo‖ da história, é resultado de transformações culturais, políticas, econômicas e filosóficas desde 1453. Na verdade, o período da modernidade vai se estender até o século XVIII e é marcado profundamente pela expansão marítima, pela reforma e pelo renascimento. Por exemplo, a epistemologia de René Descartes (1596-1650) 214 106 questionando o pensamento de Aristóteles (384-322 a.C) e o escolasticismo de Tomás de Aquino (1225-1274) é um fator importante na consolidação do pensamento moderno. Contudo, o chamado ―novo começo‖ para o europeu, significou a destruição de outros povos e conseqüentemente de outras epistemologias. Vejamos o que diz Enrique Dussel (1993); [...] A ―invasão‖, e a subseqüente ―colonização‖, foram ―excluindo‖ da comunidade de comunicação hegemônica muitos ―rostos‖, ―sujeitos históricos‖, os oprimidos... Eles são a ―outra face‖ da Modernidade. [...] (DUSSEL, 1993; p.159). A propósito, o descobrimento da América, resultou no dizer de Dussel; no ―encobrimento do outro‖. Parafraseando Michel de Certeau (1982), a escrita da história da América significou ―cobrir‖ outra história. Portanto, nunca é demais reconsiderar a história da modernidade. Afinal, como diz Novaes; [...] a história é a retomada de operações culturais começadas antes de nós, seguidos de múltiplas maneiras e que nós ―reanimamos‖ ou ―reativamos‖ a partir do nosso presente. Operações culturais capaz de abalar a nossa ―imaginação‖ para nos conceber como escreve Merleau Ponty, toda a sorte de possíveis dos quais não temos experiência. [...] (NOVAES, 1992; p.11). Entendemos que o ―rosto‖ feminino é um desses rostos tão propositalmente ―encoberto‖ não apenas com os ―panos‖ da religião, mas também com os ―panos‖ da ―ciência moderna‖. Durante a modernidade, não faltou ―espartilhos‖ para ajustar o feminino aos parâmetros bíblico-teológicos, filosóficos, econômicos e culturais. Por isso, a teologia feminista, não é apenas um convite à ―nudez‖, é também a possibilidade para a confecção de novas ―vestimentas‖ de preferência mais ―suaves, leves e esvoaçantes‖. 1. Qual é a base epistemológica da Teologia Feminista? Fiorenza (2009) ao reexaminar a modernidade nos ajuda a entender por que o modernismo não serve para fundamentar epistemologicamente a Teologia Feminista; [...] um modelo interpretativo pós-moderno procura ir além do ethos e do conjunto de convicções e mentalidades do modelo hermenêutico 106 Filósofo Francês que marcou o período do “Racionalismo Moderno”, introduzindo “a dúvida metódica” como um método para descobrir a verdade. Num tempo em que a realidade era concebida basicamente pelo viés religioso “O discurso do método” sua obra célebre, lançou as bases para uma nova epistemologia. 215 moderno, não para abolir o alcance da modernidade, mas para aprofundá-lo e aprimorá-lo. A Modernidade – um acontecimento profundamente europeu que se deu em muitos níveis a partir dos meados do século 16 – questiona todas as maneiras convencionais de fazer as coisas e substitui autoridades tradicionais por autoridades próprias, baseadas em ciência, crescimento econômico, democracia ou lei. Procura conquistar o mundo em nome da Razão, sobre a qual deve ser fundamentada a ordem social[...] (FIORENZA,2009.p.57). A autora propõe alguns corretivos para que a perspectiva moderna seja eficaz. Primeiro, um corretivo estético no sentido de recuperar o valor da experiência concreta e da intuição imaginativa; neutralizando a presunção universalista. Segundo, o corretivo cultural com o objetivo de fortalecer a autonomia, a particularidade cultural, como legado sapienti de uma comunidade específica. Denuncia que desde o início da modernidade, a determinação da operatividade do poder, mantinha a ―razão pura‖ como fachada nas relações sociais. Para a autora, o padrão ―iluminista‖ que ao longo da modernidade tem conjugado. Razão, autonomia e universalidade, tratam-se de noções do ―Cavalheiro ocidental‖, onde o sujeito masculino intelectual foi consolidado em detrimento aos direitos dos ―outros‖: mulheres, esposas, crianças, escravos (as), estrangeiras (os), nativos (as) e outros. Destarte, propõe como teoria geral uma análise hermenêuticocultural pós-moderna e a emancipatório-pós-colonial como crítica à modernidade. 1.1. Fiorenza, Santos e o tango! O não essencialismo de Fiorenza e sua tese pós-colonial a aproxima do espaço-teórico de Boaventura de Souza Santos (2006) na medida em que o autor se propõe a criticar com a mesma lucidez a racionalidade moderna como uma epistemologia viável para os novos tempos. Para Santos, o critério epistemológico adotado pela modernidade fechou o horizonte em si mesmo, tornando-se uma ―unidade‖, universalista, taxando as demais epistemologias de ―irracionais‖, quando na verdade tais ―conhecimentos‖ compõem uma racionalidade mais ampla. O autor diagnostica uma crise paradigmática, já que o aparente sólido ―edifício‖ do pensamento moderno, assentado no fundamentalismo científico, havia separado muito radicalmente o sujeito do objeto, a natureza da sociedade; ―os engenheiros e arquitetos‖ desse empreendimento, não previram que precisariam de outras formas de conhecimentos, do senso comum e dos estudos humanísticos, por 216 exemplo. Também não previram que a investigação das ―causas últimas‖ seria relevante e que a matemática não daria conta da complexidade do mundo. Essa crise vai se traduzir conforme Santos numa pseudociência, em profundas conseqüências sociais, todavia, em grandes oportunidades de abertura para a emergência de epistemologias alternativas. A crise paradigmática pode ser identificada como a transição do paradigma moderno para o que Santos chama de ―Pós-moderno‖. O que significa também uma nova epistemologia. Todavia, ainda influenciada pelo ―modernismo‖ como bem diz o autor; [...] de uma ciência assente numa racionalidade mais ampla, na superação da dicotomia natureza/sociedade, na complexidade da relação sujeito/objeto, na concepção construtiva da verdade, na aproximação das ciências naturais às ciências sociais e destas aos estudos humanísticos, numa relação entre a ciência e ética assente na substituição d aplicação técnica da ciência pela aplicação edificante da ciência e, finalmente, numa nova articulação mais equilibrada, entre conhecimento científico e outras formas de conhecimento com o objetivo de transformar a ciência num novo senso comum, para o que propus o conceito de dupla ruptura epistemológica [...] (SANTOS; 2006 p.26) Vimos que a contribuição de Fiorenza para a superação da crise paradigmática seria uma tríplice correção; estética, política e cultural, na implementação do emancipatório-pós-colonial. Santos por sua vez, ao propor uma ―dupla-ruptura‖, convida-nos definitivamente a dançar num espaço-fronteira, sem a rigidez do senso comum e da ciência. Assim como Fiorenza, para o autor, há que se pensar numa ética e numa política ―de baixo prá cima‖, em escala hemisférica, nortesul. [...] em contraposição às correntes dominantes do pensamento pósmoderno e pós-estruturalista, o pós-moderno de oposição concebe a superação da modernidade ocidental a partir de uma perspectiva póscolonial e pós-imperial [...] (SANTOS, 2006.p.33). Santos se posiciona, portanto, como um pós-colonialista de oposição, preconizando uma transição paradigmática (modernidade para pós-modernidade) a partir de dois pilares; o da regulação social e emancipação social. Rememorando a tríplice correção de Fiorenza, estou convencido que eles formam um adequado par para um ―tango pós-colonial emancipatório de oposição‖. 217 Nessa dança, constrói-se espaços na medida dos passos que se deslocam de uma razão ―indolente‖, para uma racionalidade ―cosmopolita‖. Na certeza de que ao realizar o cruzamento das tradições teóricas e metodológicas, considerando a ciência e outras formas de conhecimento, não apenas se cria uma comunidade científica solidária como também se torna possível uma epistemologia múltipla e anti-dicotômica, possibilitando, por exemplo, a elaboração de uma teologia feminista pós-moderna e pós-colonialista, que ao que nos parece é a proposta de Fiorenza. Pelo que parece, o ―fazimento‖ dessa teologia a partir do lugar da mulher e das mulheres requer versatilidade teórico-metodológica, requer o aprendizado do tango. A propósito, Wilmes (2007) ao falar do ―tango con pasión‖, assim se expressa; [...] Numa sociedade pós-moderna na qual tradição – não importa quais – se ramificam em muitas direções, é possível escolher elementos de muitas tradições. E não somente isso: também dentro de uma tradição, como por exemplo, a judaico-cristã – manifesta na nossa perspectiva como elementos fixos da realidade são a diversidade e heterogeneidade, e já não a unidade, aquilo que é comum. O saber canonizado está perdendo sua importância, outras formas de orientação histórica estão se impondo. O fato de memórias não dominantes de (mulheres, judeus, pessoas de cor, migrantes) lutarem por reconhecimento político-público fez com que ―o fazer memória‖ ganhasse uma nova vitalidade [...] O tango tem uma dimensão que outras danças não possuem: canta e dança a memória, sem que ficasse claro de qual memória se trata concretamente. Está se pensando, ao dançar – se é que se pensa ao dançar – nos imigrantes europeus que criaram o tango argentino em 1880? Está se sentindo em tempos de emancipação, novamente a necessidade de um homem que lidera e de uma mulher que acompanha?O homem determina o espaço onde se dança como par. Será que pessoas individualizadas novamente precisam de limites e estruturas?[...] O tango desconhece esquemas fixos, mas pressupõe indispensavelmente um conhecimento dos movimentos e das figuras dançantes clássicos [...] O tango floresce no desenraizamento. Nasceu numa situação de transformação social [...] (WILMES, 2007. pp.16,17). III. E A TEOLOGIA FEMINISTA VIU QUE O PÓS-COLONIALISMO “ERA BOM”. Ao invés do ―Logos‖, a ―Divina Sabedoria-Hokmá-Sofia-Sapientia‖ conforme Fiorenza, nos convida poeticamente à ―Casa da Sabedoria‖, um lugar onde se dança e se pensa de maneira aspiralada. Um lugar do saber-comer a partir de um cardápio variado. Um lugar do saber-fazer lindas e nutritivas ―saladas‖ teóricas e 218 vivenciais. Por isso, para autora, é preciso uma nova atitude por exemplo, para com a Bíblia. Há que se questionar uma noção de ―sagrado‖ que ―segreda‖ a violência atrás da letra. Há que se rever os paradigmas de leitura bíblica. O(A) exegeta de orientação feminista pós-colonial, procura tirar não apenas ―o pó das palavras‖, mas se esforça em demonstrar o teor do ―veneno‖ que destila de muitas narrativas sob o título de ―sagradas letras‖. [...]estudos bíblicos geralmente distinguem entre ―exegese‖ e ―apropriação‖, entre ―interpretação‖ e ―aplicação‖, você poderia estar acostumada/o a esse modelo de dois passos de interpretação. Contudo, eu não aprovo esse modelo hermenêutico dicotômico[...]Em vez desse modelo proponho um modelo diferente. Concebo a tarefa de interpretação feminista em termos emancipatório-retóricos[...] (FIORENZA,2009.p.27). Nos faz lembrar o que Certeau(1994) chamou de ―aparelho escriturístico‖ ao mencionar o ―Logos‖ da ocidentalização e ao descrever os ―aparelhos da encarnação instrumental‖ que a tudo lineariza e purifica sob a operatividade da racionalidade moderna. Uma ―inteligência‖ que se manifesta a partir do mito de uma reforma que na verdade, conformou as sociedades modernas em recortes e deformou o ―ser‖ em concepção ―binária‖. A isso, chamamos de ―colonialismo‖. 1.2.Pós-colonialismo Santos sinaliza que o período denominado ―descobertas imperiais‖ foi marcado por duas características principais; uma empírica e outra conceitual. A primeira significou o ato das descobertas. A segunda, o que se pensou, enquanto se descobria. O que foi e é público e notório em todas as descobertas imperiais, foi o conceito de ―inferioridade do outro‖ [...]O que há de específico na dimensão conceitual da descoberta imperial é a idéia da inferioridade do outro, que se transforma num alvo de violência física e epistêmica. A descoberta não se limita a assentar nessa inferioridade, legitima-a e aprofunda-a. O que é descoberto está longe, abaixo e às margens, e essa ―localização‖ é a chave para justificar as relações entre o descobridor e o descoberto após a descoberta; ou seja, o descoberto não tem saberes, ou se os tem, estes apenas tem valor enquanto recurso[...] Para isso é necessário recorrer a múltiplas estratégias de inferiorização[...] Entre tais estratégias podemos mencionar a guerra, a escravatura, o genocídio, o racismo, a desqualificação, a transformação do outro em objeto ou recurso natural e uma vasta sucessão de mecanismos de imposição econômica(tributação, colonialismo, neocolonialismo, e, por último, globalização neoliberal), de imposição política(cruzadas, 219 império, estado colonial, ditadura e, por último, democracia) e de imposição cultural(epistemicídio, missionação, assimilacionismo e, por último, indústrias e cultura de massa)[...] (SANTOS, 2006, p.181,182). O pós-colonialismo é não apenas uma crítica a esse projeto moderno, como também uma atitude metodológica interdisciplinar na perspectiva da emancipação/descolonização e por último, na destruição das concepções pósmodernas dominantes, chamado pelo autor de ―pós-modernismo celebratório‖. É muito importante, a compreensão de que no caso da teologia feminista na perspectiva de Fiorenza, manter-se em estado de ―vigília‖ para não cair novamente nas ―arapucas‖ dicotômicas, dominantes e essencialistas é fundamental. Somente assim, será possível embelezar‖ a nossa ―glocalidade‖. 1.2 Teologia + Feminismo Fiorenza está consciente da importância do texto bíblico como mediação rumo à experiência radical emancipatória para a maioria das mulheres. Também, sabe que ―Hermes‖107 não é um modelo adequado para o fazer teológico feminista. Evocando outro mito fundante, a autora explica; [...]De acordo com o mito, Zeus, o pai de todas as divindades, vivia em rivalidade com Metis, a qual a Bíblia chama de Hokmá-SofiaSabedoria. Quando Metis, a Divina Sabedoria estava grávida de Atena, Zeus temia que ela desse à luz uma criança que o ultrapassaria em sabedoria e poder. Por isso, enganou Metis e converteu-a em uma mosca. Como se isso não fosse suficiente, Zeus engoliu a mosca Metis para tê-la sempre dentro de si e para beneficiar-se de seu conselho sábio. Essa narrativa mitica de Metis e Zeus não só revela o medo do Pai das divindades, de que a filha da Sabedoria fosse mais sábia que ele, mas também mostra as condições sob as quais as mulh*res são capazes de exercer a sabedoria e de produzir conhecimentos nas culturas e religiões kyriarcais[...] Quando lemos o mito de Metis e Atena aplicando uma hermenêutica da suspeita, ele mostra que os sistemas kyriarcais do conhecimento e poder convertem as mulh*res em objetos e as engolem, para cooptar sua sabedoria e seus conhecimentos no interesse da dominação[...](FIORENZA,2009.p.87). ―Feminismo é para todos/as‖.Citando Bell Hooks, a autora nos chama a atenção para a superação do preconceito ao termo ―feminismo‖. 107 Na mitologia grega, “Hermes” era aquele que transmitia os oráculos dos “deuses”. 220 [...] A teoria feminista – aí onde as perguntas param e onde eu começo a escutar tudo sobre o mal do feminismo e as malvadas feministas: como elas ―odeiam‖ os homens. Como ―elas‖ querem se rebelar contra a natureza e deus; . Como ―elas‖ são todas lésbicas; como pegam todos os empregos e não têm chances[...] (HOOKS In FIORENZA, 2009, p. 70). Na tentativa de resignificar o termo para a teologia, a autora assim define o feminismo: ―mulh*res como povo de D**s e (denúncia do) poder da opressão que promove a morte como um pecado estrutural e um mal que destrói a vida‖. Nesse ponto, é importante lembrarmos que para a teóloga Fiorenza, a teologia feminista se desenvolve no sistema teórico do pós-colonialismo emancipatório. O que significa que o paradigma mais adequado para o seu labor teológico, certamente não é o ―paradigma revelatório-doutrinário‖ e sim, o ―retórico-emancipatório‖. Nesse paradigma, as preocupações da autora não priorizam evidências dogmáticas ciêntíficas e religiosas ou a ―edificação espiritual‖ que mais ―castram‖ que emancipam. Tampouco a ―sublimação cultural‖. O valor dessa ―rósea‖ e engajada teologia, está na sua radicalidade em pesquisar ―como‖ os textos bíblicos exercem influência e poder na vida social e religiosa. O pensamento teológico fiorenziano luta pela transformação de estruturas de dominação e valores de desumanização. A autora está consciente de que a forma como a Bíblia tem sido usada ao longo de todo o período colonizatório, serviu mais para ―domesticar‖ as consciências de mulheres e homens, a partir de ideais de ―submissão‖, ―dependência‖ e ―obediência‖ como vontade divina o que ajudou a internalizar a violência e preconceitos. 1.2.A teologia feminista tem ―sete‖ cabeças mas, não é um ―monstro‖ Ao estudar as diversas representações do divino a ―teologia das mulheres‖ em perspectiva pós-colonial, discute a importância da pluralidade teológica. [...] Embora as religiões se caracterizem por uma certa espécie de iconoclasmo, religiões cósmicas e metacósmicas localizam o divino em narrativas, em reflexões sobre tradições e memórias, e em ritos e interpretações. Todas as religiões oferecem não só definições, ou seja, esquematizações do divino, como também estabelecem acordos internos que procuram proteger o divino permanentemente de qualquer forma de cooptação. Além disso, a maioria das religiões costuma reconhecer imagens e conceitos como modos de se referir a 221 Deus, à experiência como o divino, e não como sendo o próprio Deus(―Deixa Deus ser Deus)[...](TROCH,2007.p.86). Ao afirmar que o divino está em vasos de barros, Troch nos convida a relativisar ―imagens‖ masculinizadas de Deus por exemplo, como conceitos ―fixos e absolutos‖. Nos parece razoável concordar que a teologia clássica construiu um ―conceito‖ do divino a partir da perspectiva do homem. E que esse falocentrismo está por detrás do espírito do império colonial. Por isso, concordamos também que é justa a intenção da Teologia feminista propor uma outra e outras representação(es) do divino. O que não significa apenas mudar a cor do ―colonialismo‖, Já que Fiorenza insiste numa leitura pós-colonial em teologia. Isto significa que não estamos falando de um tipo de teoria feminista ou apenas de uma teologia feminista. Fiorenza pressupõe várias teorias e teologias feministas válidas. [...] Os limites de cada perspectiva são instáveis, permeáveis, fluídos, sobrepõem-se e estendem-se além da descrição. Por isso, na interpretação podem ser combinadas várias abordagens feministas para atacar as muitas cabeças do monstro do kyriarcado.O feminismo por direitos iguais ou feminismo liberal[...] O feminismo complementário[...] O feminismo ginocêntrico ou radical[...] O feminismo lésbico[...]O feminismo de gênero[...] O feminismo maternal[...]O feminismo relacional[...] O feminismo marxista/materialista[...]O ecofeminismo[...]O feminismo pósmoderno[...] O feminismo do Terceiro Mundo/das diferênças[...]O feminismo contextual/global[...]O feminismo pós-colonial[...] O feminismo internacional[...] O feminismo religioso[....] O feminismo pós-bíblico[...] O feminismo crítico-libertador[...](FIORENZA, 2009. p. 76-80). Obviamente, se temos um problema global, precisamos de uma solução global. Entendendo que cada parte é fundamental nesse processo, desde que o particular não se universalize como a ―única teoria ou teologia‖. Na visão de Fiorenza uma teologia feminista emancipatória, necessariamente precisará ser ―multireferenciada‖. IV.CONSIDERAÇÕES FINAIS Historicamente pudemos constatar que o imaginário feminino tanto no período medieval, quanto no moderno, determinou desde as relaçõs sociais, estruturação econômica, política e cultural das sociedades ocidentais, até às concepções filosófico- científicas e teológicas. E reincidentemente esse imaginário feminino foi misógino e responsável por toda sorte de violência contra as mulheres. 222 A história foi concebida por homens e a mesma Bíblia que nos mostra a presença expressiva das mulheres em seus ralatos, também demonstra,tanto em sua produção quanto em sua canonização, mecanismos de opressão e silenciamento dessas mulheres, legitimado pelas representações majoritariamente ―masculinas‖ do divino. A racionalidade moderna, que a rigor se estabelece sob a alegação da superação da ignorância e da superstição, propõe um novo e ―puro‖ conhecimento, o qual será o pressuposto da missionação civilizatória com o aporte da epistemologia carteziana. Todavia, conforme Fiorenza(2009), Santos(2006) e vários(as) autoras(es), dentre elas(es), Troch(2007) formam o consenso de que o modernismo não deu conta da complexibilidade humana e que é necessário uma crítica que vá além não apenas do pensamento moderno, mas, pós-moderno. A crise paradigmática que consistiu na caducidade do pensamento ―único‖, representada pelas graves consequências sociais e políticas ao redor do mundo, abre ―alas‖ para epistemologias emergentes, dentre elas, o pós-modernismo celebratório, o pós-modernismo de oposição e por fim, o pós-colonialismo de oposição. E é a partir deste último, que uma teologia feminista emancipatória é possível. A teologia feminista fiorenziana, é um convite à não apenas uma pluralidade epistemológica, mas também a uma ―empiria‖ ecumênica, que possibilita não só a convivência com diferentes paradigmas de análise, como também na substituição substituição por novos paradigmas. Em suma, a convivência na ―Casa da Sabedoria‖, não pressupõe papéis ―fixos‖, ―preceitos‖ absolutizados, só um tipo de música ou rítmos exclusivamente ―binários‖. Na Casa de ―Hokmá-SofiaSapientis‖, dança-se o tango com pés ágeis que transformam ―lugares em espaços‖. Dança-se com todo o corpo e a cada intervalo, grita-se pelo divino com linguagens diferentes. Dança-se e se pensa inteligentimente e tal ―inteléquia‖ é sabersaboreado, sensual e transgressor. Beleza não pura, mas simplesmente, feminina! 223 V. REFERÊNCIAS CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves, Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. pp.221-239. DUSSEL, Enrique. 1492 o encobrimento do outro: a orígem do mito da modernidade; conferências de Frankfurt. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis,RJ: Vozes,1983.pp.159-196. FIORENZA, Elisabeth Schüssler. Caminhos da Sabedoria: uma interpretação bíblica feminista; tradução Monika Ottermann, São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora,2009,256p. HAARDT, Maaike. O paradoxo mariano: práticas marianas como um caminho para uma nova mariologia? In FELIX, Isabel Aparecida(Org.). Teologias com sabor de Mangostão: ensaios em homenagem a Lieve Troch. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora,2009. pp209-223. SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura política.(Coleção para um novo senso comun; v.4).São Paulo: Cortez, 2006. SOVIK, Liv. Apresentação para ler Stuart Hall. In STUART, Hall. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; tradução de Adelaine La Guardia Resende [et all].Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil,2003. pp.9-21. TROCH, Lieve. O mistério em vasos de barro: fragmentos da divindade no âmbito de novas experiências de religião. In TROCH, Lieve. Passos com Paixão: uma teologia do dia-a-dia: tradução de Monika Ottermann, São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2007.pp.85-94. WILMES, Hedwig Meyer. Tango con Pasíon: memória como elemento central de uma hermenêutica do espaço. In TROCH, Lieve. Passos com Paixão: uma teologia do dia-a-dia: tradução de Monika Ottermann, São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2007.pp.15-34. Documento 2 - Lista de presença do 39º Concílio Regional da Igreja Metodista da 5ª Região Eclesiástica,2009. 224 GT 9: RESISTÊNCIA, ASSIMILAÇÃO E ACOMODAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE NOS INÍCIOS DA IGREJA Coordenação: Dra. Ivoni Richter Reimer Resumo: O tema abarca textos, iconografias e realidades dos séculos I-III, buscando perceber as dinâmicas e os jogos assimétricos de poder existentes nas relações político-sociais, religiosas e de gênero. Inseridos no imperial contexto ‗globalizante‘ romano, o movimento de Jesus e as igrejas originárias, num processo de continuidades e rupturas, vivenciaram e elaboraram diversas e diferentes posturas e estratégias de sobrevivência na construção de identidade e formas comunitárias. Estas têm às vezes simultaneamente traços contra-culturais, mas também de assimilação e de acomodação às novas realidades emergentes. Perceber a diversidade e a conflitividade na formação da Igreja nos inícios ajuda a entender seu desenvolvimento posterior, com reflexos e expressões na contemporaneidade. Palavras-chave: inícios da igreja, relações de poder, resistência, assimilação, acomodação, identidade. 225 O NEOMONOTEÍSMO JUDAICO-CRISTÃO NO FINAL DO SÉC. I DC DARLYSON FEITOSA108 "neomonoteísmo" é o termo aqui usado para expressar a inclusão do filho (jesus cristo) na linguagem sobre o divino, a partir de 70 dc. muito antes das controvérsias dos concílios ecumênicos dos séculos iii e iv, a epístola aos hebreus, considerada como um escrito do final do séc. i dc, já apresentava a controvérsia sobre a identidade do filho. Palavras-chave: Hebreus, identidade, teologia, neomonoteísmo. Resumo: "Neomonoteísmo" é o termo aqui usado para expressar a inclusão do Filho (Jesus Cristo) na linguagem sobre o divino, a partir de 70 dC. Escritos cristãos tardios começam a chamar Jesus explicitamente de ―Deus‖ (Jo 1,1.18; 20,28; Tt 2,13; 2Pd 1,1-2), promovendo, de alguma forma, a construção sócio-religiosa que se estenderá para os séculos seguintes, culminando nos concílios ecumênicos dos séc. III-V dC. A Epístola aos Hebreus, aqui considerada como um escrito cristão do final do primeiro século, é um exemplo de como as tensões intrajudaicas se apresentaram após o desastre nacional de 70 dC com a destruição de Jerusalém e seu centro cultual, o templo. Ou seja, muito antes dos embates teológicos sobre a natureza do Filho, que tanto permearam os concílios ecumênicos, temos em Hebreus declarações suficientes para apresentar a epístola como um dos primeiros documentos a desafiar ou propor uma alternativa para os judeus que se viam, tragicamente, sem a prova da intervenção ou socorro de Yahweh diante dos pagãos 108 Doutorando em Ciências da Religião (PUC Goiás). Email: [email protected] 226 romanos e seus muitos deuses. A ‗teologia da vitória‘109 estava em cheque, e séculos de esperança de um vitorioso retorno de Israel ao cenário político-militar, como nos dias de Davi, sucumbiam diante do poderio romano. Teoriza-se aqui que a apresentação de Jesus em Hebreus com a atributos antes só destinados a Yahweh é o ápice desse fervilhar sócio-religioso que se deu após 70 dC. Para se chegar a esse ápice, porém, é necessário que vários elementos conflitantes sejam observados. Juntos eles mostram a conflituosidade na formação da Igreja nos inícios. 1. O NEOMONOTEÍSMO A PARTIR DE UM CONFLITO DE NATUREZA GEOGRÁFICA Levando-se em consideração a possibilidade da Epístola aos Hebreus refletir o dinâmico pensamento das comunidades cristãs egípcias, teríamos uma profunda perspectiva de conflito geográfico nas eloquentes palavras do autor, dispondo situações distintas entre Alexandria e Jerusalém. Nas palavras de Hamman (1997, p. 23), ―se fosse possível provar a origem alexandrina da epístola aos Hebreus, teríamos nela o primeiro documento sobre a vitalidade intelectual da comunidade‖. Essa vitalidade intelectual não indica a priori um conflito geográfico, mas pelo menos emerge como possibilidade de se pensar numa produção literária de porte teológico intenso no Egito, como o é a epístola. Embora não argumentando em cima da origem alexandrina de Hebreus, Lutero argumentou sobre a autoria do egípcio Apolo (veja listagem dos argumentos em MONTEFIORE, 1964, p. 9ss). Contudo, mais do que Apolo, Hebreus tem sido ligada a Filo de Alexandria. A despeito de muitas diferenças entre os dois autores, Guthrie (1984, p. 39) observa que Tanto Filo quanto nosso autor, a despeito de seus métodos diferentes de exegese, compartilham de uma alta estima pelas Escrituras. Os dois usam exclusivamente a versão da Septuaginta e introduzem o texto com fórmulas semelhantes de citação. Além disso, há muitas palavras e frases significantes que aparecem tanto nos escritos de Filo quanto nesta Epístola. A relevância dos nomes fica clara em Hebreus 7.2 e esse é um tipo de dedução familiar para Filo. Os dois autores abusam em antítese tais como o contraste entre o terrestre e o celestial (cf. Hb 8.1ss; 9.23-24), entre o criado e o não-criado (9.11) e entre o que é passageiro e o que é permanente (7.3,24; 10.34; 12.27; 13.14). 109 A expressão ‗teologia da vitória‘ tem sido usada fundamentalmente para expressar a convicção de que a vitória (militar, econômica, psicológica, social, política) pertence àqueles que são amparados por Deus. 227 Esse suposto conflito geográfico poderia ser o solo para se entender ênfases textuais distintas e conflituosas, que acabaram por popularizar alguns escritos pseudepígrafos (p.ex. José e Asenate); também, a popularização de perspectivas apocalípticas e seus respectivos messias (Moisés, Enoc, Melquisedec), que acabaram por forçar uma listagem oficial de livros inspirados; perspectivas de gênero, que resultaram em explícitas inclusões de mulheres no arraial cristão (cf. cap. 11). De forma que não teria sido temeroso, para o autor, a inclusão de algo substancialmente mais forte: a antiga glória de Yahweh (desde o Egito), agora retornara em Cristo, expressão exata do seu Ser (1,3). 2. CONFLITO DE IDENTIDADE: PROPOSTA DE UMA RUPTURA Na epístola aos Gálatas, Paulo se serve de um hino para apresentar dentro de sua argumentação uma proposta de transformação radical na sociedade judaicoromana: ―não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus‖ (Gl 3,28). No entanto, alguns anos mais tarde, Paulo faz sua defesa diante do povo e das autoridades romanas (At 22 e 24) reivindicando a sua condição de judeu exemplar e de não ter ferido a lei e os costumes judaicos. O caminho de Paulo, em certo sentido, não era o de ruptura, mas o de conciliação. Caminho oposto propõe o autor de Hebreus. Este não vê possibilidade de conciliação ou de caminhada nos antigos moldes religiosos, propondo mesmo a ruptura. Essa ruptura é assim evidenciada: 2.1. Sob a ótica textual pós-70, o sacerdócio não mais existe. Contudo, o autor de Hebreus apresenta/propõe um novo sacerdócio: ―Ora, o essencial das coisas que temos dito é que possuímos tal sumo sacerdote, que se assentou à destra do trono da Majestade nos céus, como ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo que o Senhor erigiu, não o homem‖ (8,1-2). É fato que sob a ótica textual pré-70, tal declaração também é belicosa: um sacerdócio paralelo ao oficial está sendo declarado como verdadeiro. 2.2. O templo em Jerusalém mantinha com certa intensidade a lembrança da aliança de Israel com Deus. Para o autor de Hebreus o templo não é mais levado em consideração: ―Agora, com efeito, obteve Jesus ministério tanto mais excelente, quanto é ele também Mediador de superior aliança instituída com base em superiores promessas. Porque, se aquela primeira aliança tivesse sido sem defeito, de maneira alguma estaria sendo buscado lugar para uma segunda‖ (8,6-7). E, para deixar bem claro a sua opinião sobre o ritual do 228 sacrifício, diz o autor: ―é impossível que o sangue de touros e de bodes remova pecados‖ (10,4). 2.3. No período pós-70 o judaísmo tenta se reerguer com base escatológica (apocalipses – por exemplo, 2Bar e IV Esdras) e com base rabínica. Hebreus usa uma linguagem provocante ao comentar prováveis iniciativas rabínicas: ―Quando ele diz Nova, torna antiquada a primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e envelhecido está prestes a desaparecer‖ (8,13). 3. CONFLITO DE NATUREZA TEOLÓGICA O termo ―teológica‖ é aqui usado no sentido restrito: um discurso sobre Deus. Em que sentido se pode observar tal conflito em Hebreus? 3.1. Talvez a maior confrontação teológica que o autor de Hebreus provoca é o salto que ele propõe na forma de Deus se manifestar. O legislador declarara: ―Então, o Senhor vos falou do meio do fogo; a voz das palavras ouvistes; porém, além da voz, não vistes aparência nenhuma‖ (Dt 4,12). Contudo, a nova declaração é: ―... nesses últimos dias [Deus] nos falou pelo Filho‖, saindo do tradicional aniconismo (ausência de imagem de Yahweh) para a afirmação ―expressão exata do seu Ser‖ (gr. kharaktēr tēs hypostáseōs autoú – Hb 1,2-3). Yahweh, que por séculos participara apenas com sua voz, utilizando-se de mediadores proféticos, nesses últimos dias agira não somente de forma audível, mas também em carne e osso! 3.2. O cristão é desafiado a correr a carreira que lhe esta proposta ―com os olhos fitos em Jesus‖ (Hb 12,2). Para o autor, a peregrinação do fiel não é mais em direção ao sacerdote, mas em direção a Jesus, o leitourgós (oficiante) do verdadeiro tabernáculo (8,2). Se o templo não mais existe, o sumo sacerdote, ícone da religião oficial também não existe mais. Essa série de inexistências é contrastada com a série de existências. Não se sabe mais, depois do desastre nacional em 70 dC., onde se encontra o sumo sacerdote. Para o cristão, há um endereço certo do seu sumo sacerdote: ele está assentado à destra do trono de Deus (12,2). 3.3. Hebreus cuida do vocabulário: da religião técnica ou sombria de Jerusalém (Hb 9,7.25; 10,1.2), passa-se agora para uma religiosidade fraterna, onde os fiéis não são meros participantes, mas filhos de Deus (12,5-10). Nessa condição filial, os cristãos são, pois, configurados de modo absoluto numa perspectiva distinta do judaísmo farisaico, numa série de provocações. As declarações em 12,22-24 parecem querer provocar uma ruptura em definitivo com o judaísmo normativo (rabínico): monte Sião, Jerusalém, anjos, sangue, o próprio Deus. Tudo isso expressa o conteúdo do culto judaico, agora desafiado por uma 229 nova proposta, o culto cristão. O elemento ‗sangue‘, antes apenas derramado do corpo de um animal, agora fala até mais alto do que o sangue de Abel. Kistermaker (2003, p. 556) sugere que essa declaração sobre o sangue de Cristo se contrapõe ao fato que, na tradição veterotestamentária, o sangue de Abel pedia vingança, razão pela qual Caim foi amaldiçoado (Gn 4,10.11). O sangue de Cristo, ao invés de evocar vingança, promove a paz entre Deus e o ser humano.110 3.4. Essa nova disposição religiosa pode ter se constituído também em um conflito para as comunidades cristãs de origem judaica. Uma religião que fora erguida em cima da presença física do tabernáculo/templo precisava agora se erguer sobre um templo paradoxalmente imaginário e real, a igreja. O notório esforço do autor em argumentar com profundidade a realidade da prevalência de Cristo visa não somente ser vencedor nos conflitos decorrentes da diáspora forçada dos judeus pós-70, mas também ser vencedor em desfazer o conflito interno de pessoas formadas com uma mentalidade religiosa voltada para Jerusalém, para o templo, para os sacerdotes, para os sacrifícios. O desafio agora era convencer que mesmo sem Jerusalém, sem o templo, sem os sacerdotes, sem os sacrifícios era possível desfrutar de cada um desses elementos numa perspectiva diferente, mas provida de real sentido para aquela(s) comunidade(s) cristã(s). 3.5. Se for possível vislumbrar tal conflito geográfico-litúrgico, também é possível vislumbrar um conflito messiânico. Messías é um vocábulo exclusivo do evangelho de João no NT, mas Hebreus assume que o Cristo ressurreto é o verdadeiro sumo sacerdote, expondo seu serviço sacerdotal na condição de mesìtēs (mediador – 8,6; 9,15; 12,24), em antítese com a esperança messiânica sacerdotal, como por exemplo a de Qumran111. Adriano Filho (2005, p. 3ss) mostra como a literatura apocalíptica judaica vinha fomentando há algum tempo o messias sacerdotal, e como o cristianismo se apropriou dessa expectativa, canalizando-a para Jesus. Admitindo-se que tal ocorreu, configuraria-se, pois, o quadro conflitual escatológico: o fim de Jerusalém não é o fim – a caminhada (peregrinação) continua para os judeus, agora sob nova perspectiva, a de Cristo e para Cristo. CONCLUSÃO 110 É possível que a referência ao sangue de Abel possa ter alguma ligação com a literatura apocalíptica judaica. O Apocalipse de Moisés registra o sonho de Eva, no qual ―Caim bebia sem remorso o sangue de Abel. Abel lhe suplicava que ele deixasse um pouco de sangue, mas Caim não o escutou e bebeu o sangue inteiro; o sangue não se reteve em seu ventre e voltou a sair pela sua boca‖ (ApMo 2-4 – minha tradução). 111 1QS IX, 10b-11: ―E que eles sejam julgados de acordo com as disposições primeiras, segundo as quais os homens da comunidade começaram a se corrigir, até a vinda do Profeta e dos Messias de Arão e de Israel‖ (POUILLY, 1992, p. 92). 230 Retornando ao tema principal, podemos teorizar que todos esses conflitos são periféricos. Eles giram em torno de um conflito muito mais robusto, intenso, provocativo: Yahweh, que no passado se expressara com muito vigor contra imagens divinas, agora Ele mesmo se mostrara em carne e osso, no Filho. Talvez fosse mais ―tragável‖ um retorno ao politeísmo – Israel já conhecera isso em sua história. Mas o que Hebreus apresenta é o que chamamos de neomonoteísmo, onde o Deus invisível se corporifica por um momento, age no meio da comunidade, propõe uma nova aliança, um novo ritual não num monte fumegante, mas numa refeição comunitária e numa cruz. Por isso o autor não titubeia em afirmar que Jesus é: o Criador (1,2.8-10); objeto de adoração (1,6); eterno (1,8-12; 5,6.9; 6,20; 7,17.21.24.28; 9,12-15; 10,5-7; 13,8.20); santificador (2,11; 10,10.14); fiel (2,17; 3,2); Senhor (1,10; 2,3; 7,14; 12,14; 13,20); glorificado e honrado (2,7.9; 3,3 – cf. 1,3; 2,10; 9,5 e 13,21); o grande pastor (13,20). Mais um deus e uma heresia intrajudaica surgiam? Para o autor de Hebreus não. Por mais paradoxal que fosse ou parecesse, o âmago da questão permanecia igual, pois Yahweh era o mesmo: ―Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre‖ (13,8). REFERÊNCIAS GUTHRIE, Donald. Hebreus: introdução e comentário. Tradução de Gordon Chown. São Paulo: Mundo Cristão/Vida Nova, 1984. HAMMAN, A. G. A vida cotidiana dos primeiros cristãos (95-197). Tradução de Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 1997. KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento: exposição de Hebreus. Tradução de Marcelo Tolentino. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. MONTEFIORE, Hugh W. A commentary on the epistle to the Hebrews. New York: Harper; London: Black, 1964 (Black‘s New Testament Commentaries). POUILLY, Jean. Qumrã: textos escolhidos. Tradução de Benôni Lemos. São Paulo: Paulinas, 1992. Cadernos Bíblicos, vol. 55. REIMER, Haroldo. Corporeidade de Deus na Bíblia hebraica. Fragmentos de Cultura. Goiânia, v. 15, n. 1, p. 13-22, jan. 2005. 231 PATRIARCADO ROMANO versus PATRIARCADO PROTOCRISTÃO: APONTAMENTOS SOBRE PRÁXIS CONTRACULTURAL SARA DE SOUZA BRASIL RODRIGUES DE FARIA112 IVONI RICHTER REIMER113 Resumo: O texto pretende identificar, na macroestrutura do patriarcado romano, os movimentos de resistência de primeiras comunidades cristãs e seus reflexos nas relações familiares e de gênero, cujos desdobramentos atingem a organização da casa das pessoas que confessam Jesus de Nazaré como Messias. Ademais, analisa o processo de resistência cultural dos cristãos em relação ao sistema patri-quiriarcal em seus aspectos socioculturais e econômicos, que podem ser observados nas casas e na política tributária. Palavras-chaves: Patriarcado, Roma, cristianismos originários, contracultura Ao analisarmos as narrativas bíblicas torna-se imprescindível, para um estudo mais aprofundado, que se considere o contexto social e as relações econômicas, políticas e culturais dos protagonistas destes textos. Assim, na presente comunicação estudaremos o patriarcado romano como expressão de domínio e subjugação na macroestrutura do Império de Roma, e em contrapartida, buscaremos entender como pessoas cristãs conviviam com tal realidade instituída, ou como tentavam resistir àquele sistema político derivado da pax romana. Preliminarmente, necessário se faz nos situarmos no tempo e no espaço em que ocorreram os referidos eventos histórico-teológicos. O período histórico 112 Graduanda em Direito na PUC-Goiás e bolsista de Iniciação Científica (PIBIC), orientada pela profa. dra. Ivoni Richter Reimer. Email: [email protected] 113 Teóloga, doutora, professora na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Estudos da Religião (PUC Goiás), pesquisadora CNPq, pastora. Email: [email protected] 232 abrangido pela história social das primeiras comunidades cristãs refere-se ao primeiro século da era comum. Já em relação ao enquadramento sociogeográfico, as sociedades protocristãs estavam inseridas no Império Romano, sendo expostas às influências política, econômica e cultural de um sistema social que tinha como centro de poder Roma, seus césares e um sistema estruturado com funcionários em toda região imperial. A localização geográfica compreende toda a região em torno do Mar Mediterrâneo, mais precisamente da região que, vista a partir de Roma, cobre a Itália, a faixa litorânea da Grécia e da Ásia Menor, englobando também a Síria e Palestina (STEGEMANN, 2004, p. 14). A partir da pesquisa que estamos realizando, podemos ressaltar que o patriarcado, ao contrário do que o senso comum parece ter estabelecido, não era algo exclusivo da religião judaica, mas era um sistema vigente em todas as sociedades mediterrâneas, sendo agora sustentado ideológica e legalmente pelo Império Romano. Tal observação é pertinente para se desmitificar a idéia de que o patriarcado, com toda a sua conotação pejorativa, é fruto exclusivo da religião e cultura judaicas, o que constitui uma falácia em que transparece o antijudaismo e pressupõe a negação da matriz judaica do próprio Jesus. Neste sentido, seria mais correto dizer que ―também o judaísmo apresenta características patriarcais dentro do contexto histórico-político mais amplo‖ (RICHTER REIMER, 2006, p. 74). Depreende-se daí que também comunidades protocristãs, tanto em nível de sistema familiar quanto político-eclesial, viviam em contextos patriarcais, precisando assimilar, adequar ou transformar sua vida cotidiana com base na fé em Cristo e dentro das condições sócioculturais de seu tempo. Nesse sentido, o patriarcado romano com todas as suas formas de dominação e ocupação geopolítica, constituía a macroestrutura a partir da qual se organizava a vida, a convivência e a resistência da microesrutura representada, principalmente, pelas relações da casa e do trabalho. Dessa forma, diante do sistema de dominação patriarcal romana, o patriarcado judeu é um patriarcado de um povo subjugado, buscando sua sobrevivência social, religiosa e cultural, dentro de um contexto hostil, sendo, por isso, que o cristianismo pode ser entendido como ―um movimento de renovação intrajudaico que participa das estruturas patriarcais do judaísmo e que luta, como demais movimentos, pela vida e pela identidade dentro das condições do patriarcado romano‖ (RICHTER REIMER, 2006, p. 75). 233 A manutenção do sistema do Império Romano era possibilitada por meio de subsistemas que refletiam a estrutura hierárquico-patriarcal de dominação em todos os níveis, desde a política até as relações familiares. Diante disso, há que se lembrar que economicamente seu sistema era escravagista, cuja principal fonte era o endividamento e as guerras de ocupação e domínio, e que, além disso, o Império se mantinha pela instituição e manutenção de um sistema de impostos, taxas e pedágios, condenando os povos subjugados ao contínuo empobrecimento, desencadeando um processo de marginalização e exclusão dos menos abastados da sociedade romana (RICHTER REIMER, 2006, p. 138). Um dos poderosos aspectos do patriarcado era a conotação que envolvia o termo ―casa‖ (oikos). A casa patriarcal e sua propriedade era considerada célula básica da sociedade romana, e refletia a forma como era organizado e dirigido o próprio Estado romano. Assim, o governo de Roma é confiado a um homem que melhor saiba dominar a grande casa, que é o Estado, e tudo está arquitetonicamente elaborado com base em ideologias, como a de Cícero (RICHTER REIMER, 2006, p. 76-85). A família patriarcal romana tinha sua origem e base no casamento e na procriação de filhos legítimos. Grande valor era conferido à propriedade do patriarca, a qual recebia proteção do Estado. Aliás, a propriedade era fator de distinção social: somente os latifundiários e grandes comerciantes eram considerados cidadãos, sendo que a esta classe não pertenciam pessoas artesãs, diaristas e que exerciam outras profissões do chamado ―estrato inferior‖ (STEGEMANNN, 2004, p. 76-8). A própria idéia de democracia romana não tinha os contornos atuais, haja vista que aquela residia no fato de que a governabilidade do Estado deveria ser garantida por meio do exercício do poder e dominação de homens livres e proprietários. Para os romanos, a cogitação de um Estado onde houvesse igualdade e liberdade para todas as pessoas, inclusive de escravas e mulheres, consistia na própria imagem do caos.114 Ademais, as culturas mediterrâneas tinham como valores centrais a honra e a vergonha, sendo que a boa reputação social residia na forma como era estruturada a família e, sobretudo, na postura das mulheres. Nesse contexto, as mulheres pertenciam à esfera de poder do patriarca, e a honra da família estava também 114 A respeito de fontes e referências para essa afirmação, confira Ivoni Richter Reimer (2006, p. 82). 234 ligada à sexualidade da esposa ou da filha. Dessas mulheres eram exigidas a virgindade e a fidelidade conjugal, e qualquer atentado à sexualidade delas era tida como ofensa não à dignidade da mulher, mas à propriedade do patriarca. Além disso, a função da mulher no patriarcado era bem definida: ser mãe de filhos legítimos, preferencialmente homens, para manutenção do Estado romano. A partir desse contexto histórico-cultural maior, podemos partir para observações de posturas contraculturais percebidas no movimento judaico-cristão. Vimos que, para a ideologia dominante daquele período, a sexualidade estava ligada à procriação e à subserviência das mulheres aos homens, sendo que a reprodução das formas de dominação se dava primeiramente nas casas. Contudo, movimentos de renovação, como o movimento de Jesus, iniciam um processo de subversão à ordem do sistema também dentro das casas. Há mulheres, nas primeiras comunidades cristãs, como Tabita, Lídia, Maria de Magdala, Priscila e outras, que assumiram funções de liderança nas igrejas domésticas (eclesia en tô oikô)115, demonstrando outra forma de relacionamento entre as pessoas: não de subserviência e submissão, mas de solidariedade, respeito e dignidade de vida. Lembramos que foi o próprio Jesus quem questionou a família-célula patriarcal, ampliando o seu significado ao afirmar que seus irmãos, irmãs e sua mãe são todas as pessoas que fazem a vontade do Pai celeste (Mt 12, 46-50). A partir dessa nova concepção de família inaugurada no movimento de Jesus, temos que o casamento e a procriação não eram pressupostos para a realização plena de mulheres e homens. Por isso, é possível compreender a atitude de Suzana, Joana, Maria Madalena e outras mulheres que seguiam Jesus de forma independente, sem depender de homem algum (Lucas 8,1-3). Ao contrário, mulheres nas origens do cristianismo, conscientes e convertidas à mensagem libertadora de Jesus, trabalhavam para sua sobrevivência por meio de trabalhos artesanais e, para o Reino, por meio de trabalho missionário, a fim de construir e manter comunidades de fé e de acolhida. Lembremo-nos de Tabita, que em sua comunidade de casa produzia, juntamente com o grupo de viúvas, roupas para suas vestimentas (Atos 9); Priscila, cujo trabalho fatigante consistia na confecção artesanal de tendas e sua venda itinerante (Atos 18); Lídia, que junto com outras mulheres produziam e vendiam 115 A respeito do protagonismo de mulheres também na liderança eclesial, veja, p.ex., Ivoni Richter Reimer (2003). 235 tintas e tecidos de púrpura vegetal (Atos 16)116... Esses são alguns exemplos de mulheres que dedicaram suas vidas ao Evangelho e trabalharam dando testemunho de como viver de modo digno e independente, sem sucumbir à ordem opressora vigente. Podemos perceber, portanto, que o movimento de Jesus e, posteriormente, comunidades cristãs originárias se constituíam como células de resistência e de subversão dentro do sistema ideológico e econômico do patriarcado romano. Exatamente nesse contexto androcêntrico-patriarcal, textos evangélicos deixam transparecer a lógica do mercado que se baseia na ganância, no amor à riqueza, e que é denunciada pelo movimento de Jesus. Este amor à riqueza é considerado idolatria/ mammon (Mateus 6,24). Diante dessa realidade sócio- econômica repudiada por Jesus, é importante considerar que as comunidades protocristãs conviviam com uma situação desoladora de empobrecimento, oriundo de dívidas, guerras e impostos, e que dentro dela precisavam subsistir. A população de todo o Império Romano estava sobrecarregada de tributos. Por esse motivo, os publicanos/cobradores de impostos e pedágios eram odiados pela população, que além de conviver com a política tributária exorbitante, ainda era extorquida pelas práticas corruptas desses coletores de impostos, taxas e pedágios. Além disso, os publicanos eram, na maioria, judeus a serviço dos romanos, que através de ações dolosas de fraudes e de roubos vinculados à profissão, tais como sobretaxação e superavaliação de mercadorias, prejudicavam e até impossibilitavam uma vida digna para seus conterrâneos. Eram tidos, portanto, como religiosamente impuros. Personagem emblemático desse contexto é Zaqueu 117. Nele percebemos como a Boa-Nova trazida por Jesus mexeu com a estrutura até mesmo dos defensores e colaboradores do Império Romano. A narrativa de Lucas 19,1-10 nos mostra que Zaqueu, judeu e chefe dos cobradores de impostos, ao ouvir falar de Jesus, procurou conhecê-lo e, para tanto, embrenhou-se na multidão; porém, impedido de ver Jesus devido à sua baixa estatura, subiu em um sicômoro, árvore também baixa e fácil de subir. Com esse gesto de determinação, o publicano 116 Atos dos Apóstolos apresenta várias mulheres que se encontravam na liderança de igreja que reunia nas casas. Veja pesquisa realizada e publicada por Ivoni Richter Reimer (1995). 117 Sobre a narrativa bíblica acerca de Zaqueu, interessante conferir as reflexões de Ivoni Richter Reimer (2006, p. 152-155), sobretudo quando utiliza um recurso literário para nos apresentar o contexto da época. 236 chamou a atenção de Jesus que, levantando os olhos, o chamou pelo nome, dizendo: ―Zaqueu, desce depressa, pois é necessário que eu entre em sua casa hoje‖. E aquele homem malquisto por aquela multidão encheu-se de alegria e recebeu Jesus em sua casa. Aqui, podemos interpretar a palavra ―casa‖ de forma também metafórica. Era necessário que Jesus entrasse na própria vida de Zaqueu, marcada por aquele jeito romano de conduzir a casa - o Império - que à maioria explorava, escravizava, maltratava e impedia de viver em plenitude. Era necessário que Jesus mexesse profundamente com a estrutura da ‗casa‘ de Zaqueu, levando-o a mudar de direção, fazendo-o experimentar a salvação que se estenderia a muitas pessoas da Casa de Israel. Nesse relato, temos, portanto, também um testemunho significativo da negação e contraposição ao patriarcado romano. A partir dessa salvação/libertação experimentada por Zaqueu, ele se dispôs a entregar metade de seus bens aos pobres - o que consistia num gesto repudiável pelos romanos - e ainda restituir o quádruplo para as pessoas que tivesse fraudado, renunciando, assim, ao mammon e decidindo servir a Jesus. Essa devolução quádrupla em caso de roubo de meios de produção ou de produtos, no caso praticado pela coletoria e seus funcionários, está prevista na lei judaica (Êxodo 22,1; Número 5,6-7). Portanto, Zaqueu recorre a uma tradição de seu povo, retornando às suas origens religiosas e reorganizando a sua casa: do velho modo romano para o novo jeito judaico-cristão, baseado na justiça, na solidariedade e na valorização da vida. REFERÊNCIAS REIMER, Ivoni Richter. Vida de mulheres na sociedade e na Igreja: uma exegese feminista de atos dos apóstolos/Ivoni Richter Reimer. São Paulo: Paulinas, 1995. RICHTER REIMER, Ivoni. A economia dos ministérios eclesiais: uma análise de Romanos 16,1-16. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 13, n. 5, p. 1079-1092, 2003. RICHTER REIMER, Ivoni. Patriarcado e economia política. O jeito romano de organizar a casa. In: _____ (Org.). Economia no mundo bíblico: enfoques sociais, históricos e teológicos. São Leopoldo: CEBI/Sinodal, 2006. p. 72-97. 237 RICHTER REIMER, Ivoni. Perdão das dívidas em Mateus e Lucas – Por uma economia sem exclusões. In: _____ (Org.). Economia no mundo bíblico: enfoques sociais, históricos e teológicos. São Leopoldo: CEBI/Sinodal, 2006. p. 135-157. STEGEMANN, E.; STEGEMANN, W. História social do protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. Tradução de Nélio Schneider. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004. A IDENTIDADE DO CRISTIANISMO NASCENTE: UM OLHAR SOBRE O PAPEL DOS MÁRTIRES Eduardo Soares de Oliveira118 Resumo: o presente trabalho visa a partir de um olhar crítico sobre o papel dos mártires do início da igreja cristã,identificar como estes personagens contribuiram para o desenvolvimento e fortalecimento da identidade cristã inicial. pois neste momento a identidade vista enquanto processo de construção histórica, se dá por meio de um turbulento e denso momento socialmente controvertido e religiosoamente plural. Palavras-chave: cristianismo nascente, mártires, identidade, Ao tratar do martírio, especialmente enquanto fato histórico está se identificando um dos temas mais caros ao cristianismo, pois a atitude destes homens e mulheres que exerceram sua fé em nome de seu Deus, colaborou decisivamente para o fortalecimento deste movimento religioso messiânico (BOYARIN, 1999). O conceito de mártir, a partir do sentido original grego que pode ser traduzido por ―testemunha‖, lembra sua raiz latina (testis), ressaltando o posicionamento pessoal diante da situação eminente da morte durante a perseguição, o qual é classificado, segundo Shepherd Júnior (1981, p. 463), como ―aqueles homens e mulheres que testemunharam e defenderam até a morte a verdade evangélica cristã, obedecendo e seguindo para tanto o modelo de Jesus Cristo‖. Suas atitudes de fé para a comunidade vão adquirindo um caráter simbólico, a partir da experiência destes mártires, pois como lembra Croatto, ―na experiência do homo religiosus, o transcendente que o símbolo convoca não é objetivável nem definível racionalmente por palavras‖ (CROATTO, 2001, p. 87). 118 *Mestre em História pela UFG, professor da UEG-Quirinópolis, na área de História antiga e medieval, pesquisador de História do Cristianismo e Patrística. Email: [email protected] 238 Estes mártires-símbolos terão a função de ―introduzir valores, modelando os comportamentos individuais e coletivos‖ (BACZKO, 1996, p. 311), devido à sua forte representação social e, por que não dizer, política (WOODWARD, 1992, p. 125). Já para Daniel-Rops (1988, p. 186), este mártir, com seu exemplo testemunhal, sacrificial muito se aproximou da figura de um herói. Dentro de uma concepção da escatologia ética, desenvolvida por Dominic Crossan (2004, p. 323), ele busca demonstrar que ―Deus espera do cristão não uma posição passiva, mas de resistência aos males deste mundo‖, o que combina com o modelo de ―Identidade de Resistência‖ desenvolvido por Manuel Castells (2006, p. 25). O tormento sofrido pelos cristãos aliado à necessidade de lastros para a nascente religiosidade alicerça e delimita este momento na história do cristianismo, são reconhecidos como modelos para a comunidade. Temos, pois o martírio como fruto de perseguições, sendo que estas ajudaram a moldar a condição de crescimento e fortalecimento do cristianismo, como lembra René Girard (2004, p. 23). Podemos perceber que a teologia cristã desenvolveu uma postura referenciada a partir mártir e à situação de martírio, tendo importância vital neste processo de construção, expansão e consolidação da nova religião (STE. CROIX, 1981, p. 234; MOMIGLIANO, 1989, p. 25). Pois identificamos que estas perseguições e suas conseqüências, os mártires, foram um marco fundamental para a afirmação da nova fé, o cristianismo, dentro do Império Romano, pois segundo Jean Daniélou (1971, p. 298), ―o valor dos mártires revelou a vitalidade do cristianismo e foi o paganismo que teve de ceder, paganismo este que já não respondia aos sentimentos populares nem as crenças da elite‖. Ao observarmos estes mártires, identificamos a formação de uma identidade cristã, construída a partir da alteridade e do estranhamento, sendo assim impossível de se evitar o conflito, e utilizando-se deste para forjar tal identidade, já que se dá a partir da experiência social, já que segundo Silva (2000, p. 27), ―as identidades brotam do conflito‖. Assim, identidade ―é tanto simbólica quanto social‖ (WOODWARD, 2000, p. 10). Logo, é construída a partir de representações, pois ―inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito dando assim sentido à nossa experiência e àquilo que somos‖ (WOODWARD, 2000, p. 17). 239 Como processo cultural, esta identidade se dá obrigatoriamente de forma coletiva, ou seja, está inserida dentro da ação social, que segundo Weber, é aquilo que marca a conduta humana dotada de sentido, delimitando assim suas fronteiras simbólicas (WEBER, 1991, p. 3-16; HALL, 2001, p. 106), logo, envolve também relações de poder, pois ―a identidade marca o encontro de nosso passado com as relações sociais, culturais e econômicas nas quais vivemos agora... a identidade é a intersecção de nossas vidas cotidianas com as relações econômicas e políticas de subordinação e dominação‖ (RUTHERFORD apud WOODWARD, 2000, p. 18). Esta delimitação de uma ―Identidade Cristã‖ destes indivíduos, que neste processo estão afirmando as suas particularidades, neste momento especificamente religiosas, e declarando sua existência diferenciada ao mundo, traduz o imaginário cristão da época, pois ―é a tradução mental de uma realidade exterior percebida e liga-se ao passado de abstração‖ (LE GOFF, 1989, p. 28), além também é claro do processo de estranhamento, onde o afirmar é justamente por intermédio do que não é, pois ―a marcação da diferença é crucial no processo de construção das posições de identidade‖ (WOODWARD, 2000, p. 9). Esta identidade vista dentro da perspectiva do imaginário cristão, pode ser descrita em uma dimensão que atua como ―estruturante originário, onde esse significado-significante central é a fonte do que se dá como sentido‖ (CASTORIADIS, 1982, p. 175). Este mártir, devido ao seu caráter, é visto agora como líder profético, pois é encarado como uma referência, um líder a ser seguido, a partir do que este torna-se não mais simplesmente um homem, pois como lembra Raoul Girardet, ― perder-se nele é sem dúvida, renunciar a identidade individual e é reencontrar, ao mesmo tempo, a integralidade da identidade coletiva.‖ (GIRARDET, 1987, p. 79-80). Sendo assim, identificamos a possibilidade de se pensar a relação martirial, bem como a própria figura do mártir, enquanto presença identitária dentro do cristianismo nascente, tal qual seu ―intérprete profético‖ (GIRARDET, 1987, p.7 9), se vinculando a uma representação de ideal ético e religioso, do imaginário cristão com um marcante apego ao caráter carismático e dinamizador da fé cristã. REFERÊNCIAS 240 BACZO, Bronislaw. Imaginação Social. Enciclopédia Einaudi. Porto: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1996. V.5. p. 296-352. BOYARIN, Daniel. Dyng for God. 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Pergunta pela participação de mulheres em sinagogas judaicas, desvelando antisemitismos religiosos na história interpretativa cristã. Destaca a ambigüidade existente em normas judaico-cristãs sobre a presença e ausência, o silenciamento e a atuação de mulheres em ambientes sagrados. Resgata e visibiliza seu protagonismo a partir da análise de textos do Novo Testamento e de material epigráfico antigo. Palavras-chave: sinagoga, mulheres, interpretação, epigrafia, misogenia e antisemistismo religioso. Começo com duas citações que marcam nossa herança religioso-cultural no que diz respeito à relação entre igreja cristã e sinagoga judaica, bem como às relações de gênero concebidas em nível religioso. a) Toda manhã, o judeu praticante profere as palavras: "Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus, Rei do Universo que não me fizeste mulher", ao que a mulher deve proferir as palavras: "Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus, Rei do Universo, que me fizeste segundo Tua vontade". Esta oração judaica deve ser orada todos os dias, pela manhã. No Talmud de Babilônia - Tratado "Menachot" 43 B está escrito: ―O Rabi Meir disse: ‗O homem deve recitar três bênçãos cada dia, e elas são: Que me fizeste (do povo de) Israel; que não me fizeste mulher; que não me fizeste ignorante‘.‖120 b) Na formação teológica cristã, estamos perpassados pela seguinte compreensão: No Oriente, a mulher não participa da vida pública; o mesmo acontecia no judaísmo no tempo de Jesus [...] A mulher era obrigada a obedecer ao marido como a seu senhor e essa obediência revestia-se de dever religioso. [...] Das duas repartições da sinagoga mencionadas na lei de Augusto, sabbateîon e andrón, a primeira reservada para as cerimônias litúrgicas, era 119 Teóloga, doutora, professora na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Estudos da Religião (PUC Goiás), pesquisadora CNPq, pastora. Email: [email protected] 120 Estas citações foram extraídas do artigo da rabina Sandra Kochmann (2005), que compara essa bênção judaica com o provérbio helênico popular, citado por Platão e Sócrates: ―Há três bênçãos para agradecer o destino: a primeira - que nasci ser humano e não animal; a segunda - que nasci homem e não mulher; a terceira - que nasci grego e não bárbaro.‖ Esse tipo de mentalidade não era exclusivo do mundo judaico, mas fazia parte da ideologia patriarcal no mundo greco-romano do séc. I. 242 igualmente acessível às mulheres; em contrapartida, o outro lado, destinado às instruções dos escribas, só se abria para os homens e meninos [...] Segundo o Dt 31,12, as mulheres podiam, como os homens e as crianças, penetrar na parte da sinagoga utilizada para o culto, mas estacas e grades separavam o local que iriam ocupar. [...] No serviço litúrgico, a mulher comparecia somente para escutar.[...] O ensino também lhes era vedado. [...] do ponto de vista religioso, [a mulher] acha-se inferior ao homem. Somente a partir desta perspectiva da época é que podemos apreciar devidamente a posição de Jesus em face da mulher (Lc 8,1-3); Mc 15,41 e par. (cf. Mt 20,20) falam das mulheres que acompanhavam Jesus; trata-se de um fato sem precedente na história da época. (JEREMIAS, 1983, p. 473121 494, grifo meu). Estas são afirmações que encontramos constantemente em estudos bíblicoteológicos acerca do tema ‗Jesus e as mulheres‘. Eles são perpassados pelo esforço de tecer uma oposição básica entre a forma como ‗a mulher‘ era tratada ‗no‘ Judaísmo e como ‗a mulher‘ era tratada por Jesus, e extensivamente ‗pela‘ Igreja. Eu nasci dentro dessa tradição, nela estudei e me formei. Recém em meus estudos doutorais, na Alemanha (década de 1980), fui participando de debates e pesquisas que mostravam o quanto esta tradição é antijudaica e como ela sustenta posturas de discriminação e superioridade não apenas religioso-culturais, mas também político-sociais. Foi então e por causa disso, que busquei rever minha formação e reler minha tradição. Para isso, busquei perceber como mulheres estudiosas judias vivem e pesquisam suas próprias tradições religiosas, reinterpretando-as para suas vidas. Com elas passei a dialogar em minhas pesquisas e contatos, buscando desconstruir um tanto de ranço e antijudaismo presentes ainda hoje em pesquisas neotestamentárias. O motivo mais urgente de fazer este recorte de minha pesquisa doutoral foi encontrado na informação de Atos 16,13, que narra uma práxis missionária comum do apóstolo Paulo e de seus companheiros/as: em dia de sábado, na cidade aonde chegavam, buscavam contato com comunidade judaica no espaço sinagogal. O mesmo também ocorreu em Filipos, com o detalhe que ali se encontrava um grupo de mulheres! Toda discussão exegética resulta desse detalhe que ‗atrapalhou‘ a normatividade da estratégia missionária paulina: ali não podia se tratar de uma sinagoga, por causa da existência só de mulheres.122 121 Após as palavras citadas (―inferior ao homem‖), Jeremias (1983, p. 493, nota 151) menciona a oração diária que devia ser feita pelos homens judeus: ―louvado [seja Deus] que não me criou mulher‖, citando Tos. Ber. VII 18...] 122 Maiores e detalhadas informações, com referências, veja em meus textos de 1989, 1995 e 2004. 243 Passei a pesquisar, então, o termo proseuché, utilizado no texto para caracterizar o lugar onde se reuniram, em sábado, para celebração. Toda a literatura e todo o material epigráfico consultados, bem como o estudo de teóricos especialistas123 nesse recorte temático ‗sinagoga‘, permitiu defender que, em Filipos, as mulheres estavam reunidas para culto sabático sinagogal, ao qual se agregaram os missionários cristãos e no qual expuseram seu testemunho do Ressuscitado, alcançando a adesão das mulheres. As mulheres em Filipos eram convertidas ao judaísmo e, como tal, participavam de toda práxis religiosa judaica. Provindas do interior da Ásia Menor, itinerantes por causa de seu trabalho de manufaturas e venda da sua produção, participavam do movimento da diáspora judaica. Nela, em todos os lugares onde havia ou se assentava um grupo de pessoas judaicas ou simpatizantes, havia uma sinagoga que era caracterizada com o termo técnico proseuché, indicando para o ―prédio/a construção sinagogal‖, na qual se prestava o serviço divino, entre eles o culto sabático. Para desconstruir a secular história interpretativa de At 16,13, hostil à participação efetiva de mulheres na sinagoga, escavei arquivos e livros de inscrições encontradas em escavações arqueológicas a partir do séc. XVIII, revi literatura antiga, como o Antiquitates Judaicae de Josefo, e pude concluir que, na perspectiva da tradição exegética cristã, o termo técnico proseuché não deveria referir-se a uma sinagoga, porque ali estavam reunidas só mulheres e, no Judaísmo, mulheres não teriam tido voz e vez litúrgicas, porque não poderiam participar do minjan, etc. Tive que me debruçar, portanto, sobre este novo tema minjan, que a tradição exegética cristã sedimentou como sendo o número de 10 homens necessários para a realização de culto sabático sinagogal, referindo-se a textos talmúdicos. A pesquisa realizada encontrou uma série de textos talmúdicos que apresentam opiniões diferentes, porque a polifonia faz parte do Talmude, onde rabinos discutem sobre temas polêmicos. Se, de um lado, há a tradição talmúdica que só admite homens no minjan, também há a tradição talmúdica que admite crianças e mulheres nesse minjan;124 isto, porém, é silenciado ou desconhecido pela tradição exegética cristã. Se o próprio Talmude – compilado, aliás, no séc. III-IV – mantém essa diversidade de opiniões muitas vezes controversas, por que a tradição exegética 123 124 Veja, p.ex., M.Hengel (1971), A.T.Kraabel (1979), S.Safrai (1976), L.M.White (1987). Os textos estão descritos e comentados em Richter Reimer (2004, p. 1485). 244 cristã não o faz? At 16,13 é uma preciosa fonte para demonstrar exatamente que no judaísmo havia lugares e situações em que mulheres compunham o minjan e realizavam o culto sabático sinagogal! É com esta experiência religiosa que o grupo de mulheres em torno de Lídia passou a organizar a ekklesia judaico-cristã em Filipos, na casa de Lídia. De acordo com a rabina Sandra Kochmann (2005), que reconhece e sofre com as restrições e exclusões de mulheres judaicas, bem como de milhares de outras mulheres em todas as culturas, lugar e função de mulheres no Judaísmo é muito variado de acordo com o contexto histórico-social e político-cultural. Pelo que conhecemos de nossos textos sagrados, podemos dizer que eles são produzidos em contextos patri-quiriarcais. Por isso mesmo, é imprescindível observar, neles e a partir deles, processos de discriminação, marginalização e opressão de mulheres pelo fato de serem mulheres. Simultaneamente, porém, é preciso observar e analisar a presença da negação desse status sócio-cultural: perceber outras vozes, outras posturas que indicam para práxis e estratégias de resistência. Há que se nomear, portanto, experiências de opressão, de resistência e processos emancipatórios, bem como a reação a essa outra forma de se organizar. No que se refere à participação de mulheres em ambientes sagrados do Judaísmo e no judeu-cristianismo, há uma série de documentos que permitem entrever que a realidade talvez não tivesse sido tão ‗linear e certinha‘ como querem estudiosos conservadores, que continuam a influenciar a maioria de lideranças eclesiásticas. As tessituras da vida e da organização de mulheres deixaram marcas que deixam transparecer relações de participação e poder mais complexas e até contraditórias entre si e às ‗vozes doutas‘ que se apresentam tão uníssonas e aparentemente inequívocas. Como ignorar informações de Lc 2,36-38, que apresenta Ana como viúva e profetisa no Templo em Jerusalém, a qual ―não deixava o templo, ministrando125 jejuns e orações noite e dia‖? Como não perceber que a mulher encurvada, ―filha de Abraão‖, estava na sinagoga no sábado, quando se ensinava e celebrava culticamente (Lc 13,10-17), sem que ali se mencione um ‗lugar exclusivo‘ para mulheres? E por que fazer silenciar a participação ativa, plena e efetiva do grupo de mulheres que se reunia com Lídia em contexto cúltico sinagogal em dia de sábado? 125 O termo latréuo é usado para designar serviço religioso em lugar sagrado (RIENECKER e ROGERS, 1988, p. 107). 245 Suspeito que tudo isso faça parte de uma longa estratégia político-intelectual na invenção de um diferencial para destacar uma postura mais aberta, mais acolhedora, mais igualitária de Jesus na sua relação com mulheres em comparação com seus irmãos judeus, que sempre foi construída de forma negativa, ao invés de ter considerado as complexidades e ambigüidades das relações e dos contextos. Extensivamente, o que valeria para Jesus também deveria valer para a Igreja como representante desse ‗novo povo de Deus‘, em oposição à sinagoga. No entanto, enquanto essa ‗igreja‘ foi marginalizando e excluindo cada vez mais a participação efetiva e igualitária de mulheres e de outras minorias qualitativas, principalmente a partir do final do séc. I,126 comunidades judaicas, nos mesmos contextos e situações conflitivas, continuaram vivenciando e registrando também a presença de mulheres como líderes de comunidades sinagogais, apesar dos registros interditivos no Talmude. Percebe-se, portanto, uma situação muito similar entre mulheres judias e cristãs no que concerne à sua participação plena, igualitária e de resistência na igreja e na sinagoga, também após o Concílio de Jâmnia (80), que marca a separação entre igreja e sinagoga. Para visualizar isso, apresentarei alguns dados obtidos e analisados com base em material epigráfico e literário. Do lado cristão, temos informações que mulheres lideravam comunidades em toda região da Ásia Menor, durante os séculos II-III,127 passando, porém, a sofrer reprovação e proibição por parte de autoridades eclesiásticas. Do lado de comunidades sinagogais, temos informações de que mulheres exerciam lideranças cúltico-sociais, e com isso a documentação demonstra contradições internas e intrínsecas às realidades multiculturais existentes nas regiões mediterrâneas da Antiguidade. Aprendi e continuo aprendendo muito com minhas irmãs judias que, como eu, buscam reler e reconstruir suas próprias tradições. Com Bernadette Brooten128, fui percebendo embates e avanços na história de mulheres judias, engajadas e comprometidas com suas tradições religiosas, e que contribuem, ainda hoje, na 126 Veja ‗tábuas domésticas‘ (Cl 3, 18-4,1; Ef 5,22-6,9; 1 Pd 2,13-3,7) e textos semelhantes do final do séc. I (1Tm 2,8-15; 6,1-2) 127 O bispo Inácio de Antioquia escreve à Igreja em Esmirna, destacando a líder eclesial Távia pelo seu trabalho espiritual e social; o procônsul da Bitínia, Plínio o Jovem, escreve relatório ao imperador Trajano (por volta do ano 110), informando sobre mulheres escravas, que exercem o ministério diaconal em igrejas no interior da Ásia Menor; Tertuliano, por volta do ano 200, escreve contra os ministérios de mulheres nas igrejas; os Atos de Paulo e de Tecla (meados do séc. II) informam sobre o trabalho missionário de mulheres. 128 As imagens a seguir foram extraídas de sua tese doutoral publicada em 1982. 246 investigação histórico-cultural não apenas da participação, mas de contribuições que mulheres judias, como as cristãs, ofereceram à humanidade e que, muitas vezes, são relegadas à negação, ao silêncio e ao desprezo acadêmicos. São claras as evidências arqueológicas, epigráficas e literárias de que mulheres eram hierás ―sacerdotisas‖ ou archegissa/ archisynagogissa ―chefe/mãe de sinagoga‖ da mesma forma como homens eram hieréus ou archegos/archesynagogus ―chefe de sinagoga‖, como também o demonstram muitos textos evangélicos, como o que fala de Jairo (Mc 5,22 e par.). Para ilustrar e visualizar, apresento duas inscrições que evidenciam a participação e o trabalho de mulheres em contextos e comunidades sinagogais. A primeira (FIGURA 1) apresenta a inscrição tumular com os símbolos da menorah e do rolo da Torá, e nela está escrito: ―Aqui descansa Gaudência, sacerdotisa, 24 anos. Que o repouso dela (seja) em paz!‖ A segunda inscrição (FIGURA 2) atesta o trabalho de mulheres como ―presbíteras‖, conselheiras e anciãs que compunham, juntamente com homens, a gerusía ―o conselho dos/as anciãos/ãs‖.129 Traduzo: ―Repouso/túmulo de Rebeca, presbítera, que adormeceu‖. A morte é compreendida como sono e repouso. FIGURA 1: inscrição tumbar da sacerdotisa Gaudência Fonte: CII 315 (séc. III-IV). 129 130 Maiores informações, Brooten (1982, p. 41-42). Interpretação e história interpretativa em Brooten (1982, p. 75-76). Minha tradução do grego, como consta. 130 247 FIGURA 2: inscrição tumbar da presbítera Rebeca menorah [minha transliteração] Fonte: CII 692, em Brooten (1982, anexo IV). A história de releitura e reconstrução de nossa história e herança continua. Se pudermos fazer isso em conjunto com nossas muitas irmãs de outras culturas religiosas, melhor será. Em todo caso, bom será sempre ouvir delas antes de julgarmos que o ‗nosso‘ seja melhor... Como nós, em hermenêuticas de reconstrução criativa de nossas heranças, assim também as rabinas e judias religiosas buscam reconstruir não apenas sua história, mas também sua liturgia atual. Assim, ao invés de repetirem a conservadora oração/bênção matinal, como mencionada no início, elas e os homens rabinos e judeus com elas solidários, já reelaboraram essa oração/bênção, e dizem conjuntamente: "Bendito Sejas Tu, nosso Deus, Rei do Universo que me fizeste à Tua imagem", o que remete à nossa herança mítica comum que Deus criou homem e mulher à sua imagem e semelhança! Bendito será o dia em que também nós, em nossa tradição bíblico-religiosa, pudermos modificar textos como os de Cl 3,18-4,1; Ef 5,22-6,9; 1Pe 2,13-3,7; 1Tim 2,8-15 que reivindicam e legitimam, em nome de Deus, a submissão e subserviência de mulheres e outras minorias qualitativas em textos de estudo e tradições litúrgicas que denunciem a opressão e a violência contra mulheres, dizendo, p.ex.: ―Perdoa, 248 Deus do Universo, porque tendo-nos feito à tua imagem, transgredimos a tua vontade de igualdade, legitimando e causando dor, sofrimento e morte a milhares de mulheres nas casas e nas igrejas!‖ No sagrado espaço sinagogal, uma mulher doente! A atenção centrada nessa cena pode abrir percepção e sensibilidade na compreensão e revisão de epistemologias e metodologias na análise de textos e tradições sagradas. Foi isso que tentei esboçar nessa apresentação no IV Congresso Internacional em Ciências da Religião, na PUC Goiás. Espero ter contribuído na reflexão e na elaboração de pistas, referenciais e posturas hermenêuticas de suspeita, desconstrução e reconstrução de parte daquilo que também é nossa herança. É ela que também nos empodera! REFERÊNCIAS BROOTEN, Bernadette J. Women Leaders in the ancient Synagogue: inscriptional evidence and background issues. S.l.: Scholars Press, 1982. (Brown Judaic Studies, v. 36) JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário. Tradução de M. Cecília de M. Duprant. São Paulo: Paulinas, 1983. KOCHMANN, Sandra. O lugar da mulher no Judaísmo. Revista de Estudos da Religião, São Paulo, 2005 (online) RICHTER REIMER, Ivoni. Reconstruir historia de mujeres: reconsideraciones sobre el trabajo y estatus de Lídia em Hechos 16. Revista de Interpretacion Biblica Latinoamericana, Santiago/Chile, v. 4, p. 47-64, 1989. RICHTER REIMER, Ivoni. Vida de mulheres na sociedade e na igreja: uma exegese feminista de Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1995. RICHTER REIMER, Ivoni. Lembrar, transmitir, agir: mulheres nos inícios do cristianismo. In: _______. O belo, as feras e o novo tempo. São Leopoldo: CEBI; Petrópolis: Vozes, 2000. p. 61-78. RICHTER REIMER, Ivoni. Religião e Economia de Mulheres: Atos 16,11-15.40, Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 14, n. 8, p. 1475-1490, 2004. 249 MULHER, ECONOMIA E CULTURA NO CONTEXTO DE ATOS 16,11-15 LIA RAQUEL MASCARENHAS LACERDA131 IVONI RICHTER REIMER132 Resumo: A pesquisa neotestamentária pouco evoca a participação de mulheres em nível econômico e religioso. Atos 16,11-15 torna evidente a atuação de mulheres no trabalho público e no espaço sinagogal. As palavras do original grego, (proseuché e porfiropólis) integrantes do texto mencionado, serão analisadas em perspectiva lexiológica e histórico-social. O grupo de Lídia diz respeito a mulheres tementes a Deus que não faziam parte da origem judaica, mas aceitaram a fé do povo judeu, como também seus costumes. Como conseqüência, elas passaram a ser praticantes da espiritualidade judaica. Essa narrativa não engrenou totalmente à liberdade, já que posteriormente a história da Igreja passou por experiências de hierarquização patriarcal, mas reler esse acontecimento em Atos numa ótica de luta pela sobrevivência é desenterrar valores que nunca poderão ser desbotados. Palavras-chave: At 16, Lídia, Roma, sinagoga, economia, cultura Será com essa evocação que o presente texto fará uma leitura de resistência no contexto de Atos 16,11-15. A narrativa apresenta Lídia, vendedora de púrpura, mas antes de permear nessas linhas é necessário que seja entendido como funcionava o patriarcado em Roma. O patriarcado romano, portanto, é de dominação e ocupação geopolítica, de exploração de recursos naturais e humanos, de violência física, sexual e psicológica contra todas as pessoas, de expansão e construção na base do trabalho escravo e na imposição de impostos e tributos. Esse patriarcado é a macroestrutura, dentro da qual se organizará a vida, a convivência e a resistência a partir de microestruturas como a casa, a comunidade, a associação profissional. Esse patriarcado, não define apenas as relações em nível do macrossistema, mas também e principalmente a partir do microssistema, que se reflete principalmente nas relações de casa. (RICHTER REIMER, 2006, p. 74). Cícero, um grande ideólogo da teoria estatal romana afirmou a estrutura patriarcal de dominação.133 Há uma diferença entre a ética romana e a judaica nesse 131 Acadêmica de Direito (PUC/GO) e pesquisadora na Iniciação Científica (PIBIC-CNPq) com o projeto ―MULHERES PROTAGONISTAS NO MOVIMENTO DE JESUS E NOS INÍCIOS DA IGREJA‖, sob a orientação da profa. dra. Ivoni Richter Reimer. Email: [email protected] 132 Teóloga, doutora, professora na Pontifícia Universidade de Goiás, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Estudos da Religião (PUC Goiás), pesquisadora CNPq, pastora. Email: [email protected] 250 período: enquanto o ethos romano afirma a obediência submissa como ‗agradecimento‘ ao sustento garantido pela figura paterna, o judaísmo apresenta uma teologia, na qual os filhos devem honrar e respeitar pai e mãe. Diante das inquietudes da dominação dentro do sistema da pax romana, teceremos algumas considerações dignas de importância: a mulher aqui é mantida de forma invisível, oculta, geralmente ela não aparece a não ser as esposas em sentido patriarcal e legal, ao gerarem filhos legítimos como herdeiros. Em Cícero temos a afirmação que a mulher não era amada como os filhos; aos filhos era dado o ‗amor natural‘ e às mulheres (esposas) o ‗amor marginalizado‘. Fazendo um recorte histórico e ideológico nesse contexto, a Lídia de Atos 16 é oriunda da região no interior da Ásia Menor (Lídia) será chamada a fazer parte do palco de ousadia econômica e de luta contraposta ao patriarcado romano. Lídia veio de Tiatira, uma cidade do interior da Ásia Menor. A origem do seu nome é incerta, para alguns estudiosos pode ter sido a designação de sua cidade ou um nome comum para designar escravos. Seu envolvimento é destacado no desenvolvimento da missão e é uma das poucas mulheres mencionadas pelo nome no livro de Atos. A cidade à qual o texto de Atos se reporta é Filipos, cidade da Macedônia, colônia romana. Por pertencer a Roma é notório que as leis romanas a imperavam. Paulo e Silas depois de terem navegado de Trôade, seguido a Samotrácia, no dia seguinte a Neápolis e dali, chegarem a Filipos, vão até a um rio e ali encontram um grupo de mulheres reunidas, que são adeptas da religião judaica. Nas bíblias, essa informação do lugar ao qual se dirigem é traduzida normalmente como ―um lugar de oração‖. Lídia, temente a Deus, escuta a palavra anunciada e aceita a mensagem. Depois de ser batizada, ela e sua casa, solicitou enfaticamente: ―‘Se julgastes que eu sou fiel ao Senhor, então entrai na minha casa e permanecei.‘ E ela os forçou a entrar.‖ (Atos 16,11-15). O autor de Atos usa o termo proseuché para designar um espaço tipicamente judeu. A prouseché era uma construção sinagogal: um lugar destinado à celebração de cultos sabáticos, reuniões de oração e de estudo da Torá. (REIMER, 1995, p. 71). Muitas inscrições testificam comunidades judaicas em todo o território do Império Romano, desse aspecto foi retirado o teor da expressão no original grego proseuché. 133 A esse respeito, fontes, referências e discussão, em Ivoni Richter Reimer (2006, p. 72-97). As citações seguintes também tomam este texto como referência. 251 Lídia é o centro das atenções em Atos 16. Ela é apresentada como vendedora de púrpura (porfirópolis). Esse termo não aparece outras vezes na Escritura, sendo que é apenas utilizado nesta passagem do Novo Testamento. Pela pesquisa feita por Richter Reimer (1995), podemos considerar que a cor púrpura era retirada tanto da extração vegetal como da extração animal. A de origem animal resultava de determinados caramujos marítimos, encontrados apenas em alguns lugares. Essa púrpura era muito cara, era usada nos mantos dos reis e demais artigos de luxo. Na região da Ásia Menor, na cidade de Lídia, as pessoas retiravam cores de vegetais. Essa cidade era muito conhecida por suas tinturarias e foi dessa cidade que Lídia veio. Imitavam a púrpura extraída de animal. Nesta região a púrpura era retirada de uma planta chamada rúbia. O trabalho de Lídia e seu grupo era amplo, pois consistia em produzir a tinta, tingir lãs e roupas e vendê-las. Depois da ocupação romana da maioria dos povos em torno do Mar Mediterrâneo, aumentou o número de pessoas desempregadas, que migravam para as periferias das cidades e passavam a desenvolver toda espécie de artesanatos e manufaturas. É ali que se desenvolvia o pequeno comércio: a venda das mercadorias produzidas para sustento próprio. De acordo com Richter Reimer (1995), a análise de textos e inscrições do século I permite perceber que Lídia está inserida nesse grupo de gente trabalhadora, pois o seu árduo trabalho era realizado coletivamente por pessoas que se assentavam em algum lugar, nas periferias devido ao trabalho sujo realizado (com as tinturas) e trabalhavam todas juntas. Aproveitando esse segmento, é fato que a ―casa‖ de Lídia pode ser aqui interpretada no sentido de referir ao grupo de mulheres reunidas para a celebração das orações durante os sábado, que trabalhavam na extração da púrpura vegetal. Com isso, o texto relata a respeito de uma mulher que exercia liderança no trabalho e que era também líder de comunidade religiosa: ―Lídia Líder‖. Naquele contexto histórico não existia uma classe média, tal como a conhecemos atualmente. Havia a minoria rica e a maioria empobrecida. Dentro dessa maioria estavam aquelas pessoas que trabalhavam com pequeno comércio, artesanato e confecção de tecidos e outros artigos. Isto indica para a situação financeira de Lídia. Lídia pode ser contemplada como um exemplo vivo de resistência ao patriarcado romano. Numa sociedade em que o pater famílias exercia a função de 252 domínio e administração da casa e tudo que ele englobava, dominando assim a economia, a mulher de Tiatira é apresentada como negociante, vendedora de púrpura. Debruçar-se em tal fundamento é entender que ela não se rendeu às leis que excluíam as mulheres da economia. No aspecto religioso sua voz também pode ser ouvida, nos sábados, na proseuché, junto a um rio... Seja no trabalho público ou no espaço sinagogal, Lídia figura como representante protagonista de mulheres de seu tempo de forma autêntica e ousada. Ela não se permitiu calar frente à sociedade patriarcal romana. Apesar de posteriormente a igreja ter passado por processos de hierarquização patriarcal de poderes, sua atuação não será ofuscada, mas será trazida à memória toda vez que a relermos, analisarmos e atualizarmos. O legado dessa mulher sai de Filipos e chega até nós, mulheres e homens, mas ele não chega solitário. Um convite o acompanha: ―Entrai em minha casa e ficai‖! Ficai com a luta, com a liberdade sem medo, tingida de púrpura, no frescor de um rio... REFERÊNCIAS REIMER, Ivoni Richter. Vida de mulheres na sociedade e na Igreja: uma exegese feminista de atos dos apóstolos/Ivoni Richter Reimer. São Paulo: Paulinas, 1995. REIMER, Ivoni Richter. Religião e economia de mulheres: Atos 16,11-15.40. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v.14, n.8, p. 1475-1490, ago.2004. REIMER, Ivoni Richter. Economia no mundo bíblico: enfoques sociais, históricos e teológicos. Ivoni richter Reimer, organizadora. São Leopoldo: CEBI/Sinodal, 2006. p.72-95. 253 O ALIMENTO SACRIFICADO AOS DEUSES EM 1 CORÍNTIOS E AS ESTRUTURAS DE PODER DO IMPÉRIO ROMANO EVANDRO ARAÚJO BESERRA NETO134 Resumo: As ‗políticas‘ da Igreja e da cidade de Corinto se configuram ao redor da mesa, nos banquetes rituais e ali transparecem as estruturas de poder do Império Romano. Reconfigurar os seus assentos é reconfigurar ‗mundos‘. O comer e o beber sacrificados conferem nomia às ‗coisas‘ e às pessoas de Corinto; sustentam as pessoas e o ‗mundo dos homens‘ na colônia romana e no Império. A Ceia do Senhor, celebrada pela comunidade cristã, propõe uma releitura desses rituais e dos espaços que eles significam outorgando cidadania aos marginalizados. Palavras-chave: estruturas de poder, alimento sacrificado, Ceia do Senhor, identidade, 1 Coríntios. O presente trabalho trata das estruturas e das relações de poder da Igreja, como as percebemos em 1 Coríntios. Eu me aproximo do tema com base em um assunto específico da Carta: o comer e o beber sacrificados aos ídolos, porque esse ato ritual diz respeito, não apenas, ao contexto religioso de Corinto, mas também ao ambiente sócio-político do Império Romano. As ‗políticas‘ da Igreja e da cidade de Corinto se configuram ao redor da mesa, nos banquetes rituais, onde também transparecem as estruturas de poder do Império Romano. Assim, reconfigurar seus assentos é reconfigurar ‗mundos‘. Conhecimento e Liberdade são as lentes culturais, através das quais estão acessíveis os significados do alimento oferecido no mundo dos deuses, no mundo dos homens e na Igreja de Corinto. No mundo dos deuses, a comida oferecida aos ídolos nas festas populares e nos rituais de culto era um veículo de apropriação e criação de sentido para uma existência desgraçada por um sistema social injusto. A mística desse ato ritual funcionava como ‗válvula de escape‘ de uma realidade opressora. No mundo dos homens, o comer e o beber sacrificados eram uma das poucas ocasiões de congraçamento entre as massas (boa comida, algumas risadas, algumas brigas, sexo fácil etc). O comer e o beber sacrificados funcionavam como o ―pão e o circo‖, só que, nesse caso, o circo é divino. Seu poder é imenso e, por isso, era utilizado como política estrutural do Império Romano, como veremos a seguir. 134 Mestrando do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Ciências da Religião, da PUC Goiás, com orientação de profa. dra. Ivoni Richter Reimer. Email: [email protected] 254 Na Igreja de Corinto, os arquétipos do comer e do beber oferecidos aos deuses aparecem refletidos na Ceia do Senhor e nas estruturas hierárquicas da ekklesia. Quer-se repetir, nas celebrações da Ágape, o modelo dos cultos e associações populares pagãs. Tem-se assentos e comida diferenciados para ricos e pobres, sábios e iletrados, judeus e gentios, homens e mulheres etc. A Corinto dos meados do século I d.C. é uma cidade rica, interessante, cosmopolita, também porque a sua própria localização geográfica a favorece. Carrega suas heranças gregas e agrega, em 46 a.C., quando é reconstruída como província senatorial da Acaia, as influências romanas. Sua população é completamente miscigenada, tem gente de todo o mundo nela. Eles gostam de esportes, de filosofia, do Direito e do dinheiro. Para conseguir seus objetivos, os coríntios negociavam o favor divino com um dos deuses de seu panteão ou, com César, já que o culto ao imperador, valendo-se da máquina pública, embrenha-se rapidamente na colônia. O comer e o beber sacrificados estão na base de sustentação do Império. Eles fortaleciam o Estado, na medida em que legitimavam o poder do imperador, e as relações hierárquicas do Governo na vontade dos deuses. As estruturas hierárquicas de Roma eram patronais. O patronato representava uma rede de relações entre o imperador, os funcionários públicos romanos, os notáveis locais e as pessoas comuns. Essa política é baseada na troca de interesses e naquilo que hoje conhecemos como ‗tráfico de influência‘. Na base do patronato está o patriarcado,135 legitimando essas relações de poder desde a microestrutura familiar ate as macroestruturas do Império. Para fins didáticos, vale a pena imaginar a arquitetura de uma mesa redonda. Sobre o seu tampo (redondo), repousa o Império Romano, sustentando esse tampo (o Império) uma barra cilíndrica de ferro (o patronato), fincada em uma base circular plana (o patriarcado), que equilibra a mesa. O alimento oferecido aos deuses, nesse contexto, funciona como um espelho, por meio do qual é possível enxergar um reflexo do mundo dos deuses. Acontece que quando esse alimento sacrificado era tomado nos cultos e associações de Corinto, eles refletiam as estruturas hierárquicas do Império Romano, eles refletiam a ‗mesa‘. O comer e o beber 135 A esse respeito, veja fontes, referências e interpretação em Ivoni Richter Reimer (2006). 255 sacrificados aos deuses legitimavam as relações de poder do mundo dos homens, no mundo dos deuses. A ilustração da mesa ainda nos é útil para entender a estrutura das associações civis e religiosas do Império. Nesse caso, sobre o tampo (redondo) da mesa estão os patronos da entidade (a elite); equilibrando esse tampo está uma barra cilíndrica (os líderes), fincada a uma base circular plana (os membros comuns das associações). O problema era que a Igreja de Corinto estava repetindo esse modelo de dominação na Ceia do Senhor, o que fica claro na reprimenda de Paulo a seus integrantes, em 1Co 11,17-22. Por isso, a Igreja não conseguia se diferenciar das outras tantas associações religiosas da cidade, que também comiam e bebiam em culto às suas divindades. A Igreja de Corinto não se apresentava alternativa à sociedade de Corinto, porque ela repetia, na Ceia, as relações de poder do Império. Quais eram, então, os grupos sociais representados na Igreja de Corinto? Informações encontradas em escavações arqueológicas, em textos paulinos diversos e na própria carta aos coríntios nos permitem afirmar que a Igreja de Corinto era constituída por uma minoria de sábios, nobres e poderosos e uma maioria de ignorantes, marginalizados e excluídos. Trata-se dos fortes e fracos, de uma pequena elite e da ‗ralé‘. Havia ainda, judeus e gentios, escravos e livres, homens e mulheres. A cada instante esses grupos se enfrentam na Carta. Contudo, Paulo tenta demonstrar que na Igreja essas divisões não fazem mais sentido. Diferenças étnicas, culturais, econômicas e de gênero foram anuladas na Cruz. A política da Igreja é invertida. Sua mensagem é subversiva. Os fortes não devem sujeitar os fracos, o conhecimento de Cristo não liberta para que as pessoas se tornem reféns de seus caprichos, de lugares, ocasiões ou pessoas. O conhecimento por si mesmo torna arrogantes e destrói (1Co 8,1), o importante é ser conhecido por Deus (1Co 8,3)! É entender-se acolhido, aceito, salvo e amado pelo Senhor, que não faz acepção de pessoas. Nossa identidade não é mais com grupos sociais, mas com o Corpo de Cristo, com a Igreja do Senhor. A Ceia, enquanto alimento oferecido, também deveria funcionar como um espelho, mas um espelho, no qual as estruturas do Império Romano aparecessem invertidas. A arquitetura da ‗mesa‘ deveria ser refletida, no Reino de Deus, de ‗cabeça para baixo‘. Não eram os fracos que deviam suportar os fortes, mas o 256 contrário (1Co 8,9; 10.32). Antes de avançarmos nesta questão, intentamos uma leitura fenomenológica do comer e beber sacrificados em Corinto. O que subjaz ao comer e beber sacrificados aos deuses nos templos e nas festas populares de Corinto? Quer dizer, por que eles são capazes de criar e sustentar estruturas de poder tão eficientes? A leitura fenomenológica do comer e beber sacrificados vai à busca dos significados simbólicos que esse gesto ritual transmitia aos cristãos e pagãos em Corinto. O processo para a construção de sentidos é dialogal e compreende três momentos, segundo a teoria de Peter Berger (1985): a exteriorização, a objetivação e a interiorização. Na exteriorização, a pessoa efunde sobre a sociedade o que vê, sente e pensa sobre as coisas. Na objetivação, o produto da exteriorização apresenta-se como realidade às pessoas. A interiorização é a reapropriação das estruturas do mundo objetivo em estruturas do mundo subjetivo. Quando o processo de socialização é bastante bem sucedido, o indivíduo não só enxerga a realidade segundo as lentes do que aprendeu sobre o mundo, como também relaciona seus conhecimentos de forma a atribuir significados às instituições e as coisas que criou. É assim que, segundo concluímos, os significados do alimento oferecido aos deuses, no universo sacralizado de Corinto, conferem nomia às estruturas do Império, legitimando o poder do Estado e as relações sociais de Corinto na vontade dos deuses. Para que os cristãos vislumbrassem outra possibilidade de ser era necessário realizar a demitificação do universo sagrado de Corinto. Paulo trabalhou na demitologização do panteão greco-romano e de seu alimento ‗santificado‘, ao mesmo tempo em que investiu na mitologização do Crucificado e da Ceia do Senhor (1Co 10,1-14; 11). Paulo ‗mexeu no espelho‘. Ele trabalhou com a supressão, justaposição e a criação de mitos. Mas a mudança nômica não é coisa simples. Não basta conhecer os significados que os novos gestos e símbolos rituais querem transmitir para que ela aconteça. É necessário que eles sejam aderidos em fé. É necessário olhar para o espelho e crer naquilo que ele está refletindo... Analisando política e apocalipticamente a Ceia do Senhor, a partir dos elementos, gestos e contexto da Carta, percebemos que os elementos da Ceia são didaticamente invertidos por Paulo em 1Co 10. A menção do cálice é anterior à menção do pão, aludindo à idéia de que a comunhão no sangue de Cristo iguala as 257 pessoas cristãs e que a participação no pão as enxerta no Corpo. Na ‗memória‘ das ordenanças está a denotação política e apocalíptica da mensagem do Crucificado. Se no batismo todos foram mortos e ressuscitados com Cristo para uma nova vida, em um ‗novo mundo‘/na Igreja não fazem mais sentido as estruturas de domínio e as relações de poder partidaristas do Império Romano. Vive-se ainda neste mundo, em Corinto, mas, os cristãos experimentam (já, mas ainda não) uma realidade escatológica, a cidadania do Reino de Deus. Essa cidadania, como a Ceia faz lembrar a todo instante, liberta, confere voz e direitos aos excluídos, uma vez que considera os indivíduos não mais a partir de critérios de gênero, etnicidade, cultura ou propriedade, mas pela sua simples condição de ser! As discussões de gênero e de classes giram em torno da Ceia (do comer e do beber sacrificados - 1Co 11,2-16.17-22) no contexto da Carta, porque têm nele, naturalmente, seu centro gravitacional. Ao redor da mesa estão colocadas as políticas do Império. A Ceia contesta, subverte e rompe com essas relações. Ante ao exposto, concluímos que, de tempos em tempos, é preciso reescavar significados dos gestos memoriais que repetimos, muitas vezes, já tão roboticamente nas nossas igrejas. Dessa forma, podemos conhecer e redimensionar os espaços que temos ocupado no mundo, como pessoas cristãs. REFERÊNCIAS BERGER, L. Peter. O dossel sagrado. São Paulo: Paulus, 1985. BRAKEMEIER, Gottfried. A Primeira Carta do Apóstolo Paulo à Comunidade de Corinto: um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal, 2008. RICHTER REIMER, Ivoni. Economia no mundo bíblico: enfoques sociais, históricos e sociológicos. São Leopoldo: Sinodal; CEBI, 2006. 258 JESUS E A SAMARITANA: ELEMENTOS TEOLOGICOS E MISSIOLOGICOS PARA O AGIR E REFLETIR DA IGREJA NA E A PARTIR DA AMÉRICA LATINA EDER JOSÉ DE MELO SILVA136 Resumo: Nossa ação missionária e pastoral necessita de reflexão, mas não qualquer reflexao. O equilibrio entre o agir e refletir deve ser a busca constante para não cair no ativismo desordenado e desorientado,como também em uma contemplação distanciada da realidade. Busca-se neste trabalho refletir sobre o agir da igreja na américa latina, em seu contexto social, politico, econômico e religioso, uma reflexão biblica, relevante e pertinente. Percebe-se, no encontro de jesus com a mulher samaritana, alguns elementos teológicos, missiológicos e pastorais, que oferecem a igreja na américa latina fundamentos seguros para a ação e reflexão. Palavras-chave: missão, evangelho João, Jesus, mulher samaritana. CONTEXTO HISTORICO E CULTURAL O pano de fundo histórico, social e religioso, que influencia este texto, é riquíssimo sob diversos aspectos, sobretudo no aspecto sociológico, missiológico e teológico. O texto em si, pela sua composição e ação, destaca três questões relevantes e pertinentes, as quais se relacionam a três motivos pelos quais Jesus de forma alguma, segundo a cultura judaica, deveria ter iniciado a conversa com aquela mulher, quais sejam: o fato de ser uma mulher, de ser samaritana e ser adúltera. Este pando de fundo histórico, social e religioso, tem grande significado quando desvendado. Como os Judeus viam as Mulheres Elas eram desprezadas e discriminadas; não eram consultadas nem contadas. Nos dias de Jesus discutia se elas possuíam ou não alma. Os rabinos preferiam ―queimar as páginas da Lei, que ensiná-las a uma mulher‖ (CHAMPLIN, 1982, p. 329). Ensinavam que ―um homem não deveria entabular conversa alguma com uma mulher na rua, nem mesmo com sua própria esposa; muito menos com qualquer outra mulher‖ (CHAMPLIN, 1982, p. 329). Embora Moisés houvesse ensinado que as mulheres deviam ser honradas e respeitadas e o Antigo Testamento mostre que mulheres de grande valor desempenharam papeis 136 Bel. em Teologia pela FTSA de Londrina-PA, Mestrado em Teologia pela mesma instituição e Doutorando em Teologia pela SATS-South African Theological Semináry, Africa do Sul. 259 relevantes em Israel, com o passar do tempo, os rabinos formaram uma nova mentalidade com respeito à mulher, mais adequada aos povos visinhos, colocando o homem numa posição de superioridade e opressividade. Como os Judeus viam os Samaritanos137 Os judeus distorceram o conceito teológico da eleição, dando lugar a um sentimento de particularismo e favoritismo em relação aos demais povos, e em relação aos samaritanos ainda pior. O autor do livro de Eclesiástico 50,25-26 diz: ―há duas nações que minha alma detesta e uma terceira que nem é nação: os habitantes da montanha de Seir, os filisteus e o povo estúpido que habita em Siquém‖ (os samaritanos). Alguns fatos ocorridos nos dias de Jesus deixam evidente o etnocentrismo138 entre eles: Em Lucas 9,51-56, os discípulos desejam que uma aldeia de samaritanos seja consumida pelo fogo, simplesmente porque estes negaram hospitalidade a eles. Em João 8,48 Jesus é acusado de ser samaritano e possuir demônio, pois para os judeus Samaria era uma terra possessa por demônios e os samaritanos por serem hereges, eram todos endemoninhados. Na parábola do Bom Samaritano, quando Jesus perguntou ao escriba qual dos três foi o próximo do necessitado, o escriba não teve coragem de dizer ―o samaritano‖, mas sim, ―o que usou de misericórdia‖. Como os Judeus viam as Mulheres Adúlteras Se no trato com as mulheres já não havia tanta consideração, com as que se tornavam adúlteras a situação era bem pior. As mulheres adúlteras eram desprovidas de quaisquer direitos. Eram rejeitadas tanto no ambiente social quanto religioso. No caso do adultério, a Lei era distorcida em favor do adúltero, punindo somente a mulher. A Lei dizia em Levíticos 20,10 ―se um homem adulterar com a mulher do seu próximo será morto o adúltero e a adúltera‖. No caso relatado em João 8, percebemos claramente a parcialidade na aplicação da Lei, protegendo o homem e perseguindo a mulher. 137 Segundo E.Tognini (1974, p. 80), ―os samaritanos são o resultado do caldeamento entre os remanescentes de Samaria com os cananitas que se inocularam na terra, quando em 722 a.C., a Assíria destruiu as 10 tribos‖ 138 Segundo T.Paredes (1994, p. 101), etnocentrismo é o desejo de um grupo social ou uma nação de dominar os outros. 260 No caso de Lucas 7,36-50, vemos o fariseu discriminando a mulher que ungiu os pés de Jesus, por ser uma pecadora, provavelmente uma adultera ou prostituta. ANÁLISE DO TEXTO Jesus inicia o diálogo (4,9-15) Jesus está cansado139. Isto evidencia sua plena humanidade. Seu pedido, portanto, não é apenas um modo de iniciar um diálogo, um pretexto, mas uma necessidade real. A mulher se surpreende com o pedido de um homem judeu, pois ―os judeus não usavam vasos em comum com os samaritanos por medo de se contaminarem‖ (RIENECKER e ROGERS, 2000, p. 167). Jesus aproveita o momento e começa a evangelização da mulher, usando a água como metáfora. 140 A mulher não compreende, pois questiona como Jesus tiraria água não tendo um balde. Jesus se torna mais claro, porém novamente ela não compreende. Jesus aprofunda o diálogo (4,16-19). Ao perguntar pelo marido dela, Jesus, de forma direta aprofunda o diálogo, revelando um problema pessoal terrível daquela mulher, sua vida conjugal totalmente irregular, tanto no passado como no presente. A mulher admirada passa a ver Jesus não apenas como um judeu comum, mas agora o vê como um profeta, progredindo em sua compreensão. Ao reconhecêlo como profeta, ela o vê agora como um homem da religião. O termo propheteuo indica aquele que proclama ―o conselho e a vontade dos deuses, a respeito de uma situação presente, concreta e histórica, em resposta a uma pergunta específica do cliente‖ (COENEN e BROWN, 2000, p, 1878). A Mulher pergunta ao homem religioso (4,19-26). A mulher desvia o assunto da questão pessoal para a teológica, o lugar correto para adorar. Pode ser que ela quisesse mudar o assunto ou saber onde deveria ir para oferecer um culto correto e corrigir sua vida. Jesus aceita sua pergunta sem questionar a motivação e transfere a questão para o ponto fundamental, do lugar de culto para a natureza do culto. Jesus inaugura uma nova espécie de religião, de culto, simbolizada pelo vinho de Caná e pela água viva que ele oferece a Samaritana no poço de Jacó (DODD, 2003, p. 410). O termo ―kopiáo, labutar, ficar cansado de trabalhar‖, confira Rienecker e Rogers (2000, p. 167). C. H. Dodd (2003, p. 389-409) comenta sobre o simbolismo da água no Evangelho de João, especialmente na perícope que ele divide de 2,1 – 4,42. A água transformada em vinho; no diálogo com Nicodemos; Jesus e João batizando no Jordão 3,22-36 e aqui com a samaritana 4,7-15. 139 140 261 Percebemos então, uma progressão na revelação de Jesus àquela mulher. Primeiro ela vê Jesus como um homem, judeu, cansado que precisa de água e coloca de lado todas as barreiras sociais, culturais e de gênero para pedir sua ajuda. Em seguida ao inicio do diálogo, ela passa a vê-lo não apenas como um homem judeu, mas também como um profeta, um homem de Deus. E, por fim, Jesus se apresenta como o Messias, o qual, ela própria acabara de afirmar que estava aguardando. A atitude missionária da Samaritana (4,28-30). Diante da declaração de Jesus, ela não diz nada, mas o que ela faz tem um significado profundo. Ela vai a cidade convidar as pessoas a virem e conhecerem aquele que conhece a história pessoal de cada um e cada uma, que anuncia uma nova religião, a qual brota de um relacionamento pessoal com Deus, sendo Jesus, o Messias, seu mediador. Com seu ato ela demonstra sua fé. Sua alegria com a experiência foi tanta, que ela nem se quer leva o cântaro com o qual havia de levar água. Ao encontrar a Água da Vida, a água do poço de Jacó agora, é secundária, e a urgência do anúncio é tão grande, que levar o cântaro, poderia atrasar sua caminhada. A atitude anti-missionária dos Discípulos (4,31-38). A contradição entre a atitude da mulher e dos discípulos é evidente. Enquanto a mulher cresce em compreensão a respeito de quem é Jesus e sua missão, os discípulos ao verem Jesus conversando com ela, se escandalizam141 e temem perguntar qualquer coisa a Jesus a esse respeito, e iniciam a conversa com ele, insistindo que coma. ―Erguei os olhos e vede os campos, pois já branquejam para a ceifa‖ (v.35), disse Jesus a seus discípulos. ―Erguer‖ para ―ver‖. Para os judeus os samaritanos eram o joio, a erva daninha, a lavoura maldita, as mulheres nem deviam ser contadas e as adúlteras apedrejadas. Jesus, no entanto, leva seus discípulos a olhar para os muitos samaritanos que trazidos pela mulher, estavam vindo para ouvi-lo, como sendo eles o trigo, o bom fruto. O reencontro de Jesus com seus discípulos torna-se então, uma oportunidade pedagógica de treinamento missionário para a missão transcultural. O Grande Encontro (4,39-42). O drama começa com diálogos individualizados de Jesus, primeiro com a mulher samaritana, depois com os 141 A expressão grega denota ficar atônito, maravilhar-se. A surpresa surge porque Ele estava falando com uma mulher. Isto era impróprio, especialmente para um rabino (RIENECKER e ROGERS, 2000, p. 167). 262 discípulos, e culmina com um grande encontro, onde se acrescenta os habitantes da cidade. A mulher Samaritana, Jesus evangeliza e ela se torna uma missionária entre seu povo. Com relação aos discípulos, Jesus confronta seu espírito sectarista e prepara-os para a evangelização dos samaritanos. Agora, Jesus, os discípulos, a samaritana e os moradores da cidade, passam dois dias vivendo em plena comunhão, e, paulatinamente mais e mais samaritanos vão crendo em Jesus. Soter ton kosmon, Salvador do mundo: O termo soter ton kosmon era aplicado ao imperador romano e a seu culto (RIENECKER e ROGERS, 2000, p, 168). Assim, a confissão de fé dos samaritanos, era perfeitamente compreensível aos leitores Efésios e toda Ásia Menor, visto ser naquela época, um dos maiores centros de culto ao imperador. Jesus é o soter ton kosmon verdadeiro Deus Salvador, portanto, superior ao imperador romano, o que dá um tom subversivo a tal declaração. ELEMENTOS TEOLÓGICOS E MISSIOLÓGICOS E SUAS IMPLICAÇÕES IMPLICAÇÕES TÉOLÓGICAS Eleição e Serviço. A narrativa do encontro de Jesus com a samaritana, sobre tudo quanto a reação dos discípulos, demonstra claramente, através dos aspectos culturais, que os judeus compreenderam de forma parcial e, portanto, incompleta, a doutrina da eleição. Segundo Blauw (1962, p. 23), ―Israel não é tanto objeto da eleição divina quanto sujeito do serviço exigido por Deus à base da eleição... Assim: não há serviço mediante eleição, antes eleição por causa do serviço‖. Desta forma, nós como povo de Deus latino americano, somos a semelhança do povo judeu, eleitos por Deus para servir a toda humanidade, a partir da América Latina, sem distinção de raça, gênero, condição social, etc. Embora haja os privilégios da eleição, o momento agora é de serviço, de ir ao encontro, principalmente daqueles e daquelas que estão à margem da sociedade; ultrapassando barreiras, não apenas geográficas, mas também sociais, de gênero, etc. Divino e Humano. O evangelista narra a humanidade e divindade de Jesus Cristo. Sua divindade Ele declara a samaritana e sua humanidade fica exposta em seu cansaço, sua fome, e no fato de pedir ajuda, demonstrando sua dependência. A igreja em missão por sua vez, precisa estar cônscia de sua natureza humana, de 263 suas carências, e da necessidade que ela tem de outros agentes humanos, para o cumprimento da sua missão. Nós cristãos e cristãs latino americanos, necessitamos da ajuda de outros, no sentido de nossa própria existência, bem como para realizar nossa missão. A consciência de nossa humanidade e com tudo que ela significa, nos tornará mais humildes, sabendo de nossa missão não apenas para o mundo, mas também com o mundo. Tanto a teologia, quanto a missiologia, depende de outras áreas do saber humano, tais como a psicologia, pedagogia, sociologia, antropologia, etc, para que nossa tarefa seja frutífera. Charles Van Engen (1996, p.75), falando sobre o ideal invisível e a realidade visível da igreja, disse o seguinte: ―A igreja não é o que vemos; ela é santa, mas pecadora; una, mas dividida, universal, mas individual, apostólica, mas impregnada das estruturas de pensamento de sua época‖. Esse dualismo muitas vezes nos choca. Somos exigentes e perfeccionistas, e por isso, muitas vezes frustrados. É saudável para nosso equilíbrio compreendermos as limitações e fraquezas de nossa humanidade e da humanidade da igreja. Revelação e Compreensão. Jesus parte do comum para o especial, de forma clara o objetiva, de modo que aos poucos, a samaritana vai crescendo em compreensão. Primeiro ela vê Jesus como um judeu; depois como um profeta; e por fim, como o Messias. Assim, nós cristãos latinos americanos, somos convidados pelo evangelho a conhecer melhor aqueles e aquelas com os quais trabalhamos, no sentido de apresentarmos o evangelho a partir da realidade deles. O vocabulário, nossa apresentação, precisa fazer sentido para os ouvintes. A tarefa da evangelização e discipulado exige, por parte da igreja, a compreensão que ela é dinâmica e progressiva, o que pressupõe dedicação de tempo, reflexão e paciência. IMPLICAÇÕES MISSIOLOGICAS Etnocentrismo e Discipulado. Como a missão de Jesus é missão para todos e todas, Jesus passa por Samaria não apenas no objetivo de evangelizar os samaritanos e samaritanas, mas de confrontar os discípulos com alguns preconceitos impeditivos à missão. Entre os judeus comuns, judeus religiosos e até mesmo entre os discípulos de Jesus havia um racismo rigoroso e pernicioso. Tal visão impedia que os samaritanos fossem vistos como um campo fértil a ser 264 semeado, que uma mulher pudesse dialogar com um homem em público e que uma adúltera pudesse ser tratada com dignidade. ―Erguer‖ para ―ver‖. Para ver com clareza é preciso erguer os olhos, tirá-los das questões de menor importância. Do sectarismo, do bairrismo, do machismo, do falso moralismo, do legalismo. Os grandes centros urbanos da América Latina estão repletos de tribos urbanas, marginalizadas, que carecem de uma ação missionária no estilo de Jesus com a Samaritana. Grandes bolsões de miséria e pobreza que desafiam a ação pastoral e missionária da igreja. Há muitos grupos sociais que estão se aproximando deles, ONGs e ações do Governo. A igreja pode aproximar-se e juntar-se e esses grupos, não para competir, mas para, em plena cooperação, cada uma na sua parte, minimizar o sofrimento das grandes massas empobrecidas de nossas cidades. A formação etnocêntrica dos judeus deixou marcas profundas nos discípulos de Jesus, os quais tiveram dificuldades de se livrar do etnocentrismo e cumprir a missão para todas as pessoas e todos os povos. Esse etnocentrismo judeu está muito próximo de nós. Não só no sentido da nossa etnia, mas também de nosso grupo social, familiar, eclesial, etc. Temos muita dificuldade de conviver com o outro, principalmente quando esse outro, é diferente de nós. Culto e Missão.142 Neste assunto, há dois pontos a serem considerados neste encontro entre culturas: (i) à pergunta da Samaritana sobre o lugar correto de adorar a Deus e a resposta de Jesus questão para o primário e deixando de lado o secundário; (ii) a peregrinação de Jesus com seus discípulos em Samaria termina em um verdadeiro culto na cidade de Sicar, ou seja, a missão conduz ao culto. A América Latina espera por uma igreja que saiba separar entre o primário e o secundário, como disse Russel Shedd (1994, p. 1), ―o desafio do século XXI certamente será distinguir entre o dispensável e o essencial‖. No processo de evangelização e discipulado, urge que se fixem os olhos no que é essencial e se feche para o que é dispensável ou secundário. Neste processo de ultrapassar barreiras culturais, sociais, de gênero, de gerações, litúrgicas e tantas outras, devemos cuidar para que nossas formas litúrgicas, dogmas eclesiásticos e outras questões, que muitas vezes se tornam ponto de divisão e de beligerância, sejam colocados no devido lugar, para que o objetivo missionário seja alcançado, sem que 142 J.Fonseca (2003) discute muito bem este assunto às p. 213-234. 265 a Palavra de Deus seja colocada de lado. Na questão do lugar de adoração, vemos que tanto judeus como samaritanos, dogmatizaram o assunto, sem que o Pentateuco, em parte alguma, fizesse tal afirmação. A missão levada a efeito redunda em culto a Deus, como disse Orlando Costas (1979, p. 150-1), ―o culto está intrinsecamente relacionado com a ação de Deus na história e a conversão das nações ao Deus Trino e Uno. O culto é o resultado espontâneo da experiência da redenção‖. Foi o que ocorreu em Sicar. O culto faz parte da missão, é o seu fim e ao mesmo tempo, o combustível para o recomeço: ―missão sem culto é com rio sem mar. Ambos são necessários. Sem um, o outro perde seu significado‖ (COSTAS, 1979, p. 150-1). O verdadeiro culto é o resultado da revelação de Jesus como o Messias, ―o salvador‖, em nossa vida pessoal, que se expressa na comunidade onde vivemos, em direção a missão ao ―mundo‖. O verdadeiro culto possuir uma dimensão vertical, cristocêntrica, e horizontal, missionária, soter ton kósmon. Vocação e Obediência. A atitude da Samaritana e dos discípulos em face à revelação de Jesus Cristo é significativa. Aqueles que já estavam a tempos com Jesus, naquele momento, se opunham a obediência missionária, por questões culturais e de gênero, que neste caso, representam aqueles que são ordenados e a estrutura eclesiástica estabelecida em contrapartida com os leigos e a missão. A Samaritana, que neste caso representa os leigos e os novos movimentos missionários, não considera absolutamente nada a não ser a grandeza da Pessoa e obra de Jesus e sai a convidar pessoas para conhecê-lo. Percebe-se na América Latina, uma facilidade dos novos crentes em obedecer ao chamado de Jesus para a missão, bem como uma resistência dos mais experientes, em caminhar nesta direção. As antigas estruturas eclesiásticas têm dificuldade de apoiar movimentos missionários e de se amoldar a eles. Cria-se então, diversos conflitos, os quais muitas vezes terminam em divisão.143 Com este drama, aprendemos que é preciso se aproximar de Jesus e da samaritana, e ver o que ele tem a dizer, quando acontecimentos estranhos a esses sistemas estão ocorrendo. Valdir Steuernagel (1993, p. 93) compreendeu muito bem este relacionamento entre missão e o Espírito Santo quando afirmou: ―missão compreendida numa linguagem pneumatológica, é um só ato com duas facetas: é 143 Sobre a questão do leigo, pode-se pesquisar em Bosch (2002), p. 558-64; Cook (1998) p. 156-60 y Roldan (2003) p. 103-30. 266 primeiro, perceber o sopro do Espírito e a sua direção. E, depois, é correr na direção em que o Espírito está soprando‖. REFERÊNCIAS BLAUW, J. A natureza missionária da igreja. São Paulo: ASTE, 1966. BOSCH, D. J. Missão transformadora. São Leopoldo: Sinodal, 2002. BROWN, C.; COENEN, L. (Eds.), (1983). Dicionário internacional de Teologia do Novo Testamento. (Vol. 3). São Paulo: Vida Nova, 1983. CHAMPLIN, R. O Novo Testamento interpretado. (V. 2). São Paulo: Milenium, 1982. COOK, G. Evangelização é comunicação. Campinas: United Press, 1998. COSTAS, O. Compromiso y misión. Buenos Aires: Editorial Caribe, 1979. DODD, C. H. 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São Paulo: Louvores do Coração, 1974. 267 GT 10: DEMANDAS HISTÓRICO-SOCIAIS E CUIDADO ECOLÓGICO NA TRADIÇÃO BÍBLICA Coordenação: Dr. Haroldo Reimer Resumo: A Mesa Temática busca enfocar a emergência de um pensamento ecológico na tradição bíblica, tanto em seus textos originais (Antigo e Novo Testamento) quanto em seus desdobramentos interpretativos na histórica da transmissão e recepção. Corolários: textos bíblicos e cuidado ambiental; militarismo e consciência de proteção ecológica; afirmação e superação do antropocentrismo; gratuidade e inclusividade; ética da responsabilidade. 268 GT 11: TRADIÇÃO HEBRAICA: HISTÓRIA, EMERGÊNCIAS E ACOMODAÇÕES CULTURAIS Coordenação: Dr. Haroldo Reimer e Drando. Claude Detienne Resumo: O foco da Mesa Temática está voltado para a configuração da tradição hebraica, ressaltando as emergências próprias e as acomodações culturais e religiosas em decorrência de processos históricos mais amplos no contexto do Antigo Oriente Próximo ao longo do primeiro milênio a.C. Corolários: interpretação de textos e outras produções e representações culturais da tradição hebraica (iconografia, arqueologia, etc.); empréstimos culturais, recepção crítica e acomodações; hibridismos; imbricações com a cultura oriental e helênica. 269 GT 12: SOFIA COMO BUSCA DAS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS EM CORINTO Coordenação: Dr. Joel Antônio Ferreira Resumo: Os ―fortes‖ (senhores, masculinos, gregos, romanos, judeus, ricos, filósofos), entre os coríntios, consideravam-se superiores ao mundo e também em relação aos cristãos menos sofisticados. Também dentro da comunidade eclesial tinha os ―fortes‖ os ―perfeitos‖ Julgavam-se livres para fazer tudo o que queriam: nada atinge o seu ―Ego‖ (1 Cor 6,12; 10,23). É este tipo de ―liberdade‖ que eles praticavam, sem pensar nos outros. Mas para Paulo só existe a liberdade que serve ao próximo e edifica a comunidade. A ―liberdade para‖ é absoluta. È determinada pelo conteúdo concreto do ato de amor que faz o bem ao irmão e à comunidade toda. Optando pelos ―fracos‖, os da margem, o Apóstolo vai sugerindo aos grupos que saiam do ―sistema‖ greco-romano. Palavras-chave: Sofia, fortes, fracos, transformação 270 A SOFIA, A PARTIR DOS FRACOS DE CORINTO, NO DEBATE COM A FILOSOFIA GREGA Joel Antônio Ferreira Resumo: Os epicureus, os estóicos, os cínicos, os hedonistas, os neoplatônicos representavam a filosofia grega no tempo de Paulo Apóstolo. Ele fracassou no diálogo com eles. Sobreviveu dentro do império romano escravagista. Porém, não o aceitou e o criticou. No seu plano evangelizador, propôs uma Sofia que partia dos ―fracos‖ e marginalizados. Estes eram o retrato do Crucificado. Por isso, podiam compreender e viver a Sofia que era o cerne de Jesus Crucificado e Ressuscitado. Este, diferentemente do pensamento grego, trazia a verdadeira liberdade que não existia para a grande população. A Sofia cristã, experimentada pelos fracos, é uma proposta transformadora da sociedade (1 Cor 1,18-28). Paulo, nesta opção pelos fracos, vai sugerindo aos grupos que saiam do sistema greco-romano. Abstract: The Epicureans, the Stoics, the Cynics, the hedonists, the neo-Platonic represented Greek philosophy in the time of Paul the Apostle. He failed in dialogue with them. Slavery survived within the Roman Empire. However, it was not accepted and was criticized. In its plan of evangelization, the Sofia proposed that stemmed from "weak" and marginalized. These were the picture of the Crucified. Therefore, they could understand and live Sofia who was at the heart of Jesus Crucified and Risen. This, in contrast to Greek thought, brought the true freedom that did not exist for the large population. The Christian Sofia, experienced by the weak, is a proposal to change society (1 Cor 1,18-28). Paul, in this option for the weak, suggests to the groups that they leave the Greek and Roman system. Palavras-chave: Sofia, fortes, fracos, transformação Keywords: Sofia, strong, weak, transformation 1 – Paulo, o universo greco-romano e os “fracos” Tomando por base um texto do Novo Testamento escrito, mais ou menos, trinta _______________________________________________________________ * Joel A. Ferreira é professor titular no Programa de Ciências da Religião (Mestrado e Doutorado) da Universidade Católica de Goiás. anos após Paulo, temos alusão a alguns desses grupos que teorizavam na gloriosa Atenas. Atos dos Apóstolos (At 17,16-33), conta que Paulo ―argumentava... na praça (agorá) todos os dias com os que se encontravam lá‖ (17,16). Em seguida, refere-se 271 aos filósofos ―epicureus‖ e ―estóicos‖ que disputavam com ele (At 17,18). Estas duas escolas, mais os ―cínicos‖ e os ―hedonistas‖, tiveram, como fundadores, alguns discípulos de Sócrates. Os epicureus, corrente da linha de Epicuro (341-270 a.C.), também chamados de ―filósofos do jardim‖, desenvolveram sua reflexão no sentido de uma busca unilateral do prazer (MONDOLFO, 1965, p. 334). Então, ―vivendo o momento‖, na linha de Epicuro, o ser humano possuia a capacidade de ―calcular o seu prazer‖. Não significava, necessariamente, conforme Gaarder (1999, p. 149-51), satisfação dos sentidos: a amizade ou a sensação vivenciada ao se admirar uma obra de arte também podiam ser prazerosas, como ter a experiência de buscar os ideais gregos do autocontrole, da temperança e da serenidade. Os estóicos (stoa = pórtico) consideravam que cada pessoa era um ―microcosmo‖, uma miniatura do ―macrocosmo‖. Daí, desenvolveram o conceito de um direito universalmente válido, o ―direito natural‖ que não se modifica no tempo e no espaço. Este direito vale para todas as pessoas, incluindo os escravos. O direito tem sua base na própria natureza (HIRSCHBERGER, 1965, p. 272-4). O próprio Hirschberger diz que o estoicismo teve forte influência no Direito Romano, porque vários juristas romanos aceitaram princípios do direito natural nas suas exposições jurídicas e os consideraram como a norma ideal para a interpretação do direito positivo. Principalmente, constitui o direito natural a base do direito internacional. Para eles, existia, apenas, ―uma‖ natureza (monismo). Gaarder (1999, p. 148-9) chama a atenção de que eles se tornaram ―cosmopolitas‖ e, por isso, eram abertos à cultura contemporânea. Também, preocupavam-se com a convivência entre as pessoas e interessavam-se pela política (MONDOLFO,1965, p. 341-2). Esta corrente teve interessante influência na cultura romana. Por exemplo, o filósofo, orador e político Cícero (106-43 a.C) que desenvolveu o conceito ―humanismo‖ (homem no centro), Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) também humanista e o imperador Marco Aurélio (121-80) fizeram parte desta corrente. No tempo de Paulo, a filosofia grega estava bem difundida, inclusive, em Tarso, sua cidade natal e em Corinto que disputava com Atenas, a hegemonia filosófica. Paulo teve contacto com o mundo da filosofia, pois Tarso, sua cidade natal, era um grande centro do estoicismo. Alguns vêem nos escritos do estóico romano Sêneca e nos de Paulo, muitas semelhanças. Eram contemporâneos. Provavelmente, nas esquinas e praças, Paulo escutou muitas teorizações provindas 272 de Sêneca. Basta lembrarmos-nos dos simbolismos das corridas para se chegar ao prêmio final ou, ainda, linguagens poéticas sobre a vida terrena e as vitórias que poderão advir. Também as comparações com as corridas e pugilatos (1 Cor 9,2427), que são expressão do pensamento moral de Sêneca e Paulo. Se Paulo teve acesso ao pensamento filosófico greco-romano, por que o grito contundente contra a sabedoria humana, já no primeiro capítulo de I Coríntios? Os gregos pediam sabedoria. Certamente, os cristãos enviavam cartas a Paulo pedindo que os orientasse com relação à sabedoria (pensamento) grega. Era o conflito com a filosofia. Como ser cristão diante de tantas linhas filosóficas? Como era uma metrópole das mais bem situadas, recebia todos os tipos de pessoas das mais diversas regiões, com características, por vezes, polivalentes, e, tantas vezes, ecléticas. Passavam por Corinto, portadores das mais diversas visões de mundo, pensadores itinerantes, filósofos consagrados, pessoas de ideais tão diversos, e também, proclamadores de vários segmentos religiosos. Era difícil para os moradores e trabalhadores locais, que viviam sob o jugo romano, absorver ou compreender aquelas novidades. Parece que, dentro das comunidades cristãs, algumas pessoas estavam constituindo grupos que, empolgadas pela filosofia, estavam rejeitando a fé com a sua dimensão da importância da cruz. A epístola não é uma crítica ao pensamento filosófico grego e romano. Porém, dentro da comunidade, aos que querem interpretar e atualizar a teologia, a partir da Sofia humana. A questão da Sofia era uma fonte de conflitos dentro dos grupos. Se os novos cristãos tivessem suas tendências filosóficas, se também, tivessem treinados na arte da oratória para a evangelização, não haveria tensões. Paulo não aponta tensão entre cristianismo e filosofia. O problema é que, conhecendo os pensamentos estóico, epicureu, cínico, hedonista e eclético, sendo treinados no sofismo, vangloriavam-se dos seus conhecimentos, arrogavam-se como mais preparados que muitos membros das comunidades e, então, naquela presunção, foram abandonando o tema forte e comprometedor do anúncio do Jesus da cruz. Tanto Paulo como a escola dêutero-paulina sempre deram importância à teologia da cruz (Gl 3,1; 5,1; 6,12; Fil 2,8; 3,18; II Cor 13,4; Col 1,20; 2,14). É uma atitude de fé no Jesus crucificado, a expressão viva da iniciativa bondosa de Deus. Paulo olha nesta perspectiva (CONZELMANN, 1965, p. 231-44). 273 2 - A sabedoria vem dos “fracos” Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Porque a tolice de Deus é mais sábia do quer os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens‖ (1 Cor 1,22-25). Estes versículos se encontram dentro de uma perícope (1,18-25) que trata da pregação da cruz como escândalo e loucura. Aqui está a reflexão de Paulo dos princípios da teologia da cruz. O autor usa uma variedade de antíteses: sabedoria (= Sofia) e loucura (= môría); força (= dynamis) e escândalo (= skándalon); forte (= ischyrós) e fraco (= asthenês). De um lado, está Deus com o seu projeto de salvação mediado pela cruz de Jesus, símbolo de loucura, fraqueza, impotência; do outro, o mundo como trincheira da negação, que desconhece o Criador e se afigura orgulhosamente como gestor auto-suficiente do próprio destino (BARBAGLIO, 1989, p. 183). Quando diz que ―os gregos andam em busca de sabedoria‖ (v. 22) denota que investigavam, interrogavam, inquiriam a respeito da verdade. Isto é validíssimo em qualquer tempo e época. A busca da verdade é o anseio de todo ser humano. Também os cristãos de Corinto tinham de buscar a sabedoria. Porém, o Apóstolo que veio de Tarso (centro importante dos estóicos), que esteve em Atenas (a glória da filosofia), que fundou comunidades em Corinto (que disputava a hegemonia da filosofia com Atenas), portanto, que respirou o pensamento filosófico da época, sente-se constrangido quando recebe informações de que, na comunidade, alguns se arvoram como detentores da verdade, recusando uma temática vital do cristianismo, que era o querigma do crucificado. Na perspectiva pensamental grega falar da cruz, como fonte da verdade, era uma loucura (môría), ―tolice‖, ―insensatez‖, ―insipidez‖, (v. 23d). De fato, nua e cruamente, os filósofos teriam muita dificuldade e até se assustavam com o anúncio de que um ―criminoso‖ assassinado na cruz trouxera a salvação a todos e que era ele a sabedoria de Deus (v. 24c). Portanto, entender o ―Cristo como poder de Deus e sabedoria de Deus― era algo insensato para a mentalidade intelectual grega. Era em 274 torno desta proclamação do Cristo crucificado que os gregos tinham dificuldade (BARBAGLIO, G. 1989). Como entender um Messias que morria, impotentemente, em vergonha (2 Cor 13,4)? Aqui, entra o ―apelo de fé‖ aos leitores da Epístola aos Coríntios, ―aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos‖ (v.24ª). A palavra môría (= loucura) é usada, inteligentemente, por Paulo, para reverter a reflexão. A loucura de Deus (v. 25) é o anúncio do ―Cristo crucificado‖ (v. 23b), ―pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens...‖ (v. 25ª). A expressão ―Cristo crucificado‖ é bastante amadurecida na epístola aos Romanos. Ali, o mesmo Paulo o apresenta como a nossa ―esperança‖ (Rm 8,24-25), porque é dele que vem a ―glorificação‖ (Rm 8,29-30) e a ―justificação‖ (Rm 3,24-28), e nele somos ―adotados‖ como filhos (Rm 8,15), porque foi na cruz que aconteceu a expiação pelos nossos pecados (Rm 5,11). Paulo prega o Crucificado como princípio da nova sabedoria cristã no meio dos problemas do mundo greco-romano (1 Cor 1,24). Ele vai apresentar o Evangelho como sabedoria, isto é, o crucificado é um princípio e um critério para o discernimento. A posição de Paulo, fixando a liberdade que vem de Cristo apresenta a ―sabedoria cristã‖, na analogia dos sábios filósofos estóicos que diziam: ―não me deixarei escravizar por coisa alguma‖ (1 Cor 6,12)! Ou então, ―não vos torneis escravos dos homens‖ (1 Cor 7,23). Paulo procura, de fato, mostrar que a Sofia se realiza na construção da comunhão nas diferenças (MURPHY O‘CONNOR, 1972, p. 14-18). Havia tensão de toda a sorte: judeus e gregos (1 Cor 1,18-31; 12,13), escravos e livres (1 Cor 7,21-23), homens e mulheres (1 Cor 7) e entre ricos e pobres (1 Cor 11,22). Como diz Horsley (2004, p. 239), ―o Evangelho de Cristo Crucificado é de fato uma absoluta tolice para a elite que se beneficiava da aterrorização romana dos povos subjugados por meio da crucificação de habitantes rebeldes das províncias e escravos intransigentes‖. Nestas diversas manifestações da luta de classes, Paulo anuncia a ―Sabedoria‖, isto é, o Evangelho que é o caminho excelente do amor. É esta palavra (amor) que complica e implica a vida de um ou mais grupos que viviam no jugo do modo de produção escravagista romano e dentro do pensamento grego. As relações humanas, políticas e filosóficas mudam completamente. 3 - A sofia parte da base: o “lugar social” dos “fracos” 275 Entender Paulo neste conceito revoluciona a prática do Apóstolo na formação das comunidades em Corinto. A nova concepção tem implicações sociais, políticas, econômicas, jurídicas, culturais, filosóficas, ideológicas e, fortemente, teológicas. Por isso, mais forte é entender o projeto de Paulo que anuncia o Evangelho aos habitantes de uma cidade cosmopolita como Corinto, transformando o conceito de ―Sofia‖. O importante é compreender que sua visão de ―Sofia‖ parte da base. O Evangelho é o anúncio da ‖sabedoria cristã‖, a partir dos ―fracos‖ capaz de orientar a vida nesta cidade cosmopolita. Suspeito que Paulo estaria sugerindo aos coríntios que saíssem do sistema imperial dominante e teorizassem, na práxis, uma nova filosofia para constituírem uma sociedade alternativa fundamentada em Jesus, o Crucificado e Ressuscitado (a nova Sofia). Precisa-se adentrar na intelecção da Sofia grega do 1º século para se entender o fascínio que a proclamação de Paulo exerceu sobre os gregos de Corinto, especialmente, os marginalizados. De fato, é intrigante perceber o salto que aqueles gregos, particularmente os da margem, deram para a adesão à nova sabedoria, ou seja, a cristã. Como Paulo sempre ligou a pregação à vida para formar comunidades, pode-se perceber as transformações acontecidas diante da Civilização Grega e defronte ao perigoso Império Romano. Se Paulo tocou nos problemas mais agudos da época (judeus e gregos, escravos e livres, ricos e pobres, homens e mulheres, fortes e fracos), é de se esperar a reação positiva das comunidades na ruptura com os modos de produção escravagista e o sistema da sabedoria grega que privilegiava alguns grupos. A epístola além de ser uma crítica pesada aos que querem repetir os padrões gregos ou romanos, é um anúncio positivo aos cristãos marginalizados. Estes não tinham espaço no império escravagista romano (HOUTART, 1982, p. 23ss; MADURO, 1983, p. 78ss). Eram sem nome, sem voz, sem vez. Não tinham vislumbres na civilização grega, pois esta era discricionária. Também, dentro do grupo cristão, estes excluídos se sentiam rejeitados, porque não imitavam o estilo dos membros da comunidade que copiavam o estilo da Sofia grega. Com este anúncio positivo, é de se supor que Paulo está propondo a saída dos cristãos de Corinto do sistema da sabedoria grega e dos modos de produção escravagista romano. Parece que o Apóstolo estaria propondo que os cristãos de Corinto deveriam, ao escutar o anúncio da cruz, como centro da sabedoria, compreender 276 que estavam constituindo grupos de uma sociedade alternativa ao sistema imperial romano e à civilização grega. É impressionante, como Paulo, séculos e séculos antes de Marx e Engels, antes de Lukács, antes do grupo de Adorno, Marcuse, Horkheimer, Benjamim, Habermas do grupo do Instituto de Pesquisa social e filosófico de Frankfurt (FERREIRA, J. 2009, p. 39-43), já tivesse intuído e praticado a reflexão e a práxis a partir dos marginalizados e escravos. Ele parte do judaísmo e se dirige àqueles que estão vivendo dentro dos conflitos e tensões das estruturas do sistema imperial escravagista romano e da mundividência grega. Isso é vital para se abordar uma leitura sociológica e filosófica dos textos paulinos. A civilização grega pedia Sofia (sabedoria) para se entender os rumos da sociedade. Paulo apresenta uma terceira via que assustava: Jesus Cristo Crucificado é a novidade que leva à liberdade (1 Co 1,23-25; Gl 5,1) dentro de um império estruturalmente opressor. A proposta transformadora da sociedade, ao ver de Paulo, vem dos ―fracos‖. É deste universo que surge o movimento popular de mudança. O dinamismo desta nova visão surge de outro tipo de sabedoria: o evangelho de Jesus Cristo (MEEKS, 1991, p. 24ss) é o poder capaz de libertar e de dar vida (1 Co 1,18-28). É possível viver uma experiência nova fora do sistema greco-romano. Optando pelos ―fracos‖, os da margem, o Apóstolo vai sugerindo aos grupos que saiam do ―sistema‖ greco-romano. A filosofia abstrata não estaria dando lugar a uma filosofia confrontada com a realidade, que parte da base (FERREIRA, 2005, p. 108-115)? Para terminar: a grande busca do projeto de Paulo, a partir da Sofia vem do Jesus crucificado. Se o império romano sobrevivia às custas do escravagismo, isto é, a grande massa não era livre, se a civilização grega privilegiava os livres e teorizava contra os escravos, o projeto de Paulo era o anúncio da liberdade (Gl 5,1.13) como expressão do crucificado. Diante da macro-estrutura, a liberdade deveria ser proclamada. Na micro, idem. Por isso, as pequenas comunidades cristãs deveriam ser exemplares na convivência social. Os ―fortes‖, entre os coríntios, consideravam-se superiores ao mundo e também em relação aos cristãos menos sofisticados. Tinham uma consciência e uma prática de classe que os colocava na busca da dominação e da destruição dos outros. 277 Também dentro da comunidade eclesial tinha os ―fortes‖. Estes consideravam-se ―perfeitos‖ conhecedores da revelação e cheios do Espírito de Deus. Julgavam-se livres para fazer tudo o que queriam: nada atingia o seu ―ego‖ (1 Cor 6,12; 10,23). Podiam fazer o que quisessem, sem olhar o bem da comunidade. É este tipo de ―liberdade‖ que eles praticavam, imitando a macro-estrutura grecoromana, que alijava os escravos e trabalhadores. Mas para Paulo só existe a liberdade que serve ao próximo e edifica a comunidade. A liberdade é absoluta. A ―liberdade para...‖ é determinada pelo conteúdo concreto do ato de amor que faz o bem ao irmão e à comunidade toda (MURPHY O‘CONNOR. 1972, p. 17-24). Então, os escravos que vinham para as comunidades, deveriam ser respeitados e assumidos por todos, porque, agora, a partir do anúncio da força dos fracos, uma nova sofia passa a ser um projeto novo. De fato, é intrigante olhar a compreensão da Sabedoria Grega em confronto com a Sabedoria dos ―Fracos‖. É quase, ontologicamente falando, um absurdo falar da Sabedoria que vem dos fracos. Podemos compreendê-la, a partir da visão ―teológica‖ de que o Crucificado opta pelos pequenos, pela perspectiva ―filosófica‖ de que a Sofia tem como nome Jesus crucificado e pela ótica sociológico-conflitual, ou seja, Paulo e seu grupo projetam uma sociedade alternativa à sociedade imperial dominante. Esta Sofia deveria mudar as estruturas do mundo a partir da prática dos ―fracos‖. REFERÊNCIAS ANDERSON, Ana Flora e GORGULHO, Gilberto. Paulo e a Luta pela Liberdade. São Paulo: s/e, 1988. BARBAGLIO, G. As Cartas de Paulo (I). S. Paulo: Loyola, 1989. COMBY, J. & LEMONON, P. Vida e Religiões no Império Romano no Tempo das Primeiras Comunidades Cristãs. São Paulo : Ed. Paulinas, 1988. CONZELMANN, H. Paulus und die Weisheit. NTS 12, 1965, 231-44. FERREIRA, Joel Antonio. Gálatas: a Epístola da Abertura de Fronteiras. S. Paulo: Loyola, 2005. (Comentário Bíblico). FERREIRA, Joel Antonio. Paulo, Jesus e os Marginalizados Leitura Conflitual do Novo Testamento. Goiânia: Ed. da UCG e América, 2009. FERREIRA, Joel Antônio. Primeira Epístola aos Tessalonicenses, Petrópolis: Vozes, 1992. (Comentário Bíblico). GAARDER, J. O Mundo de Sofia. S. Paulo: Cia das Letras. 1999. HIRSCHBERGER, J. História da Filosofia na Antiguidade. S. Paulo : Ed. Herder, 1965. HORSLEY, Richard A. Paulo e o Império: religião e poder na sociedade imperial romana. S. Paulo: Paulus, 2004. 278 HOUTART, François. Religião e Modos de Produção Pré-Capitalistas. São Paulo : Ed. Paulinas, 1982. MADURO, Otto. Religião e Luta de Classes. Petrópolis : Ed. Vozes, 1983. MEEKS, Waine. Os Primeiros Cristãos Urbanos - O Mundo Social do Apóstolo Paulo. São Paulo : Ed. Paulinas, 1992. MONDOLFO, Rodolfo. O Pensamento Antigo Historia da Filosofia Greco-Romana. S. Paulo: Ed. Mestre Jou, 1965. MURPHY O‘CONNOR, Jerome. São Paulo e a Moral dos nossos Tempos. S. Paulo : Ed. Paulinas, 1972. WENGST, K. Pax Romana. São Paulo : Ed. Paulinas, 1991. A SIMBOLOGIA DAS RELAÇÕES DE PODER NA IGREJA DE CORINTO Israel Serique dos Santos144 RESUMO: No âmbito das realidades religiosas, podemos dizer que o carisma, o profetismo e o símbolo fazem parte não somente daquelas realidades pelas quais o fenômeno religioso é nutrido, mas também constituem-se em vias nas quais as relações de poder têm seu livre trânsito fixando padrões de conduta, valores e contribuindo para a manutenção do status quo de certos grupos que detém o gerenciamento destes capitais de valor simbólico do fenômeno religioso. No período neotestamentário, a pequena igreja cristã de Corinto – enquanto uma comunidade que fazia parte de uma cidade cosmopolita com fortes tensões sociais– passava por um momento de grande desafio à fé: ou ela mantinha-se fiel ao ideário de igualdade e solidariedade ensinado por Jesus ou, então, assumia os valores de uma sociedade que marginalizava seus cidadãos. Palavras-chaves: símbolo, dominação, ideologia. 1. A IDEOLOGIA DA ADMINISTRAÇÃO ROMANA No tempo do primeiro século o império romano foi aquele que teve, relativamente, sobre seu domínio aquela vasta extensão anteriormente conquistada pelo Império Grego. Sua origem aponta para os três povos dos quais este grande 144 Teólogo e mestrando em Ciências da Religião (PUC-GO). 279 império resultou, ou seja, italiotas, etruscos145 e dos gregos que habitaram na península itálica. Sua expansão territorial deu-se, em linhas gerais, primeiramente, com a dominação da península itálica. Já no século III a.C. através da liderança do general Aníbal os romanos vieram a dominar os cartaginenses e alcançar importante posição no mundo antigo, visto que esta vitória possibilitou sua hegemonia sobre o Mar mediterrâneo e regiões vizinhas. Tendo dominado Cartago, o império Romano seguiu o seu plano de expansão conquistando respectivamente a Grécia, o Egito, a Síria, a Palestina etc. Tendo sobre seu domínio tão vasto território, Roma tinha sobre si a grande tarefa de dar ao império o formato de algo coeso e administrável. O estratagema romano para este fim deu-se por várias vias. A primeira que podemos citar é que, na medida em que os exércitos avançavam havia a transmissão dos elementos culturais ligados à língua, valores, religião etc, de Roma. Em segundo lugar, as estruturas econômicas, sociais e políticas advindas com a presença das legiões,146 que se fixavam em determinadas cidade e davam o ar do modo de ser e viver romano, fomentavam o desenvolvimento da economia local e outros valores que contribuíam para que houvesse uma relativa aceitação da soberania romana ou, pelo menos, os benefícios de seu governo. Por fim, a presença física do exército impunha sobre as regiões sobre seus auspícios o clima de segurança, estabilidade e paz, diante das sempre eminentes possibilidades de revoltas ou invasões dos povos fronteiriços ao império. Sob este clima de paz o império romano estabeleceu sua hegemonia política, administrativa, fiscal e judicial, fixando-se sobre aquele extenso território conquistado.147 De fato, não há que se duvidar que as legiões e as outras estruturas do exército romano muito contribuíram para criar uma conjuntura favorável ao 145 Segundo Funari (2003, p.49) foi a chegada dos etruscos no norte da península itálica que muito contribui para formação do povo romano. Deste povo, em seu nascedouro, Roma assimilou suas instituições e formas de governo. 146 As legiões eram um agrupamento do exército romano composto de 6000 soldados, 120 cavaleiros, mais as esquadras e as tropas especiais (BORN, 1971, p. 878). 147 Wengst (1991, p. 63) afirma que a urbanização da população nas províncias bárbaras foi uma ação consciente dos imperadores romanos com vistas à pacificação do império. 280 desenvolvimento material das regiões conquistadas, a difusão da civilização romana e o clima de estabilidade e paz. Por estas ações administrativas o Império romano sempre se apresentou diante de seus súditos com os atributos de relacionados à glória, ao poder e à força. Suas insígnias, estandartes e presença de suas legiões em todo o vasto império deixavam às claras quem verdadeiramente tinha o poder de mando sobre os povos. Estes elementos nos apresentam como os imperadores romanos percebiam que embora não poderem estar, ao mesmo tempo, em todo vasto império, as representações simbólicas presentes em todo o território conquistado era um veículo eficaz de repasse da ideologia de dominação. Ora, ao analisarmos tais procedimentos político-administrativos, o que fica em relevo é que, na macro organização social são engendradas estruturas simbólicas de poder que naturalizam certas posições sociais de uns e justificam e legitimam o poder de mando de outros. Tal diferença fica muito bem indicada ou por aqueles que estão no poder ou por aqueles que o almejam,148 os quais criam mecanismos ideologicamente ―adequados‖ para que os componentes dos grupos sociais possam, além de saber a sua posição no grupo, perceber, também, como o outro está localizado na teia das interações sociais. Esta estratificação social, mediada pelos símbolos, ocorre no campo da subjetividade humana, no âmbito das questões relacionadas ao senso comum, ao capital simbólico de uma dada população e remete a mente do homem àquela idéia de hierarquias legitimamente estabelecidas. Nas palavras de Rocher: Na realidade, todas as hierarquias sociais são acompanhadas dum simbolismo muito rico, como se fosse particularmente alardear as distinções de posição e de poder. Quantos símbolos não há que exprimem as diferenças de classes, de estrados, de prestígio na sociedade! Tudo aqui toma o valor simbólico. O bairro, o tipo de casa o automóvel, a escola que os filhos freqüentam, as associações ou clubes a que se pertence, o vestuário, os lazeres, o local onde se passa as férias, a linguagem, tudo isso serve de indicador, de signo ou de símbolo do estatuto que se ocupa, do poder exercido, do prestígio que se goza.[...] (ROCHER, 1971, p. 172) 148 Refiro-me a exposição pública dos estandartes, insígnias e a presença das legiões e postos de cobrança de impostos, etc. 281 Nesta passagem Rocher deixa muito claro como ―todas‖ as hierarquias sociais possuem necessariamente um corpo de símbolos que tornam evidentes as diferentes posições que os indivíduos ocupam na sociedade. De fato, é pela via simbólica que toda relação de poder é mediada e o status social é legitimado e poder de mando é estabelecido Como exemplo disto podemos citar a questão fortemente ideológica que havia por de trás da pax romana. Esta que, embora desejada e louvado por aqueles que estavam no poder, dominava, afligia e matava uma parte considerável da população do império, ou seja, os escravos, as mulheres, os estrangeiros etc. De fato, não há que se duvidar que, uma era a pax romana propalada pelo Império como símbolo de estabilidade e prosperidade e a outra era aquela na qual as pessoas dos estrados mais baixos da sociedade foram postas como fundamento no qual tal sociedade injusta pôs seus fundamentos. Nas palavras de Wengst: O sistema de escravatura e a escravatura como sistema, escravatura elevada à potência como acontecimento natural – este cinismo dos dominadores torna claro que a liberdade da paz romana é, em primeira linha, liberdade romana... A liberdade romana e a paz baseada no poder das armas são, na realidade, dois lados da mesma medalha. A partir de Roma, do centro, podia-se falar sobre ―paz e liberdade‖ de modo diferente do que na província [...]. (WENGST, 1991, p.40) Portanto, o que se pode dizer que sociedade romana é que, em seu seio, de fato, havia um sistema social de dominação, exploração e morte. E tal sistema de coisas se fazia presente em todas as esferas da vida pública e privada de seus cidadãos, escravos e vassalos. A busca por status, prestígio e poder se encontrava tanto nas questões econômicas, políticas como também na religião. E, nisto, aqueles que manipulavam o capital simbólico detinham o poder de se perpetuarem nas posições de prestígio e mando. 2. CORINTO, A IGREJA CRISTÃ E AS RELAÇÕES DE PODER 282 2.1 Igreja de Corinto, uma comunidade em conflito Diante desta esmagadora conjuntura ideológica do Império Romano, era inevitável que a vida comunitária da igreja de Corinto não refletisse os mesmos valores e padrões de comportamento. A realidade da porosidade no tênue limite das relações entre os grupos sociais viabilizava não somente a mútua interação entre estes, mas também uma recíproca influência onde, geralmente, os mais fortes tendiam a impor seus valores sobre os mais fracos. Em termos práticos, tendo em vista nossa pesquisa, o microcosmo social da igreja corintiana tendia à reproduzir as mesmas tensões e dramas do macrocosmo social da cidade cosmopolita de Corinto. De fato, O potencial para dissensão na comunidade é evidente. Muitos Membros só tinham em comum o cristianismo. Diferiam bastante em instrução, recursos financeiros, formação religiosa, habilidades políticas e, acima de tudo, em suas expectativas. Alguns foram atraídos à igreja porque ela parecia oferecer-lhes um novo campo de oportunidade, em que era possível utilizar plenamente os talentos frustrados pela sociedade. Eram pessoas ativas e ambiciosas e não havia concordância entre seus motivos inconfessos. Desde o começo certo espírito competitivo fazia parte das características daquela igreja (MURPHY, 2000, pp. 279,280) Aqui, pois, está o grande desafio com o qual a igreja coríntia teve que se confrontar: ou ela mantinha-se fiel ao ideário de igualdade e solidariedade ensinado por Jesus ou, então, assumia os valores de uma sociedade que marginalizava seus cidadãos. Ora, segundo os dados que temos à nossa disposição pelos escritos neotestamentários, é certo que a comunidade cristã de Corinto assimilou para dentro de seu arraial as relações de poder existentes na macro sociedade imperial. A evidência contundente desta assertiva encontra-se no quadro recheado de conflitos os mais diversos, das mais variadas naturezas e motivos. 283 a) As divisões existentes decorrentes de partidos149 nos quais as personalidades de Paulo, Apolo, Cefas, e Cristo eram usadas com o objetivo de justificar e legitimar certas posições conceituais e de práticas (1 Co 1;10-13 e 1 Co 3;1-9). b) A super valorização da cultura grega em detrimento aos valores mais simples do Evangelho (1 Co 1;17-25). c) As impurezas sexuais, éticas, e religiosas, nas quais parte da comunidade corintiana estava envolvida. d) As questões culturais que eram motivos para divisão. e) Por fim, as questões relacionadas aos dons espirituais e suas respectivas funções e status na comunidade. Sendo assim, tendo-se este pano de fundo, pode-se perceber que, no contexto da igreja de Corinto, a glossolalia apresenta-se como mais um fator de tensão existente. Entretanto, sua especificidade e importância, neste artigo, justificase na medida em que esta mostra-se, no texto neotestamentário, como sendo de caráter profético, carismático e simbólico e ligada às relações de poder na igreja cristã de Corinto. 2.2. Glossolalia: o carisma do poder Um dos conceitos importantes que deve ser abordado quando se tem o objetivo de falar sobre o fenômeno religioso, é o conceito de carisma. 150 Neste, a idéia de um poder que quebra a rotina formal da vivência religiosa e transporta o fiel para o senso do sobrenatural que está inerentemente em certos indivíduos, 149 Quando falamos em partidos não estamos nos referindo a grupos institucionalmente estabelecidos e sim a grupos de indivíduos que compartilhavam dos mesmos valores e posições sobre questões relacionadas à moral, cultura, ética e religião na igreja de Corinto. Estes ―partidos‖, na verdade, eram tão somente expressões de uma comunidade na qual vários elementos assimétricos estavam presentes em seu seio. Não há nos textos bíblicos quais quer evidências que apontem Paulo, Apolo ou Pedro como fomentadores deste quadro de divisão interna da qual a igreja de Corinto padecia. 150 O termo carisma vem do grego charisma que quer dizer ―um dom, favor ‖. Tal vocábulo encontra as suas mais variadas vertentes de interpretação na teologia. Porém, o prisma pelo qual este vocábulo é abordado nesta presente dissertação é sociológico e aponta, a grosso modo, para aquilo que tem sua origem no homem e que, ao mesmo tempo, media as relações de poder, dominação e alienação. 284 concedendo-lhes qualidades excelentes e capacitando-os à obras prodigiosas, fazse presente. Nas palavras de Weber: ―Por carisma deve-se entender uma qualidade considerada como extraordinária [...] que é atribuída a uma pessoa. Esta é considerada como dotada de força e de propriedades sobrenaturais ou sobre-humanas, ou, pelo menos, excepcionais‖ (Weber apud Bourdieu, 1998, p. 92). Isto implica dizer, então, primeiramente, que o carisma está prenhe de significações que remetem a mente do crente a certos valores nos quais um indivíduo ou grupo carismático é posto em diferenciação dos demais de certo grupo social; visto que aqueles são qualitativamente diferentes destes, devido o carisma que possuem. Isto quer dizer que qualidades individuais são evidências claras e poderosas que o grupo religioso, embora seja irmanado pelos mesmos sistemas de crenças, rituais e símbolos, não é em tudo homogêneo. O carisma estratifica, 151 separa, divide aqueles que são, em tese, um só corpo na fé. Em segundo lugar, esta ideologia de diferenciação e separação qualitativa, geralmente, é uma via na qual as relações de poder são estabelecidas e a legitimação do status quo defendida como sendo algo ―natural‖, coisa que segue o curso normal de uma ordem pré-estabelecida por aquilo que é divino. Este carisma, segundo Weber está presente em indivíduos notáveis. Entretanto, como já foi indicado acima,152 entendemos que este conceito restringe este fenômeno apenas àquelas situações nas quais um indivíduo, emergindo em uma situação de crise, apresenta-se com possuidor daquelas qualidades necessárias para liderar e conduzir determinado grupo social. 151 Neste ponto não estamos negando o poder aglutinação do carisma e do carismático. De fato, o primeiro sentido que nos vem à mente quando falamos sobre este, é aquele relacionado ao poder de atração. Entretanto, sob a ótica da análise das relações de poder, o carisma também estratifica na medida em que projeta a personalidade de certo indivíduo ou indivíduos acima dos demais de um determinado grupo social, e por esta projeção as relações de poder são viabilizadas. 152 Refiro-me ao fato que o carisma pode se manifestar tanto no indivíduo, como também em uma classe seleta de pessoas que arrogam para si o status de possuidoras de determinados dons ou qualidades especiais advindas dos deuses. 285 Segundo aquilo que entendemos, e é proposta deste artigo, é preciso ver o carisma, também, como algo que se advoga para um grupo de pessoas. Ou seja, o carisma não é apenas individual, ele também pode ser coletivo, na medida em que um grupo seleto de pessoas afirma possuir as mesmas qualidades ou dons espetaculares e, com base nisto, afirma sua superioridade sobre as demais pessoas; buscando, pelo carisma comum, autenticar e justificar a posição de liderança e mando sobre os demais. Esta forma de ver o carisma trás luz sobre os fatos pertinentes à igreja de Corinto visto que aplica-se adequadamente à posição elevada na qual certo grupo de cristãos de Corinto apresentava-se diante dos demais da comunidade. Este grupo, denominados de ―espirituais‖, de fato, arrogava para si a graça de possuir o charisma da glossolalia e, por isso, e por este, consideravam-se melhores que o restante da comunidade. É neste sentido, então, que afirmamos que o carisma pode, também, estratificar. Sob a égide se serem dotados de determinadas graças divinas, qualidades excepcionais e sobre-humanas, tal grupo coríntio desqualificava o restante da comunidade chegando a dizer: ―não precisamos de ti‖ (1 Co 12,21) e ―não preciso de vós‖ (1 Co 12,21). Ora, tais asseverações desqualificantes tendiam a ter apenas um só objetivo: a manutenção de uma situação tal, na qual aqueles que se diziam possuidores de dons espirituais continuassem sendo vistos como cheios do poder divino, em detrimento de uma massa que vivia alheia aos favores e manifestações sobrenaturais da divindade. 2.3 Glossolalia: A profecia do poder Entre as muitas manifestações religiosas que traz consigo um forte apelo emocional e grande senso de autoridade está o profetismo. No imaginário 286 popular, a idéia com a qual o povo comum está acostumado é aquela que aponta para o profeta como sendo alguém capaz de prever o futuro.153 Entretanto, sob a perspectiva da sociologia e, em especial na visão de Max Weber, o profeta é considerado como sendo, o portador de um carisma puramente pessoal, o qual, em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandado divino [...] O profeta típico propaga a ‗idéia‘ por ela mesma e não – pelo menos não do modo perceptível e de forma regulada – por uma remuneração [...] Ele é chamado – nem sempre, mas em regra – para exercer cargo quando existem tensões sociais. Isto ocorre com muita freqüência quando se apresenta a situação típica, a mais antiga por toda parte, na qual se exige uma ‗política social‘ planejada: a diferenciação econômica dos guerreiros, em virtude da riqueza recente de dinheiro de alguns e da servidão por dívida de outros, e, além disso, um eventual contraste de aspirações políticas entre as camadas enriquecidas com atividades aquisitivas e a antiga nobreza guerreira [...] o profeta no sentido aqui exposto, está sempre ausente onde não há a anunciação de uma verdade religiosa de salvação em virtude de uma revelação pessoal. Esta constitui, para nós, a característica decisiva do profeta. (WEBER, 1999, pp. 303,304,305,307). Por este prisma, entretanto, o elemento preditivo não se constitui a grande característica do profeta, mas sim a vocação pessoal para anunciar uma verdade religiosa de salvação; e, certamente, associada ao carisma pessoal. Contudo, ao analisarmos o conceito típico154 de Weber logo percebemos que os elementos conceituais com os quais ele trabalha a questão do profetismo, deixa à margem outras formas de manifestações da religiosidade humana, também relacionadas à profecia e ao profeta. Especialmente aquelas nas quais as relações de poder, alienação e expropriação sócias são mediadas por aqueles que se dizem profetas ou, então, são reconhecidos como tal; o que inviabiliza um estudo crítico destas manifestações no âmbito religioso. 153 Como veremos abaixo, na religião judaica – onde YHWH é apresentado como uma divindade essencialmente ética – a profecia terá um caráter essencialmente revelacional, onde a vontade divina, que denuncia o pecado e as injustiças sociais, será verbalizada por aquele que é a ―boca‖ de Deus diante da comunidade. A predição era um elemento secundário na profecia do Antigo Testamento. 154 Aqui é preciso destacar que o próprio Weber afirma o caráter ―típico‖ do conceito com o qual trabalho o fenômeno profético (WEBER, 2004, p.304). 287 Aqui, pois, está nosso ponto de análise no sentido em que, primeiramente, o nosso conceito harmoniza-se com o weberiano quando este afirma a presença do carisma na vida do profeta. Ou seja, consideramos que o profeta é alguém que apresenta qualidades não ordinárias e que possibilitam aqueles que convivem com determinados indivíduos reconhecê-los como tal. Pelo carisma fica evidente que os profetas são pessoas que estão acima das experiências comuns de um determinado grupo. Em segundo lugar, o profeta é aquele que tem uma mensagem poderosa para comunicar. De seus lábios fluem a revelação divina. Ele é a ―boca‖ 155 de Deus no mundo, e, nesse sentido, em tese, ele não tem palavra pessoal a ser transmitida, mas sim somente aquela que por intuição, êxtase ou racionalização recebeu e/ou compreendeu ser da parte da divindade. O poder de seu argumento reside no fato que ele nada mais é do que um veículo pelo qual a própria divindade revela a sua vontade. Neste sentido, portanto, acolher sua palavra é receber a própria palavra divina que é autoritativa; e rechaçá-la é opor-se frontalmente contra o próprio Deus. Entretanto, diferimos conceitualmente de Weber no sentido em que entendemos que nem sempre o profeta emerge de uma situação de crise para fins de denúncia das estruturas de poder que marginalizam e exploram uma determinada camada da sociedade. Os conceitos com os quais trabalhamos no presente artigo tratam de dois aspectos do fenômeno profético, ou seja, daquele que se manifesta no indivíduo enquanto sujeito que possui um carisma pessoal e que acredita ser a ―boca‖ de Deus a mundo e aquele que está presente nas associações de indivíduos que arrogam para si a graça de possuírem o mesmo charisma e pelo qual tal grupo destaca-se diante do restante da coletividade. Por estes dois conceitos deixamos em aberto a relação entre o profeta e a realidade social da qual ele emerge, visto que nem sempre o profeta é 155 Nossa ênfase neste aspecto se dá pelo fato que universalmente o profeta é aquele que ―fala‖, ―verbaliza‖, ―anuncia‖ uma mensagem. Enquanto o sacerdote usa as mãos para oficiar e realizar os ritos pré-estabelecidos pela estrutura religiosa; profeta é aquele que vale-se dos seus lábios para executar sua missão. 288 revolucionário ou está do lado do oprimido e procura denunciar as estruturas sociais de dominação. A história universal deixa-nos exemplos sobejos que o profeta, pode, também, estar comprometido com os poderosos, com a ideologia e a manutenção com status quo de uma elite dominante. De fato, por mais paradoxal que seja, o profetismo pode estar ligado e comprometido com estruturas de poder e até mesmo de morte. Para exemplificar estas sentenças podemos evocar, em primeiro lugar, a mesma religião judaica que foi objeto de análise de Weber. Na Torah encontramos a história de um homem chamado Balaão que, por ser considerado um profeta, é chamado para vaticinar palavras de maldição sobre o povo de Israel (Nm 22-24) sob a promessa de ser pago pelo seu trabalho; e em 2 Pe 2:15 o escritor desta epístola atribui a este profeta o pecado da ganância visto ter amado ―o prêmio da injustiça‖. Outro exemplo que podemos citar é o que está contido em 1 Re 22,512 e que apresenta aquele período no qual Josafá (Reino do Sul) e Acabe (Reino do Norte) tencionam ir contra o rei da Síria e retomar a região de Ramote-Gileade e vários profetas, associados ao palácio, profetizavam somente palavras de vitória sobre o exército desses reis, legitimando, assim, as intenções destes. Na esfera extra bíblica podemos citar pessoas como Jim Jhones, que na década de 70 agregou em torno de si um grupo considerável de pessoas que acreditava ser ele a ―boca‖ de deus. Contudo, o trágico fim de todos foi a morte por envenenamento em uma comunidade construída na Guiana. Eis mais um exemplo de como um carisma profético pessoal pode estar à serviço da alienação, controle, dominação e morte. Nestes exemplos, fica evidente que o conceito Weberiano de profeta torna-se inadequado para se discutir as relações de poder que podem emergir na relação entre este ator social da religião e seus seguidores. Sendo assim, o certo é que, possuidor de um forte carisma pessoal, o profeta agrega em torno de si uma gama de ouvintes e seguidores. Suas características não ordinárias atraem as pessoas com as quais ele mantém uma relação de forte influência e domínio. E por esta – mediada pelo senso que o profeta, verdadeiramente, foi escolhido pela divindade e trás sua palavra fiel, autoritativa e 289 eficaz – origina-se e alimenta-se um vínculo de dependência da parte do fiel e uma relação de poder por parte do profeta. Outra questão igualmente importante é que Weber não trabalha com ―grupos‖ proféticos. Sua tônica é ―o‖ profeta. Todavia, tomando-se como base os textos de 1 Re 22,5-12 e as pitonizas de Delfos, torna-se evidente que tanto a tradição judaica como a Greco-romana apresentam-nos este fenômeno que pode ser analisado pelo viés sociológico, mas que não foi analisado Weber. E é esta a nossa proposta no presente artigo, ou seja, a análise da glossolalia como fenômeno pertencente à comunidade cristã de Corinto e que se fazia presente em uma coletividade que se arrogava possuir tal charisma sob a inspiração divina. Ora, o que era o glossolálico se não alguém que trazia as duas características mais básicas do profetismo, ou seja, qualidades excepcionais e ser a boca de Deus diante dos homens. De fato, não há que se duvidar que a elocução de palavras ininteligíveis mexia com a imaginação e os sentimentos religiosos de todos os que participavam das reuniões nas quais este fenômeno se fazia presente. O aspecto extra-humano, sobrenatural certamente era evocado na mente de todos os que participavam dos cultos e em letras garrafais argumentava-se que certamente aquelas manifestações eram divinas. Por outro lado, além da visualização do fenômeno, a elocução dos sons inarticulados tornava o glossolálico a ―boca‖ de deus entre os homens; visto que, por conclusão lógica, se o dom é espiritual, então segue-se disto que certamente é deus quem está falando através destes indivíduos. E como já afirmamos que o profeta é a ―boca‖ de deus, então, o que fala em línguas também é a ―boca‖ de Deus na comunidade corintiana. Esta relação entre profecia e glossolalia nós a podemos ver em 1 Co.... que diz: [...] quem profetiza é superior ao que fala em outras línguas, salvo se as interpretar para que a igreja receba edificação (1 Co 14,5) 290 Neste versículo a profecia e a glossolalia só diferem no modo pelo qual a ―palavra‖ de deus é trazia aos homens. Na primeira, a boca de deus trás a mensagem divina no idioma do povo; já na segunda, a boca de deus trás a vontade divina em uma linguagem desconhecida pelos ouvintes. Sendo assim, a glossolalia poderia ser vista como uma forma diferente do dom de profecia; e, aquele que era considerado boca de Deus, por suas manifestações glossolálicas, poderia gozar do mesmo prestígio, autoridade, influência e poder que os profetas ordinários que eram reconhecidos tanto na cultura judaica como na Greco-romana. Eis, então, o porquê dos glossolálicos alcunharem as outras gentes da comunidade cristã de Corinto como sendo ―fracas‖ (1 Co 12,22), ―menos dignos‖ (1 Co 12, 23) e ―não decorosos‖ (1 Co 12,23). Noutras palavras, a supervalorização da glossolalia como uma forma diferente do dom de profecia atraía para os glossolálicos a mesma posição de destaque e influência que os profetas possuíam. 3. A POSIÇÃO DE PAULO Estando especificamente em tensão na questão glossolálica, a igreja de Corinto necessitava de uma orientação apostólica que pudesse viabilizar que tal comunidade não fosse engolida pelos mesmos esquemas de dominação e poder que militavam ferozmente na sociedade secular do império romano. Noutras palavras, a sofia grega deveria ser substituída pelo Cristo: poder de Deus e sofia de Deus (1Co 1,22-23). De fato, era premente que os valores propalados pelo Cristo pudessem encontrar lugar existencial de concretização histórica na pequena comunidade coríntia. Mas como fazê-lo? A resposta a esta indagação foi dada por Paulo nos seguintes termos: Primeiramente, Paulo afirmou que os cristãos de Coríntios deveriam empreender esforços para amadurecerem na percepção que era Deus quem concedia os dons aos homens (1 Co 12,6); e isto ele fazia sem acepção de pessoas (1 Co 12,6) e visando um fim proveitoso (1 Co 12,7). 291 Em segundo lugar, era necessário que a igreja coríntia entendesse a relação orgânica através da qual todos os carismas espirituais estavam interligados em uma relação de mútua dependência e ajuda (1 Co 12,12-27). Em terceiro lugar, em perguntas retóricas, Paulo afirma que todos os carismas não eram para todas as pessoas. Ou seja, assim como nem todos eram apóstolos ou profetas, então ninguém deveria esperar possuir este ou aquele dom necessariamente, pois tava em Deus a liberdade de conceder carismas aos homens (1Co 12,30). Por fim, no ápice de sua argumentação a favor da harmonia na igreja, o apóstolo afirma a superioridade do amor sobre todos os dons carismáticos (1 Co 13). Em sua opinião, embora todos os demais dons fossem provenientes de Deus e tivessem sua importância orgânica na vida comunitária, o amor excederia a todos visto que, por seu intermédio, os cristãos de Corinto deixariam de pensar em si mesmos e nas posições eclesiásticas que poderiam granjear por meio dos dons carismáticos,156 e passariam a pensar nos outros e na melhor maneira de servi-los com os dons que Deus lhes haveria de conceder para a edificação do corpo. 4. CONCLUSÃO Como já foi asseverado acima, todo poder é mediado por um capital simbólico no qual um grupo seleto de pessoas arroga para si a posição de legitimo mandatário de uma determinada estrutura social. Aplicando-se este princípio na vida comunitária da igreja de Corinto, podemos concluir, razoavelmente, que certo grupo que arrogava para si tal posição era exatamente aquele que o apóstolo Paulo rejeitou chamar seus componentes de ―espirituais‖ (1 Co 3,1). Este grupo de pessoas que possuía grande conceito a respeito de si mesmo e alimentava isso diante da comunidade coríntia, era exatamente aquele que se utilizava do valor que o carisma e o profetismo possuíam no imaginário coletivo da comunidade cristã de Corinto para afirmar suas supostas qualidades extra156 Em 1 Coríntios 13,4-5 diz que o amor não se ufana, não ensoberbece e nem busca os seus próprios interesses. 292 humanas e sua singularidade espiritual entre os cristãos coríntios. E, então, por este esquema de manipulação dos valores simbólicos estes ―espirituais ‖reforçavam‖ o status de proeminência no seio da comunidade. No contrafluxo da ideologia de dominação do império romano e dos ―espirituais‖ da igreja de Corinto, que excluía pessoas, Paulo afirmou a dignidade e paridade de todos os componentes da igreja quando disse que era Deus quem operava tudo em ―todos‖ (1 Co 12,6) e quando ensinou a relação e dependência orgânica de todos aqueles que pertenciam à comunidade cristã de corinto. Sim, por este meio a igreja coríntia poderia manter-se fiel ao ideário de igualdade e solidariedade ensinado por Jesus e rejeitar os valores da sociedade romana que marginalizava e excluía seus cidadãos. REFERÊNCIAS A BÍBLIA SAGRADA: Antigo e Novo Testamento. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. 2 ed. rev. atual. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2005. BORN. A. Van Den et al. Dicionário enciclopédico da Bíblia. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1971. BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora Perspectica, 1998. COENEN, Lothar; BROWN, Colin (orgs.). Dicionário internacional de teologia do novo testamento. Tradução de Gordon Chown. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 2000. V.II. DANIEL-ROPS, HENRI. A vida diária nos tempos de Jesus. São Paulo: Vida Nova, 1991. DICIONÁRIO DA BÍBLIA. 21 ed. Rio de Janeiro: Candeia/JUERP, 2000. DOUGLAS, J. D. (org.). O Novo dicionário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1990. FUNARI, Pedro Paulo. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, Jaime e PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. LÉXICO DO N.T. GREGO/PORTUGUÊS. São Paulo: Vida Nova, 1993. LOHSE, Eduard. Contexto e ambiente do Novo Testamento. Trad. Hans Jorg Witter. São Paulo: Paulinas, 2000. MURPHY, Jerome. Paulo Biografia crítica. São Paulo: Edições Loyola, 2000. NOVO TESTAMENTO INTERLINEAR. Barueiri- São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004. 293 REIMER, Ivone Richter (org.). Economia no mundo bíblico: Enfoques sociais, históricos e teológicos. São Leopoldo: CEBI/Sinodal, 2006. ROCHER, Guy. Sociologia Geral 1. Lisboa: Editora Presença. 1971. STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004. WENGST, Klaus. Pax romana: pretensão e realidade: experiências e percepções da paz em Jesus e no cristianismo primitivo. Trad. António M. da Torre. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universitária de Brasília, 1999. A SOFIA IESSU NO EVANGELHO MARCOS: PROTAGONISMO DE MULHERES NA CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SAPIENCIAL CRISTÃO IVONI RICHTER REIMER157 Resumo: O evangelho Marcos apresenta uma primeira narrativa organizada da práxis de Jesus de Nazaré, confessado como Filho de Deus pela/s comunidade/s. Misericórdia transformadora, polêmicas desinstaladoras, reconstrução das relações assimétricas de poder em todas as dimensões são características visíveis do Reino de Deus ―que se aproxima‖. Mulheres participaram não apenas desse movimento, mas contribuíram na elaboração de referenciais que serviram de base desse projeto de vida no movimento de Jesus. De onde vem e o que será esta ‗Sofia‘ que marca essa práxis de Jesus? A comunicação esboça algumas perspectivas hermenêuticas feministas de libertação. Palavras-chave: Sofia Iessu, Marcos, movimento de Jesus, mulheres, hermenêutica feminista. 157 Teóloga, doutora, professora na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Estudos da Religião (PUC Goiás), pesquisadora CNPq, pastora. 294 ―Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus‖ (Mc 1,1), o ―mais forte‖ que atuou após João Batista, foi batizado, bendito ―filho amado‖, vencedor de todas as tentações, anunciou e viveu o Evangelho da Boa Nova às pessoas quebrantadas, reconstruindo vida e alegria de viver. Em torno de si reuniu um grupo de mulheres e de homens que o seguiam, servindo-se mutuamente em partilha de afeto e de capacidades, de trabalhos e dons, porque testemunhavam que o ―tempo oportuno da salvação está chegado e o Reino de Deus se faz presente‖ (Mc 1,15). É consenso exegético que o evangelho Marcos é o mais antigo, apresentando uma primeira tentativa de organizar tradições e narrativas da práxis libertadora de Jesus, no final do ano 69-início de 70, talvez em Pella. Nesse tempo, comunidades já confessavam Jesus como Deus e Senhor, em oposição à teologia imperial romana. O evangelho vai elaborando um mosaico de como seria este Jesus que é proclamado ―Filho de Deus‖: ele inaugurou um tempo novo, movido por uma profunda misericórdia que transformou e curou vidas, ele enfrentou temas polêmicos numa desenvoltura que desinstalava valores e regras sedimentados, agiu de tal forma que as pessoas perceberam que é possível construir relações de poder que não sejam assimétricas e opressoras, mas de cuidado e libertadoras... Num sábado, como em tantos outros, mas agora em Nazaré, terra-natal no sentido de que sua família tinha origem ali e que ele foi ali educado, Jesus foi até a sinagoga para ensinar (Mc 6,1-6)! A primeira notícia da reação do povo é positiva, mas no final, ela torna-se negativa e expressa rejeição. Muitas pessoas ouviram e se maravilharam com ele, dizendo: ―De onde para este tudo isso? E que sofia esta que lhe foi dada? E estes ‗sinais maravilhosos‘ (dynameis) que acontecem por meio de suas mãos? Não é este o carpinteiro158, o filho da Maria, e irmão de Tiago e de José e de Judas e de Simão? E não estão as irmãs dele aqui entre nós? E escandalizavam-se nele.‖ Esta narrativa apresenta espanto, encantamento, dúvida e rejeição. O primeiro questionamento diz respeito ao poder e à Sofia/sabedoria de Jesus: de onde procede tudo isso que Jesus realiza? Qual é a origem de seu ensino e de seus feitos maravilhosos? O segundo questionamento é biográfico, indicando para a origem familiar de Jesus, como sendo de gente simples e trabalhadora. Mencionados são irmãos e 158 Muitos manuscritos antigos trazem a versão ―não é este o filho do carpinteiro?‖, que é assumida em muitas traduções. 295 irmãs de Jesus. Nomeados são apenas os quatro irmãos de Jesus, cujos nomes remetem à tradição bíblica de patriarcas. As irmãs não são nomeadas, o que era bastante comum. Por isso mesmo, chama atenção que Jesus é caracterizado por sua mãe Maria; comum era vincular os membros da família ao pai. Aliás, nesse evangelho nada se diz a respeito de José, nem tampouco acerca do nascimento virginal de Jesus. Ele é conhecido como ―filho de Maria‖, e ele tem irmãos e irmãs (adelfoi/ai).159 Diante do espanto e estranhamento expressos, a resposta de Jesus é formulada como um ditado popular. Aqui se evoca a tradição profética realizada por Jesus. O dito é resultado de observação: profetas eram menosprezados e desacreditados na própria casa, parentela e cidade. E ali, Jesus ―não conseguiu (dynamai) realizar nenhum sinal do poder dinâmico de Deus, mas só curou algumas poucas pessoas doentes por meio de imposição das mãos. E admirou-se por causa da falta de fé deles‖. As pessoas conterrâneas de Jesus estão caracterizadas pela apistia ―falta de fé‖. As narrativas evangélicas mostram que a fé era a fonte motriz da realização de curas e milagres. Foi por este motivo que Jesus não conseguiu realizar muitas obras de seu poder dinâmico e relacional nesse lugar, e partiu para outras aldeias. Quero, aqui, destacar uma questão que pode ter grande e significativo impactos e alcance teológicos e cristológicos. Além da informação sobre a tradição profética e os dados biográficos de Jesus, aparece aqui um termo que é único no evangelho Marcos, mas que é transmitido também na narrativa paralela de Mt 13,54. Trata-se do termo grego Sofia que tem seu paralelo hebraico em hokmah. As pessoas perguntaram: ―E qual Sofia foi dada a este?‖, que assim ensinava e cuja práxis libertadora anunciava o novo tempo que já estava despontando. Uma análise do termo grego em outras passagens evangélicas nos ajuda a entender melhor o seu significado: Lc 2,40.52 destacam que Jesus crescia saudável e ‗enchia-se‘ com Sofia e graça que provinham de Deus; em Lc 11,49, Sofia de Deus aparece como sujeito-pessoa que age e fala; Mt 11,19 e Lc 7,35 apontam para Sofia e todas as suas crianças/obras; 159 Muito se discutiu sobre o grau de parentesco de Jesus com as pessoas aqui mencionadas, e para a exegese católica, os adelfoi/ai seriam ‗primos/as‘ de Jesus. Esta discussão tem seu interesse marcado pela mariologia que afirma a virgindade perpétua de Maria. No entanto, em termos textuais, o enunciado é inequívoco; se quisesse ter se referido a ‗primos/as‘ teria usado termo mais adequado, como synguenés/synguenís ―parente‖, utilizado em Mc 6,4 para referir-se à parentela maior, além dos membros da casa propriamente dita, que contempla irmãos e irmãs. 296 em Lc 21,15 a Sofia é dada pelo ―mestre‖ apocalíptico que anuncia o princípio das dores; Rm 11,33 cita o Apocalipse de Baruque 14,8ss, onde consta que a Sofia vem de Deus para conhecer e perscrutar seus mistérios e caminhos. Pela recepção da tradição, para a comunidade do evangelho Marcos, a Sofia de Jesus provem de Deus, está intrinsecamente vinculada com Deus e se manifestava na vida e na obra de Jesus. Esta mesma Sofia se faz presente para orientar e dar força e perseverança às pessoas crentes e fiéis em tempos de perseguição e sofrimento. Teologicamente relevante é perceber que a práxis de Jesus é reconhecida como fundamentada na Sofia de Deus, que age em Jesus. Há interpretações e tradições sapienciais antigas que percebem na Sofia de Deus a companheira ou a parte feminina de IHWH. Como manifestação desta Sofia estão os ―sinais dinâmicos‖ da atuação de Deus em Jesus, e as curas por ele realizadas. A práxis de Jesus, baseada na Sofia de Deus, faz com que pessoas acolham Jesus e creiam, por um lado, ou que, por outro lado, rejeitem e desprezem o Filho de Deus que é ―Filho de Maria‖. A Sofia de Deus é o divisor de águas... O uso do termo Sofia nesses textos evangélicos remete claramente à tradição sapiencial pós-exílica. A imagem masculina de Deus IHWH é rompida sempre em tempos de crise e de ruína, como já o demonstrava Oséias, e mais tarde o Dt-Isaías, quando recorriam à imagem consoladora de Deus como mãe que criou e que não abandona a sua criança/Israel em tempo de sofrimento. Ao lado dessa imagem foi se solidificando uma imagem feminina de Deus em grupos sapienciais pós-exílicos que falam de Deus como sabedoria (hokmah e Sofia). A Sofia representa a divindade de forma protetora, crítica, audaciosa, cuidadosa e amorosa, e está personificada como mulher. Em Pv 8,22-30, aparece como pré-existente à criação e é sua arquiteta, e com IHWH se deliciava e se divertia nesse processo criador e criativo; em Sabedoria 10-11, a história da criação e do êxodo são recontados, tendo a Sofia como personagem protagonista divina. Na tradição sapiencial judaica pósexílica, a Sofia assume múltiplas e variadas formas: criadora, co-criadora, mantenedora, mestra da justiça e da perseverança (Sb 8,1-8), aprendiz que observa, amor e misericórdia que realizam a Lei (Sb 6,12-19); é a anfitriã que convida para dentro de sua casa (Pv 9,1-6), é deusa das árvores que dá proteção e alimento (Eclo 297 14,16-15,4), amante, amada e companheira no trono de Deus (Eclo 6,25-29; Sb 8,24; 9,1-7). Estudiosas/os do assunto não tem dúvidas de que estas imagens de Sofia como divindade são como uma ‗mitologia refletida‘ que foi influenciada pelas divindades de toda região mediterrânea, desde o séc. II a.C. Por um breve espaço de tempo, o monoteísmo judaico pós-exílico pode ter se aberto para imagens e concepções femininas da divindade. A Sofia ―é ‗o‘ Deus de Israel na linguagem e nas imagens de uma deusa‖ (SCHROER, 1997, p. 432). Autores mais conservadores também admitem essa vertente nos textos pós-exílicos, quando p.ex. Goetzmann (2000, p. 2172) diz que o termo recebe ―o papel de um princípio divino implantado no mundo‖. É esta Sofia que continuou presente e atuante em algumas expressões teológicas e cristológicas em comunidades judaico-cristãs por meio da recepção de tradições sapienciais, o que pode contribuir decisivamente para a reconstrução da imagem divina de Jesus. O uso do termo nos evangelhos reflete imagens e conceitos da tradição sapiencial pós-exílica: conhecimento da Lei e sabedoria são idênticos; a sabedoria deve refletir-se nas obras condizentes à fé testemunhada. Assim, em textos escatológicos transparece a idéia que Jesus é a Sabedoria vinda à terra. [...] A maneira mais fácil de entender estas palavras [Lc 11,49] é pensar na Sabedoria celestial que os homens desprezam [...]: em Jesus, esta sabedoria finalmente apareceu. Parece justificável falar de uma cristologia de sophia. (GOETZMANN, 2000, p. 2173). O tempo da comunidade que narra o evangelho Marcos é de crise e ruína por causa da situação aterradora da Guerra Judaica e de suas conseqüências nas relações pessoais, interpessoais, sociais e institucionais. Fazia-se necessário reorganizar, refletir, resistir em perseverança e fé. Falar de Sofia Iessu, em tal contexto, é trazer à memória o significado de uma imagem de Deus amável e poderoso, de misericórdia crítica e compromisso social que transcende o unívoco peso da imagem de um Deus patriarcal absoluto. Resgatar esta Sofia Iessu pode abrir possibilidades para a vivência de uma espiritualidade feminista libertadora que possa resgatar e reconstruir o misericordioso amor de Jesus pelas pessoas abandonadas, excluídas, machucadas, principalmente mulheres e crianças. A Sofia Iessu pode nos fazer perceber, na alegria e perspicácia de pessoas que aprendem a cada dia um pouco, que é preciso 298 cuidar de todos os elos da criação para que se possa viver sem ansiedade, elegendo a prioridade de dedicar a vida a serviço do Reino de Deus, porque tudo o mais já nos foi dado (Lc 12). O tempo em que vivemos, marcado por profundas transformações sócioculturais, clama por uma re-elaboração de uma teologia mais integral e integradora, de abertura para ‗o outro/a‘ e de cuidado compassivo com a vida machucada de toda a criação, que ―geme e anseia por libertação‖ (Rm 8,22). Uma cristologia ecofeminista libertadora pode apoiar-se nesses textos evangélicos de releitura de tradições sapienciais pós-exílicas, de forma legítima, assim como segundas e terceiras gerações cristãs também o fizeram em suas experiências religiosas e vivências litúrgicas (Cl 2,15-20). Se em tempos antigos, sabedoria era o conhecimento realizado (GOETZMANN, 2000, p. 2170), talvez para nossos dias seja necessário e significativo reabrirmos as portas para a Sofia Iessu, esquecidas por nossas tradições cristãs, a fim de encontrarmos perspectivas intelectuais e pragmáticas que contribuam na reconstrução da vida digna e plena de todas as criaturas. De que adianta a globalização, se ela não globalizar a justiça e o bem-viver para cada ser vivente? Pautar a vida na Sofia Iessu poderia significar, hoje, uma re-elaboração epistemológica e de paradigmas que brotem de nossas realidades sócio-culturais a partir da observação da vida que sofre para ensinar, transformar, curar toda sorte de doença e mal-estar com base numa compaixão que interage de forma libertadora. Renovadamente, em nosso cotidiano, poderíamos vivenciar que o princípio da Sofia ―é o desejo autêntico da instrução, o afã da instrução é o amor, o amor é a observância de suas leis, o respeito das leis é garantia de incorruptibilidade e a incorruptibilidade aproxima de Deus‖ (Sb 6,17-19). E assim como em Jesus e em Paulo, esta Sofia/ruah poderá fazer sua tenda, sua morada também em nós e em meio de nós, para que possamos nos sentir pessoas envolvidas pela luz e energia divinas que purificam, aquecem e vivificam (1Co 6,19). Assim as pessoas perceberam a Sofia Iessu em tempos narrados pelo evangelho Marcos. Podemos percebê-la e acolhê-la ainda hoje... REFERÊNCIAS 299 GOETZMANN, J. Sabedoria. In: COENEN,L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. 2. ed. Tradução de G.Chown. São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 2169-2175. SCHROER, Sílvia. Sabedoria. In: GÖSSMANN, Elisabeth et al. Dicionário de Teologia Feminista. Tradução de Carlos A.Pereira. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 431433. 300 GT 13: RECUPERAÇÃO DA DIMENSÃO CRÍTICA DA FÉ DIANTE DOS DESAFIOS DA GLOBALIZAÇÃO Coordenação: Dr. Élio Estanislau Gasda Resumo: A reflexão crítica sobre o atual projeto de globalização desvela toda sua problemática política, econômica, cultural, antropológica. Neste contexto, encontrase a perda do referencial ético, um dos maiores da história da humanidade. Conceitos éticos fundamentais como Justiça, Verdade e Solidariedade encontram-se relativizados, quando não marginalizados diante da hegemonia do pensamento único. A mesa propõe uma aproximação crítica da questão a partir da tradição éticoteológica do cristianismo. Esta tarefa pressupõe a autonomia das religiões e do discurso religioso diante da ideologia dominante. Palavras-chave: Teologia, Ética, Justiça, hegemonia do pensamento único O QUE JERUSALÉM TEM REALMENTE A DIZER A ATENAS? Élio Estanislau Gasda160 Resumo: Qual a relação entre religião(Jerusalém) e sociedade civil(Atenas)? É possível aos indivíduos religiosos apostar por uma ética civil, participar abertamente da dinâmica de diálogo racional-cidadão dos areópagos da globalização sem fazer proselitismo? A cultura da globalização é hegemonicamente européia-ocidental-capitalista-liberal, cujo motor é a ideologia do progresso. Qual a influencia de Jerusalém nesta configuração? Jerusalém necessita fazer uma autocrítica e voltar às fontes antes de entabular um diálogo honesto e transparente com Atenas. Palavras-chave: Cultura, religião, globalização capitalista, ideologia do progresso INTRODUÇÃO O tema deste Congresso, «Religião, transformações culturais e globalização», inspira uma revisão das formas históricas da relação entre religião e cultura, pois se trata de uma questão que acompanha toda a história da civilização ocidental. Em meio de uma situação difícil entre o cristianismo e o Império romano, um cristão do norte da África do século III, chamado Tertuliano, fez uma pergunta que acabou se transformando em uma questão clássica e que pode ser feita para qualquer período 160 Doutor em Teologia e ([email protected]). professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE 301 histórico: O que Jerusalém tem a dizer a Atenas? (De Praescriptione haereticum, 7, 1: PL 2,20). Não se trata de problema geográfico, mas de conteúdo: Atenas e Jerusalém são dois grandes ícones da civilização ocidental. Atenas representa o tesouro da cultura secular, civil, forjada por grandes figuras como Homero, Sócrates, Platão e Aristóteles. Jerusalém, cidade santa, é sagrada para judeus e cristãos, e disputada também pelos muçulmanos. Cidade dos grandes fundadores do judaísmo e do cristianismo. Jerusalém representa a experiência de indivíduos e comunidades religiosas que querem viver sua fé no seio de sociedades onde a religião recebe mais acolhida e menos rejeição. A pergunta de Tertuliano continua ecoando no século XXI. É possível aos crentes apostar por uma ética civil e participar da dinâmica do diálogo nos areópagos da globalização? Qual a influencia da religião na configuração da cultura global? Como harmonizar a democracia da pólis à hierarquia da religião? CULTURA E RELIGIÃO Refletir sobre a globalização a partir do tema da cultura significa incorporar um conceito central, mas polissêmico. Em 1871, Edward Burnet Tylor, pai do conceito moderno de cultura, definia cultura ―como um todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes e todas as disposições e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma comunidade‖ (1871). Nota-se nesta definição a complexidade dos elementos, o modo de sua aquisição e os grupos de força que definem seus traços fundamentais. A cultura é o processo mediante o qual nos apresentamos diante do mundo e o interpretamos. Por traz de todo conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume, existem grupos que vão configurando a cultura de acordo com seus interesses. Tais elementos conformam historicamente a cultura e fazem dela sistema de orientação. Dentre eles destaca-se o elemento religioso. Também a religião é um conceito polissêmico e amplo. Segundo Daniel Bell, a religião é ―um sistema coerente de respostas às perguntas existenciais que confrontam as comunidades humanas, a codificação destas respostas em forma de credos e ritos estabelecidos por um corpo institucional‖ (1960). Ou seja, as religiões, 302 assim como as culturas, são históricas, e configuram de forma muito especifica as culturas. A GLOBALIZAÇÃO COMO PROJETO DE CIVILIZAÇÃO Para Anthony Giddens (1991), a Globalização ocupa um lugar estratégico para supremacia da cultura ocidental, é a última fase da expansão da modernidade ocidental européia (economia capitalista, liberalismo, divisão do trabalho, Estado Nacional, militarismo). Esta modernidade a escala global, na verdade, é uma segunda modernidade, aproveitando um conceito de Ulrich Beck, melhor dizendo, uma modernização da modernidade, uma modernidade reflexiva: processo em que se põem em cheque os paradigmas, as insuficiências e as debilidades da primeira modernidade (1994). Por se tratar de uma forma de radicalização do paradigma econômico da modernidade, o neoliberalismo deve ser interpretado a partir desta compreensão da Globalização. Nesta mesma linha, Imanuel Wallerstein dirá que o capitalismo liberal é o motor deste sistema mundo chamado globalização (2010). O PROGRESSO COMO PARADIGMA DA CULTURA GLOBAL O progresso está no centro do discurso dominante da globalização. O saber científico conjugou-se à técnica e, combinados – a serviço de um sistema capitalista hegemônico – não cessam de surpreender o estilo de vida humano. A capacidade de produzir mais e melhor não pára de crescer e assume o conteúdo da idéia de progresso. A civilização do progresso, filha da modernidade ocidental hoje é um fenômeno mundial. Existe um consenso em torno da idéia de que a globalização deve ser conduzida desta forma se queremos alcançar os objetivos do Milênio da ONU: eliminar a pobreza, o analfabetismo, etc. A Europa levou três séculos para passar da mentalidade medieval à modernidade. A idéia de progresso formou-se no final do Renascimento, especialmente com Jean Bodin: os rumos da história dependem da vontade humana. Para Francis Bacon a função da ciência é melhorar a vida humana. Voltaire associou progresso à crescimento econômico. Adam Smith defendia que a liberdade econômica é o único 303 caminho para o progresso. Augusto Comte instituiu a ordem e o Progresso como farol da humanidade. A modernidade vai se configurando a partir de uma relação de confronto com a natureza exterior. A globalização está subordinada ao projeto ocidental que reduz a relação com a natureza a seu domínio: Uma natureza serva do progresso. A globalização talvez seja a última fase deste projeto. As novas tecnologias subordinadas ao capitalismo liberal, a reestruturação produtiva, a hegemonia do sistema financeiro definem a lógica da expansão global da idéia de progresso. Seria uma insensatez negar os benefícios da evolução das tecnologias para as pessoas. Trata-se de questionar a quem esse progresso serve e quais os riscos e custos sociais e ambientais. É preciso questionar quem escolhe a direção desse progresso e quais seus objetivos. RELIGIÃO E CULTURA DO PROGRESSO NA ATENAS DE HOJE Até que ponto as religiões influíram na constituição desta cultura do progresso? Voltando-nos especificamente ao cristianismo: qual tem sido seu papel na configuração desta cultura do progresso predomina no atual processo de globalização? Para ser contra-cultural, o discurso religioso precisa ir além do óbvio para desmascarar as contradições implícitas na lógica do progresso e de sua ideologia que esconde suas mazelas. É preciso reconhecer que a absorção do pensamento teológico foi um dos pontos de partida da idéia de progresso que acompanhou a Revolução Industrial. Lynn White Jr.(1967), ao analisar a influencia do discurso religioso sobre a idéia de progresso, foi o primeiro em apontar o cristianismo como um dos responsáveis diretos da crise sócio-ambiental. Na base da sua crítica está a tese de que a ecologia humana está profundamente condicionada pelas crenças sobre a nossa natureza e destino, isto é, pela religião. A capacidade de destruição da natureza desenvolveu-se devido à evolução tecnológica alcançada durante o período medieval, ou seja, em um ambiente marcado pela religião cristã. Duas afirmações sintetizam sua tese: Especialmente 304 em sua forma ocidental, o cristianismo é a religião mais antropocêntrica que o mundo conheceu. Nesta tradição, a natureza não tem outra função que não seja a de servir ao homem. O homem é feito à imagem e semelhança de Deus para que submeta e domine a natureza criada (Gen 1,27-28). Esta interpretação encaixa como base religiosa da civilização do progresso. O problema está em que na maioria dos casos, se apresenta o «domínio» somente em sua dimensão positiva segundo uma relação de sujeito-objeto bem próxima ao espírito da racionalidade instrumental. Existe uma enorme desproporção entre a acentuação da dignidade humana e a insuficiente consideração da criação em seu valor próprio. A instrumentalização da tecnologia como fundamento do domínio acaba reduzindo a natureza a uma propriedade exclusiva do homem O tema da atividade humana interpretada como participação humana na obra divina criadora exige uma revisão séria diante da grave crise sócio-ambiental, pois é o reflexo mais nocivo da ideologia do progresso que caracteriza a cultura ocidental. A AUTONOMIA INVIOLÁVEL DE JERUSALÉM FRENTE ATENAS A crítica de Lynn White Jr. é uma ilustração pedagógica para mostrar que a pergunta de Tertuliano permanece aberta. A religião é uma força social e deveria situar-se no âmbito da sociedade civil. Uma coisa é a crítica social a favor da justiça, outra distinta é a subordinação à interesses e projetos alheios à religião. A autonomia pode ser sufocada em períodos históricos de otimismo em que o discurso religioso é suscetível de justificar estilos de vida e comportamentos incoerentes com a fé. Somente a preservação da autonomia pode impedir a instrumentalização do discurso religioso por parte do pensamento hegemônico. A adesão à uma cultura específica leva à marginalização de outras culturas. Um discurso religioso excessivamente otimista ou espiritualista é facilmente instrumentalizado para fins ideológicos conferindo legitimidade aos poderes dominantes. Jerusalém não pode abdicar de uma árdua tarefa: identificar a ideologização dos conceitos construída pela cultura hegemônica. O discurso de Jerusalém jamais deveria perder seu caráter crítico diante deste modelo de sociedade centrado em uma idéia de progresso orientada pelo capitalismo. 305 Atualmente, tanto a civilização ocidental como a idéia de progresso que a acompanha encontra-se em crise. Mas não se trata da crise do progresso como característica humana, mas da crise de sua compreensão. Significa também uma crítica radical da subordinação da sociedade a este projeto, pois a atividade humana reduzida á idéia de progresso é um dos fundamentos do discurso hegemônico. PALAVRA E PRÁXIS Em síntese, se trata defender os valores humanos assumidos pelas religiões, pois a fé é inseparável de exigências éticas. A unidade entre discurso e práxis é a melhor forma de evitar a instrumentalização do discurso e a conseqüente perda da autonomia de Jerusalém. A unidade entre discurso teológico e razão prática é condição essencial para impedir o deslizamento da religião como instrumento ideológico a serviço da cultura dos poderosos de Atenas. Se as religiões recuperarem a capacidade da crítica, talvez nosso futuro possa ser mais animador. Elas nos dizem que, se temos futuro, é porque somos peregrinos. Na verdade, não progredimos, mas caminhamos (Merleau-Ponty). A partir do momento em que o discurso de Jerusalém se confunde com o discurso de Atenas, ela não tem mais nada a dizer. No caso específico do cristianismo, a autonomia do discurso está vinculada a uma práxis de resgate e devolução da palavra para todos os indivíduos, grupos e categorias cujo clamor é sufocado pelo discurso hegemônico de Atenas: os pobres, as mulheres, as crianças, os trabalhadores, os imigrantes, os estrangeiros, as minorias, etc. REFERENCIAS BECK, Ulrich. Modernização Reflexiva. Madri: Aliança Ed., 1994. BELL, Daniel. The End of Ideology, New York: Free Press, 1960. Publicado no Brasil, na Coleção Pensamento Político, UNB, vol.11, 1980. BURNETT TYLOR, Edward. Primitive Culture. 2 vols. 7th ed. New York: Brentano's, 1871. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. 306 WALLERSTEIN, Imanuel. El moderno sistema mundial, 2 vols (1974). Madrid: Siglo XXI, 2010. WHITE JR., Lynn. The historical roots of our ecological crisis: Science, 155 (1967) 1203-1207. Apesar de sua crítica, o mesmo Lynn White identifica no interior do Cristianismo uma tradição respeitosa com a natureza, o franciscanismo, e propõe o «cristão» Francisco de Assis (1182-1226) como patrono dos ecologistas. Globalização e fé cristã: perspectivas e desafios Omar Lucas Perrout Fortes de Sales161 Resumo A globalização atual afeta realidades múltiplas da vida humana. Interfere e interage com as esferas políticas, sociais, econômicas, culturais e religiosas. O modo pelo qual o cristão vive e professa a fé sofre impactos, tanto positivos quanto negativos. Interessa-nos pensar os desafios e perspectivas da globalização para a vivência e propagação da fé cristã, bem como a resposta da fé à complexidade dessas questões. Importa questionar a realidade a fim de melhor compreender as transformações vividas na atualidade e apontar caminhos de valorização da vida. Palavras-chave: Globalização, fé cristã e práxis. 1- Introdução A contemporaneidade encontra-se assolada pela crise dos valores humanos, éticos e religiosos. A despedida da verdade, marca profunda dos tempos atuais, pode ser constatada mediante a emergência de uma sociedade cada vez mais pluralista (VATTIMO, 2009, p. 16). O processo de globalização em marcha difunde os veios da fragmentação da verdade. Em face desse cenário, o ser humano se depara com a perda dos referenciais éticos. Impera o narcisismo. Cada qual parece se pautar pela busca desenfreada por prazer e poder. Ambos, por serem passageiros, não atendem aos anseios humanos. Amplia-se, desse modo, o sentimento de vazio e de frustração 161 Doutorando em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Instituição promotora: CAPES. [email protected] 307 diante do sentido da existência. O questionamento de Lipovetsky mantém-se atual: ―Alguma vez se terá organizado, edificado, acumulado tanto e, ao mesmo tempo, alguma vez se terá sentido tanto a paixão do nada, da tábua rasa, do extermínio total‖? (LIPOVETSKY, 1989, p. 32, grifo do autor). Os ideais de consumo da sociedade atual se opõem à preservação e à propagação da vida. A globalização atual, por compor esse cenário, constitui o foco de nossa abordagem. Ancoramos nossa reflexão à luz de perspectiva específica: o encontro e confronto da globalização com a vivência da fé cristã. Intentamos apontar as perspectivas positivas e negativas desse embate, bem como as possibilidades de uma resposta da fé cristã à problemática em questão. 2- Breve histórico da globalização atual Consideramos o advento do liberalismo no mundo ocidental como pedra angular da instalação e permanência até hoje, no século XXI, da chamada globalização, como uma indústria de marginalização do indivíduo, da destruição do meio ambiente, da apropriação da terra e da propriedade e de acumulação de metade do capital mundial na mão de apenas 2% da população do globo. Globalização, espacial e conceitualmente, é o plano de atuação do capital dominante, representado pelas megaempresas transnacionais. A essas, não interessa os que não são absorvidos, banidos e relegados do sistema, porque não interferem na cadeia ou no modo de produção capitalista. Entretanto, as origens da globalização, em sentido lato, antecedem a existência do capitalismo. Seus germes ligam-se estritamente à tradição greco-judaico-cristã, à vocação para o universal e o global. Apontam para o conceito e a busca pela verdade dos filósofos gregos. Na perspectiva bíblica, ―os textos tardios, especialmente do dêutero e do trito-Isaías, revelam lentamente uma mentalidade universalista‖ (LIBANIO, 2003b, p. 148) que caracterizará a consciência e esperança judaica de que todas as nações sejam congregadas em Jerusalém, bem como a missão dos apóstolos de evangelizar todos os povos: ―[...] sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e a Samaria, e até os confins da terra‖ (At 1,18). O desejo de unificação e universalismo deixa, na história, vestígios de uma vocação expansionista e totalizante. Os esforços imperialistas e 308 homogeneizadores da campanha greco-helênica, a estrutura do império romano, a cristandade pós-constantiniana, as descobertas das grandes navegações, o processo de colonização do Novo Mundo, o domínio britânico do Oriente e as missões transculturais do século XVIII e XIX são sinais do esforço de controle, centralização e negação das diferenças. Para o filósofo e historiador argentino Enrique Dussel, as raízes mais sólidas da globalização econômica desenvolveram-se em solo europeu (os chamados países de centro), e afetam de modo singular a realidade latinoamericana (entre outros países da periferia, acompanhada pela realidade africana e asiática) (DUSSEL, 1983, p. 27). Cabe ressaltar que centro e periferia são conceitos utilizados por Dussel, respectivamente equivalentes à totalidade e à alteridade. Para o autor a periferia é vítima dos impactos do colonizador do centro (DUSSEL, 1979, p. 114). O centro, totalidade que busca abarcar o outro, nega a periferia que não chega a ser outro, uma vez que a totalidade não reconhece outro o que está fora de si (DUSSEL, 1983, p. 52). Dussel afirma que a Europa está demasiadamente ensimesmada e não quer ouvir a voz do outro, dos ―bárbaros‖, do ―não-ser‖. Essa concepção de globalização, como o esforço de expansão e dominação, representa sua face negativa e mais conhecida. Constatamos a impotência dos países periféricos e marginais diante da força do capitalismo e do liberalismo. Tal força dissolve a esperança dos povos que não participam da pequena elite do centro, de se libertarem de sua miséria (DUSSEL, 2002, p. 15). Dussel constata que a desintegração da União Soviética, o fracasso do socialismo na Europa Oriental, a derrota eleitoral do sandinismo, o bloqueio de Cuba, entre outros eventos que marcaram a segunda metade do século XX, denunciam a impotência das margens diante da força do capitalismo e do liberalismo. Nos dias atuais assistimos ao aumento crescente do número de vítimas do sistema que se globaliza e alcança níveis mundiais (DUSSEL, 2002, p. 17). 3- Perspectivas positivas da globalização para a fé cristã A globalização enquanto realidade múltipla e poliforme apresenta 309 ambiguidades. No tangente à vivência da fé cristã, desafios e oportunidades tecem a configuração dessa rede em movimento. Enquanto oportunidade, importantes eventos religiosos podem ser vistos em todos os continentes. As transmissões via satélite diminuem a distância real do acontecer do outro e permitem interação antes impensável. A troca de informações e experiências, bem como a propagação de mensagens, vislumbram novas possibilidades. Na perspectiva política, autoridades mundiais podem se reunir via vídeo conferência. ―É no campo da informação e comunicação de conhecimentos que a globalização mais positivamente colabora com a pastoral‖ (LIBANIO, 2003a, p. 101). As mensagens papais são difundidas em todos os continentes e a Igreja dirige sua mensagem às aldeias globais. ―É a globalização de atos religiosos, de mensagens de fé. Tal fenômeno atinge o anúncio da fé. Certos pastores americanos já conseguem falar a bilhões de fiéis com seus teleprogramas religiosos‖ (LIBANIO, 2003b, p.149, grifo do autor). O acesso imediato ao mundo do outro possibilita a formação de redes de solidariedade. Tragédias locais mobilizam globalmente as pessoas em prol da preservação da vida. Percebemos, ainda que descomprometidamente, certa mobilização em favor de vítimas de desastres naturais e guerras. Paradoxalmente, conectamo-nos com a realidade distante e desconhecemos, por vezes, o que se passa diretamente à nossa volta. As comunidades virtuais, possibilitadas pela internet, não substituem, mas favorecem o encontro de grupos de reflexão enquanto extensão dos encontros presenciais. Os diversos grupos e pastorais extrapolam o encontro semanal ao motivar os membros a postarem mensagens, relatos e a interagirem entre si. De qualquer parte do globo, todos podem participar. Tempo e espaço reconfiguram-se e adquirem novos contornos. Entretanto, os encontros ―reais‖ sustentam o vínculo afetivo e efetivo do grupo e têm precedência sobre os encontros virtuais. O contato com as diferenças questiona os horizontes pessoais de significação do mundo. No tangente às crenças religiosas, convida-nos a dar razões da própria fé. O diálogo interreligioso se faz necessário mediante a força do confrontar-se com a diversidade religiosa. A Igreja tem demonstrado abertura para as questões ecumênicas e iniciativas, antes restritas aos seus representantes, alcançam gradativamente maior projeção e começam a ser abraçadas pelas 310 comunidades de fiéis. A globalização interpela e desafia a fé cristã. 4- A globalização impõe desafios à fé cristã O ideal homegeneizador da globalização atual apresenta constantes e novos desafios e interpelações à vivência da fé cristã. A dissolução da verdade objetiva encontra no aprimoramento da técnica e nas fabulações da globalização, mola propulsora a difundi-la. A técnica presta-se mais à obtenção do lucro que à promoção da vida. A propagação da mídia eletrônica não possibilitou-nos alcançar o patamar de uma sociedade transparente de comunicação. A proliferação dos mass media ―caracterizam esta sociedade não como uma sociedade mais ‗transparente‘, mais consciente de si, mais ‗iluminada‘, mas como uma sociedade mais complexa, até caótica...‖. (VATTIMO, 1992, p. 10). Nessa perspectiva, blogs e chats, proporcionam relacionamentos cada vez mais fugazes e indiferentes ao contato pessoal. Cumpre-se a profecia nietzschiana: o mundo verdadeiro tornou-se fábula (NIETZSCHE, 1988). Acirra-se continuamente o abismo entre o ―eu‖ cada vez mais exacerbado e o outro, horizonte alhures de significação. Em face de tais relativizações, o universo caleidoscópico de crenças e práticas religiosas diversas atinge o conteúdo da revelação cristã (LIBANIO, 2003a, p. 98). Esfacela e fragmenta o novum do metarelato cristão, agora configurado como uma interpretação dentre outras. Questão em vão combatida pela Igreja, deveras saudosa de ser a guardiã da verdade única. Aqui reside grande paradoxo. De um lado, para a fé cristã, a relativização da verdade pode ser vista como negativa e ameaçadora. Provoca arrepios na Tradição. De outro, existencialmente, o ser humano vislumbra horizontes mais amplos e abertos. Ricos da possibilidade de escolha e exercício da autonomia, implicada inclusive na identificação religiosa: ―Atualmente, nos países desenvolvidos, a maioria da população considera que cabe a cada um formar sua própria religião, sua própria crença‖ (LIPOVETSKY, 2009, p. 61). Possibilita o surgimento do cristão por escolha e não apenas por herança cultural. Não obstante, cresce o número de cristãos que ―customizam‖ suas práticas religiosas e criam a própria religião. Duplo desafio: na perspectiva humana, a construção e conquista de justa autonomia em meio a essa grande sociedade de 311 indivíduos; na perspectiva cristã, a fidelidade ao conteúdo da revelação. A racionalidade da globalização atual enfraquece a noção de solidariedade. Favorece o contato com a diferença e acentua fundamentalismos. Possibilita o desenraizamento, a xenofobia e a crise de identidade. A verdade tornase particular. Império do subjetivismo. O individualismo contemporâneo, já mencionado, bem ilustra tal afirmação. O pluralismo cultural e religioso, ao enfraquecer o relato cristão, desafia a Igreja no tangente à evangelização. Cresce a consciência da necessidade de uma evangelização capaz de dialogar com a singularidade e multiplicidade das experiências religiosas, na acolhida e respeito às diferenças. No universo fractário de muitos pequenos relatos e choques de alteridades, amplia-se a crise de identidade. À crise de paradigmas e à desvalorização dos ideais de vida em comunidade, somam-se a descrença dos valores transmitidos pela fé e a instrumentalização da religião e de Deus. Desloca-se o conceito de sagrado e ―[...] Deus tende a ser transformado em objeto de ‗meus desejos‘, a religião, bem de mercado em busca de prosperidade material e de saúde física e psíquica‖ (BRIGHENTI, 2004, p. 77). Emergem religiões pessoais e de relações de troca de favores com o sagrado. Configurada como produto, a espiritualidade reduz-se a bem de mercado. Instala-se como desafio para a Igreja, produzir reflexão teológica e práxis capazes de responder a tais situações e, com responsabilidade, afrontar a realidade da vida em áreas urbanas. A ética cada vez mais cede lugar aos anseios de uma estética hedonista, comprometida com a obtenção do lucro e à realização das singularidades. O desafio, ―nesse campo, está em anexar a técnica e o conhecimento científico à ética, capaz de dar-lhes uma dimensão teleológica, de finalidade, de razão, mais além do lucro e do progresso pelo progresso‖ (BRIGHENTI, 2004, p. 74). 5- O posicionamento da fé cristã frente à globalização A globalização, ainda que totalitária e perversa, porta as condições de possibilidade do novo: a rejeição do processo de desumanização e a gestação de 312 outra globalização. Em contraposição à globalização que se impõe descendente, há um movimento ascendente, vindo da periferia. Tal movimento tem a marca do ―[...] crescente desencanto com as técnicas, acompanhado por uma gradativa recuperação do bom senso, em oposição ao senso comum [...]‖ (SANTOS, 2004, p. 119). Podemos constatá-lo presente na resistência de culturas locais a preservar sua identidade, na valorização da diversidade em detrimento à homogeneização e na difusão de comunidades alternativas que se opõem ao consumismo e cultivam estilo de vida comprometido com a preservação do ecossistema. Neste cenário, a fé cristã emerge como inspiração e fonte de vigor profético a motivar e sustentar as iniciativas em prol do bem comum. A globalização atual requer interpretação multidisciplinar que desvele o papel da ideologia na produção da história, a fim de mostrar os limites de seu discurso frente à realidade vivida pela maioria das nações (SIDEKUM, 2002, p. 193). A Teologia e a fé cristã têm muito a contribuir em prol da construção de uma globalização humana. Os valores cristãos possuem alcance mundial e apontam caminhos de vida. Eticamente, o comprometimento com a promoção da vida deve encontrar solo fértil nas comunidades eclesiais. A fé não é experiência individual, apologia do narcisismo, mas se expressa no plural do ―nós‖ que se dispõe e propõe crescer na presença provocadora e desafiadora do outro. A Igreja, a exemplo Jesus, deve seguir comprometida com a causa dos pobres, despojando-se do desejo do poder que escraviza, como condição para estender a mão aos excluídos. Segundo Comblin, se ―o cristianismo favorece o espírito de liberdade e de iniciativa [é] exatamente para dominar o mercado [e, assim] defender os direitos dos pobres e dos fracos e limitar o poder dos grandes‖ (COMBLIN, 2001, p. 78). A fé cristã exerce sua vocação profética na medida em que denuncia a opressão, se empenha na promoção do amor universal, recusa-se a defender interesses particulares. A vida cristã em comunidade pressupõe visão integradora dos aspectos globais e locais e a busca da inclusão dos marginalizados. Por meio de constante diálogo e abertura ao outro, a fé cristã promove o respeito à diversidade e a coexistência pacífica, uma vez que ―a plena dignidade do sujeito se experimenta no encontro com os demais. Este princípio denuncia qualquer forma de 313 discriminação, de exclusão e de opressão‖ (FRANCO, 2006, p. 22). Diante dos anseios atuais, compete à fé cristã difundir os valores de partilha, solidariedade, inclusão e respeito, por meio de uma práxis comprometida com a promoção da vida. 6- Conclusão Constatar o novo cenário desenhado pelos traços da globalização atual e pelo conflito entre global e local evoca a fé e a práxis cristã comunitária e pessoal. O problema toca a todos. Cada comunidade e pessoa de fé deve se colocar na atitude questionadora de rever o horizonte de suas opções fundamentais. Algumas perguntas podem nortear esse percurso: Como, a partir de meu lugar, interajo com esse processo? Como o todo me afeta? O que faço localmente em vista do global? Como construo minha consciência crítica e autônoma a partir do cotidiano de minhas escolhas? Para além dos desmandos da globalização atual, percebemos frutíferas iniciativas como o Fórum Social Mundial, a luta das minorias pela defesa dos direitos humanos e a resistência de culturas locais. A possibilidade do novo nasce da tomada de consciência da situação de opressão e de sua negação. O momento de crítica ao sistema constitui passo importante nesse processo. ―Outro mundo é possível‖! Não se trata de frear o aparente irrefreável processo de globalização, mas de compreendê-lo e vivenciá-lo como oportunidade e promover uma globalização humana, comprometida com a vida. Compete assumirmos a tarefa de redirecionar a vida ao centro de nossa práxis e, a partir do horizonte ético-cristão, humanizar a globalização. 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A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Relógio d‘água, 1989. ______. Futuro da autonomia e sociedade do indivíduo. In: O futuro da autonomia: uma sociedade de indivíduos? Org.: NEUTZLING, Inácio. BINGEMER, M. Clara. YUNES, Eliana. Rio de Janeiro: Editora PUC – RIO; São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009. NIETZSCHE, F. W. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Lisboa: Edições 70, 1988. SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. SIDEKUM, A. Ética e alteridade: a subjetividade ferida. São Leopoldo: Unisinos, 2002. VATTIMO, G. Addio alla verità. Roma: Meltemi, 2009. ______. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio d‘água, 1992. 315 A GLOBALIZAÇÃO ATUAL E A PERSPECTIVA BÍBLICA DA JUSTIÇA Rita Maria Gomes162 Resumo: A presente reflexão tem por objetivo pensar a globalização considerando sua complexidade e ambigüidade, sobretudo, os riscos de uma globalização sem instâncias reguladoras. A globalização é uma realidade e para além da contribuição grandiosa nas áreas da comunicação e ciência, gera graves problemas sociais devido ao modelo econômico capitalista que lhe é inerente. Globalização e Capitalismo são responsáveis pela exclusão social crescente. Conscientes desta realidade buscamos caminhos que contraponham a institucionalização das injustiças decorrentes. Propomos uma abordagem ética baseada na compreensão bíblica da justiça. Promover a vida em sua integralidade, eis o que é justiça para o testemunho bíblico. Palavras-chave: Globalização, Tradição bíblica, Justiça 1. Introdução Pensar a globalização atual implica detectar as ambiguidades que tecem as tramas do mundo, tais como a política, a social, a econômica. A consciência da ambivalência subjacente a esse momento histórico reclama constantemente a consideração dos aspectos positivos e negativos do mesmo, visando à defesa de uma atitude justa e uma coerência no discurso e que vá além dele. Por sua vez, a reserva que denuncia os limites e lança questionamentos pode evitar a sedução desumana e injusta dos sistemas de produção e consumo que gera 162 Mestranda do programa de pós-graduação em Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE; [email protected]. 316 exclusão e injustiças. Para salvaguardarmos a justiça e a proteção da vida necessitamos olhar crítico frente ao nosso mundo. Manter a justiça em nossas relações, nos diversos âmbitos, é uma exigência da nossa condição humana, uma vez que nos compreendemos como seres de relação. Essa é a concepção da tradição cristã que entende o ser humano como portador de uma dignidade fundamental e ser essencialmente ―relacional‖. Nisso se distingue da sociedade ocidental que o vê como ser autônomo (GROODY, 2OO9, p. 61). A globalização é de uma complexidade ímpar e não pretendemos em nossa consideração banalizá-la. Mas, configura-se como exigência metodológica delimitar a abordagem e com isso corremos o risco de parecermos reducionistas e ignorar outros tantos aspectos do problema. Não é esse o caso. Por isso faremos nossa consideração partir de nosso lugar existencial, como sujeitos de fé e cidadãos do mundo global. Propomos uma abordagem ética baseada na compreensão bíblica da justiça no intuito de iluminar a práxis comprometida com a vida. Para tanto, apontamos a relação entre globalização e mercado. Em seguida situamos a problemática da justiça na Bíblia e frente à globalização e por fim buscamos posição ética para a globalização atual. 1. Globalização – a face do mercado A globalização atual é fruto de um longo processo que teve sua origem no século XVI, com o descobrimento do ―novo mundo‖ e o início dos tempos modernos. Esses eventos foram os precursores das Luzes e da Revolução Industrial (HERR, 2007, p. 110). A globalização pode ser compreendida pelas noções de ―emancipação‖ e ―autonomia‖ em relação às instâncias religiosa, política e ética. A instância reguladora das ações e relações humanas passa a ser o mercado e não a ética provinda da religião ou da política. Os Estados não mais detêm a ―regra do jogo‖. Embora o processo de globalização seja, sobretudo econômico e técnico, está intimamente articulado com as diversas dimensões da vida em sociedade (HERR, 2007, p. 112). Consequentemente todos os âmbitos da vida humana são marcados pela lógica mobilizadora da engrenagem econômica. A questão candente do mundo capitalista globalizado, movido pelo mercado, está em sua dinâmica progressista marcada pela satisfação dos desejos. Com a 317 geração de falsas necessidades, cria-se um círculo vicioso do consumo. Este abarca desde o nível mais particular, o indivíduo, ao mais universal, as organizações nacionais e internacionais, já que estamos falando de uma ―aldeia global‖. A ideia de progresso é a mola propulsora do capitalismo mundializado. O capitalismo é basicamente um movimento contínuo em busca de mudanças ou superações. Sempre há o que melhorar e aperfeiçoar. O sucesso econômico é o objetivo a alcançar a qualquer custo. Isso pode ser positivo do ponto de vista do crescimento econômico e técnico e no desenvolvimento das capacidades humanas (HERR, 2007, p. 113). Contudo, o capitalismo globalizado tem uma face destrutiva que aparece especialmente nos âmbitos social, familiar, cultural e também religioso, sob a forma de banalização da vida em favor do lucro. 2. Justiça X injustiça no mundo globalizado Dentro deste cenário, a questão central consiste em saber se essa dinâmica capitalista que transforma a pessoa em mero consumidor é justa? Que lugar ocupa os milhões que não atendem à condição de consumidores? Assinalamos que o ser humano não se reduz a ―comprar‖ e a ―vender‖. A superestrutura do mercado formata-se como um ―darwinismo social‖ (SOLANO ROSSI, 2002, p. 86) ao qual sobrevivem aqueles que conseguem passar da condição de sujeito social de direitos inalienáveis à de ―consumidor potencial‖. A discussão no capitalismo deixa de ser sobre necessidades básicas de sobrevivência e passa a considerações subjetivas da satisfação de desejos de posse de mercadorias de última geração, sobretudo no campo tecnológico. O desenvolvimento tecnológico impulsiona a Globalização. Unidos ao Capitalismo se retroalimentam e ampliam a exclusão social. No mundo cuja racionalidade considera não-ser aqueles que não podem consumir, as vítimas da globalização atual alcançam altos índices. O sacrifício do trabalho e exploração de muitos se justifica para que os poucos detentores do poder de compra, possam efetivamente consumir. As propagandas nutrem o desejo de posse de produtos apresentando-os como ―necessários‖ para o bem viver. Essa lógica do ―consumo, logo existo‖ alimenta sujeitos hedonistas, livres de considerações éticas (HERR, 2007, p. 114). A 318 ―necessidade‖ define-se aqui pelo ―desejo‖ de consumo. Daí o imperativo de algum tipo de controle por parte do âmbito político e ético sobre o sistema de mercado. Segundo Solano Rossi, o único desejo humano reincidente tem haver com a existência, com a vida em sua imediatez, como a fome, e não com as posses. Mas isto não é problema ou preocupação do sistema mercadológico, é uma questão humana, antropológica. Por isso, para Herr, seria necessário ―controle político, para que o econômico seja posto a serviço do político como responsável pelo bem comum a partir de então mundial [...] controle ético, para que essas forças estejam a serviço da humanidade e não destruam sua dignidade...‖ (HERR, 2007, p. 116). A mentalidade produtivista da globalização é um dos seus principais problemas e perpassa de modo velado a lógica da vida comum. Nela o justo passa a ser o eficaz e com isso há uma inversão tácita de valores que obscurece a dignidade da pessoa, agora medida por sua capacidade de produção e consumo. Objetivamente, para o mundo movido pelo capitalismo globalizado regido pelo mercado, a dignidade não reside no valor intrínseco do indivíduo, mas na capacidade de moldar-se a essa lógica mercadológica. Inevitavelmente, os menos qualificados ficam a margem da sociedade globalizada. 3. A Bíblia e a questão ética da justiça Frente ao panorama global e seus desafios a justiça, enquanto virtude ética, emerge como questão. Configura-se como ponto de partida para a defesa da humanidade, a fim de impedir um processo desumanizador irreversível. Cabe-nos esclarecer dois pontos. O primeiro visa à delimitação da questão. Optar refletir a justiça pelo viés bíblico e não a partir da filosofia grega, justifica-se pelo alcance conceitual e a perspectiva antropológica de abertura ao transcendente, ou seja, o homem enquanto sujeito crente. Outra razão é a percepção de uma limitação no conceito grego que institui uma separação entre os ―atos‖ e o ―sujeito agente‖. O segundo tende à clareza. Tomamos a Bíblia em seu sentido mais profundo, como Palavra de Deus, narrativa da história de nossa salvação. A aliança de Deus com a humanidade sendo o pressuposto fundamental. Para a visão cristã esta aliança se torna definitiva em Jesus Cristo. 319 Nossa aproximação bíblica da justiça tem como acento o estudo do Antigo Testamento, uma vez que o Novo Testamento relê a questão da justiça mantendo o núcleo veterotestamentário, mas apresentando como distintivo essencial a noção de ―plenificação‖ em Jesus. O resgate veterotestamentário da noção de justiça ajudanos a compreender melhor o ensinamento de Jesus Cristo como ―cumprimento de toda justiça‖ (Mt 3,15). Não há um único termo para expressar nossa ideia de ―justiça‖ no AT. Na Bíblia o tema aparece de modo bastante variado e nem sempre condiz com o desenvolvimento posterior (McKENZIE, 1983, p. 525). As expressões privilegiadas para falar da justiça são variações das palavras sedaqah e mishpat. Sedaqah visa mais as noções de juízo e retidão, nesse sentido é muito mais que um termo legal. Mishpat refere-se mais a juízo. A linguagem comum utilizou esses termos e seus correlatos como categoria jurídica. Quem julga deve fazê-lo com justiça (Lv 19,15; Dt 1,16). A literatura sapiencial e os salmos tomam o termo mais no sentido de boa conduta moral. Os textos proféticos como meio de salvação e assume ainda os sentidos de libertação e justificação. Mas, para além dos termos, a justiça é algo que se faz; e fazer justiça é socorrer os outros em suas necessidades. 4. A globalização atual à luz da perspectiva bíblica da justiça Os termos privilegiados pela Escritura para falar da justiça não devem ser tomados nem reduzidos à conotação de elevação moral, espiritual, pois a palavra sedaqah refere-se mais à ―interdependência das relações humanas e implica uma atenção profunda às necessidades dos demais‖. Desse modo, sedadah é antes de tudo retidão social e visa a integralidade das pessoas. Para o pensamento bíblico há três classes de pessoas que são ícones da exigência ética de justiça enquanto ―socorro à necessidade‖. São elas: órfão, viúva e estrangeiro. Estes são os legalmente desamparados. Necessitados de socorro. A sedaqah na Bíblia e no judaísmo em geral é um preceito inalienável, presente no shemah (credo judeu) e que perpassa toda a vida do judeu piedoso. O mesmo termo usado para dizer ―esmola‖ é usado para dizer ―justiça‖. Portanto, o oferecido como esmola faz parte das posses daquele que coloca seus bens a serviço do empobrecido. Assim, a justiça ultrapassa o sentido moral e religioso da caridade. 320 Nesse ponto específico percebemos a sutil distinção entre a perspectiva bíblica e a perspectiva filosófica grega da justiça. Ambas são importantes e contribuíram para o desenvolvimento e aplicação do direito nas relações humanas, sobretudo, no âmbito social. Contudo, a perspectiva bíblica vai além de uma compreensão distributiva ou retributiva. Ela é restauradora da dignidade humana e por isso mesmo é libertadora. Considerando a compreensão bíblica em que fazer justiça é socorrer os outros em suas necessidades, principalmente as mais básicas, podemos questionar fortemente o sistema ―darwiniano‖ de mercado e buscar saídas solidárias. Para a ética bíblica fazer sedaqah é uma obrigação. A complexidade da questão não pode justificar uma atitude fatalista em relação à mesma. Pensamos ser possível encontrar caminhos que promovam a vida ou ao menos limitem o poder destruidor do sistema econômico vitimizador. O grande desafio consiste em procurar meios que não implodam o sistema econômico, não o sacralize, nem permita a institucionalização da injustiça, em que o sacrifício de milhões de vítimas seja legitimado. O enfrentamento deste desafio não é uma opção, mas um dever. Nesse sentido a concepção bíblica de justiça reclama a defesa do pobre, do marginalizado, do necessitado como um compromisso de todo ser crente e consciente de ser parte de um todo e por isso deseja viver em comunhão com os outros humanos e com o mundo. 5. Conclusão Um dos pontos mais positivos da globalização, via comunicação em nível mundial, foi a conscientização de que somos uma pequena parte dentro de nosso mundo, nosso planeta, um pequena parte do universo e em conseqüência disso, o ser humano passou a se entender como partícipe de algo maior. Essa consciência criou a necessidade de refletir sobre a interdependência de nossas relações. Elas não foram uma invenção, apenas apareceram melhor a nossos olhos e exigiram ser pensadas. Partindo dessa conscientização a práxis cristã questiona a globalização atual enquanto a percebe como processo expansivo e, aparentemente sem instância limitadora, em vista de uma defesa da vida. Tomamos a vida em sentido amplo, em todas as instâncias. Fazer justiça no mundo global, segundo a perspectiva bíblica, consiste em defender a causa dos desamparados, pela lei e pela falta de condições mínimas de sobrevivência. 321 O imperativo do sistema capitalista econômico é o progresso, indiferente aos milhões de vítimas sacrificadas para a manutenção do mesmo. O imperativo éticoreligioso é o ―socorro‖ aos menos favorecidos, criando modos de inserção e oportunidades. Não um assistencialismo que os transforme em peso ou carga para a sociedade que produz, mas incluindo-os nesse processo de modo digno e transformante. O resgate da compreensão bíblica de justiça visa assegurar a vida das vítimas do sistema. Por isso a justiça bíblica não se permite reduzir a conotações de elevação moral, espiritual. Fazer sedaqah refere-se às relações justas que possibilitam um resgate integral da pessoa em vista de sua dignidade fundamental. A justiça ultrapassa o sentido moral e religioso da caridade. Caridade não é justiça, e em nosso tempo, transformou-se numa sutil forma de calar a consciência que reclama por justiça. REFERÊNCIAS A BÍBLIA DE JERUSALÉM. 7. ed. São Paulo: Paulus, 1995. GROODY, Daniel G. Globalización, espiritualidad y justicia: navegando por la ruta de la paz. Estella: Verbo Divino, 2009. HERR, Édouard. Bíblia e Mundialização. In: MIES, Françoise (org.). Bíblia e economia: servir a Deus ou ao dinheiro. São Paulo: Loyola, 2003. McKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1983 SOLANO ROSSI, Luiz Alexandre. Messianismo e modernidade: repensando o messianismo a partir das vítimas. São Paulo: Paulus, 2002. FARIA, Jacir de Freitas. ―A releitura do Shemá Israel nos evangelhos e Atos dos Apóstolos‖, RIBLA, Petrópolis - RJ, vol. 3, n. 40, p. 52 – 65, 2001. 322 GT 14: JUVENTUDE E RELIGIÃO NA (PÓS) MODERNIDADE Coordenação: Dr. Flávio Munhoz Sofiati Resumo: A proposta da Mesa Temática é apresentar uma discussão acerca da questão juvenil e da presença do elemento religioso na trajetória de jovens participantes de movimentos presentes no interior do catolicismo. Nessa perspectiva, apresenta-se uma discussão acerca dos elementos teóricos que envolvem os estudos na área de religião e juventude; um debate em torno de uma experiência prática de trabalho com juventude no interior do catolicismo; e uma comunicação acerca da juventude em suas manifestações e adesões ao universo religioso. A mesa busca articular as três comunicações propostas em torno de questões que envolvem as noções de modernidade e pós-modernidade nos estudos da sociedade contemporânea. 323 JUVENTUDE E RELIGIÃO NA CONTEMPORANEIDADE Lourival Rodrigues da Silva163 Resumo O presente texto busca apreender os vínculos entre juventude e religião no contexto contemporâneo, examinando os aspectos relativos à socialização da juventude no campo religioso com suas influências e interesses. Aborda a juventude na perspectiva de agrupamento geracional, com suas realidades e perspectivas a partir da religião, como um entre os lugares privilegiados de socialização, enquanto dimensão na construção da identidade juvenil. Palavras chave – juventude – religião – contemporaneidade 1. Juventude: aspectos conceituais A temática da juventude tem nas últimas décadas, ocupado a agenda de estudiosos de áreas cientificas diversas. A questão juvenil emerge nos cenários públicos – meios de comunicação, instancias estatais, universidade, instituições governamentais, não governamentais e setores da sociedade civil, bem como em instâncias especificas para investigar a juventude e seus múltiplos discursos. Esses interesses envolvem diversos atores contemporâneos com diferenciados aspectos: entender essa geração, medo da violência, necessidade de controle, consumidores para o mercado, aliados ideológicos e seguidores da moda. ―Às vezes, esses olhares vêm carregados de um discurso ―ilusório de inclusão, de consumo e de tolerância às diferenças‖ (ESCOBAR, 2005, pág. 11.). O modo de pensar do mundo adulto sobre a juventude é resultado de visões conceituais agregadas de valores e preconceitos. Helena Abramo aponta que ao longo da história, a juventude foi qualificada em geral como: período em que o sujeito se prepara para ingressar no mundo adulto, sobretudo por meio da escola, mas, também compreendida como etapa problemática da vida, marcada por conflitos e tensões. Abramo diz que só recentemente estaria mudando esse Mestre em Ciências da Religião - Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2006). Especialista em Juventude UNISINOS (1999). Coordenador da Pós-graduação - Especialização “Juventude no Mundo Contemporâneo” – Rede Brasileira de Centros e Institutos de Juventude e Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE. Conselho Diretor da Casa da Juventude Pe. Burnier. 324 paradigma, para serem vistos como atores com potencial estratégico ao desenvolvimento, que demandaria a necessidade de programas e projetos que o contemple e que passassem a serem vistos como ―sujeitos de direitos que se constrói como ser autônomo‖ (ABRAMO, 2005, pág. 22,). No exercício de compreender a juventude não basta o recorte etário, é necessário considerar os aspectos biológico, antropológico e sociológico que interferem também na forma como os próprios jovens se percebem enquanto geração. Cabe destacar outros recortes - como o gênero, a diversidade sexual, as questões raciais que aparecem como importantes aspectos na compreensão da juventude na contemporaneidade. O contexto atual de rápidas transformações tecnológicas ocorridas nos diferentes campos: econômico, social, religioso, cientifico, influencia diretamente o modo de ser jovem na perspectiva geracional. 2- Os Jovens e a Religião na Contemporaneidade O envolvimento dos jovens em agrupamentos em diferentes espaços como o escolar, o familiar, o religioso, o cultural e o lazer é fundamental para o desenvolvimento das identificações juvenis. Essa experiência possibilita a aprendizagem e as bases para a formação da auto-imagem nas relações e interações sociais. Essa socialização passa por uma rede complexa de agentes e agências: ―passando por instituições religiosas, culturais, econômicas e políticas das quais, emergem códigos de condutas e as sociabilidades que norteiam os comportamentos em sociedade‖ (PRÁ, 2004, pág. 82), construindo, assim, um capital social164, que responde às buscas dos jovens em diferentes contextos. Na busca de se dinamizar as diferentes realidades juvenis, as igrejas têm se estruturado no sentido de se adequarem as demandas da juventude, utilizando-se de instrumentos musicais como baterias e guitarras, que não acontecia nos rituais tradicionais. Os Evangélicos e o Movimento Carismático Católico são os que mais têm demonstrado ―adequações‖ para a diversidade juvenil. Surgem as Cristotecas ou os pubs evangélicos e os shows gospel. Ouve-se shows com danças e músicas 164 - O capital social segundo Schmidt, quer dizer a maneira como as pessoas estabelecem a construção da democracia a partir de fatores de natureza subjetiva, a partir da confiança, da solidariedade recíproca que se constroem na convivência, no estabelecimento de redes, de normas, valores e cooperação entre as pessoas em busca de objetivos comuns. A idéia inclui diferentes metodologias e abrange relações e organizações formais e informais. Possui níveis de confiança entre as pessoas, as atitudes favoráveis à cooperação com os outros (familiares, vizinhança e a participação comunitária e religiosa), com diferentes manifestações: recreativas, esportivas, culturais, de classe (SCHMIDT, 2004, pág. 147). 325 de rock pop, gospel, hip hop, funk, country, pagodes e, até mesmo, sertanejo, tudo em contraste com os mantras dos mosteiros e os cantos reivindicatórios ou contestadores das CEBs165. É preciso considerar que, apesar dos traços de modernidade, o conteúdo desses movimentos pentecostais são bastante conservadores, entretanto são vistos pelos jovens e pelos pais como espaços de socialização, diversão e fé, livre de drogas, álcool e sexo livre. Segundo Bellotti, essas dinâmicas de acolhimento adotadas pela corrente neopentecostal, faz toda a diferença sobre os jovens e ―captam mais fiéis, pois os jovens não se sentem julgados pela roupa que vestem, pelo visual, pela linguagem, e se essa igreja aceita os jovens como são subira no conceito deste e terá mais adeptos‖ (BELLOTTI, 2008, pág. 22). Costa afirma que na segunda metade dos anos noventa, do século passado, algumas igrejas evangélicas passaram a ter como foco a evangelização de determinadas culturas juvenis e passou a chamá-los de comunidade undergroud. Os jovens pertencentes a esta comunidade, inicialmente, eram os punks, carecas, heavy-metal (metaleiros) e rappers166. Segundo a autora, várias igrejas passaram a cooptar esses jovens oferecendo proteção, reconhecimento e espaço a esses grupos juvenis, oferecendo apoio, cedendo equipamentos, com liberdade para curtirem seus sons e até mesmo gravações na internet (COSTA, pág. 56, 2004). Assim, os jovens podem ser eles mesmos sem mudar seu modo de vestir, seus cabelos, seus adereços, suas musica, shows e encontros culturais. Carmem Lúcia Teixeira diz: ―O movimento religioso da juventude, diante das diversas ofertas, é uma realidade e que as trocas de igrejas são tratadas como algo até necessário para a sua vivência. A religião faz parte da busca do/a jovem na perspectiva de construção de sua identidade e, também, de sua participação na sociedade. Esse movimento dos/as jovens entre as Igrejas para ver qual oferece a melhor proposta, é também uma constante da cultura religiosa atual‖ (TEIXEIRA, pág. 74, 2006) Essa afirmação se confirma com a reportagem da revista Época, de 15 de junho de 2009, trazia em destaque a chamada ―Deus é Pop‖, onde chamava a atenção para a liberdade de expressão dos jovens e a liberdade das igrejas com 165 - Comunidades Eclesiais de Base, surgida nos anos oitenta e que movimentou a igreja durante duas décadas, tendo como base a Teologia da Libertação. 166 - “Todos esses jovens que, segundo essa igreja e seus pastores, gostam de ouvir som pesado e são marginalizados e discriminados devido ao uso de tatuagem, adereços, cortes de cabelo, roupas especificas, fama de drogados e, em alguns casos como acontecem com os carecas, tidos pela sociedade como violentos e intolerantes (Costa, pág. 46, 2004). 326 estes. Enfocando que as caracterizações dos jovens (piercings, tatuagens, decotes, bermudas, camisetas com estampas...) são toleradas e aceitas com tranqüilidade nos templos das igrejas neopentecostais (ÉPOCA, 2009, pág.66). 3- As tendências da prática religiosa juvenil A vivência religiosa como expressão cultural, tem ocupado um papel importante na vida dos jovens e está presente no cotidiano da sociedade, sendo elemento catalisador dos medos, perspectivas, aceitações entre os/as jovens. Os jovens identificam a religião com a vida, com o viver. Para eles, ―Deus é tudo‖. Assim como disse ELIADE: “O homem religioso só consegue viver em atmosfera sagrada. Sagrado e o real = poder, eficiência, fonte, fecundidade – desejo do homem de situar-se na realidade objetiva, não se deixar levar pela realidade subjetiva. Viver real e eficiente. O desejo do homem religioso é mover-se em um mundo santificado – espaço sagrado” (ELIADE, 2001, pág. 13). A religião e a fé para os jovens é algo dinâmico, implica uma ação e uma atitude metodológica de agir. Esse agir é resultado da possibilidade de realizar-se enquanto pessoa. Daí a idéia de que a religião é, para eles, um jeito, meio, caminho, capacidade de fazer, servir, proteger, pedir. É opção que as pessoas fazem para se ligar a algo. ―Uma pesquisa realizada por um instituto alemão em alguns lugares do mundo, diz que 95% dos jovens brasileiros entre 18 e 29 anos se dizem religiosos e 65 % afirmam ser ‗profundamente religiosos‖ (ÉPOCA, 2009, pág. 64,). Mas quando perguntados sobre o que é a religião, acabam respondendo o que esperam que a religião lhes ofereça em termos de qualidade, espírito e conteúdo, pois, desejam uma religião que seja boa e que traga a paz de espírito. Na mesma pesquisa quando perguntados se pensam em religião, 29% dos entrevistados dizem que ocasionalmente; 32% dizem que freqüentemente e 16% muito frequentemente. Daí a idéia de que a religião seja algo superior, que tenha força para atender suas dores, tristezas, amor, alegria e que seja o lugar para crer em Deus e sua essência. Quando perguntados se Deus é uma força maior, 86% concordam totalmente contra 05% que discorda totalmente. Para a maioria, Deus é perfeição, bondade, misericórdia, força, vida. Para eles Deus faz a mediação das relações entre as pessoas o que traz implicações diretas na visão de mundo e nas relações sociais. 327 A religião no modernidade esta mais difusa, eclética,m bebendo nas diferentes fontes da fé sem se comprometer com nenhuma forma de religião especifica. Esse tipo de religião responde às pessoas e aos jovens preocupados com saúde, desequilíbrio psíquico, ameaça à biosfera e outros. Mardones diz que esta religiosidade pode ser entendida como uma religiosidade adequada ao uniformismo funcionalista da tecnologia e do domínio do consumismo mercantilista. É uma saída para as necessidades religiosas do indivíduo do neoliberalismo e da globalização, oferecendo sobre tudo à juventude uma segurança frente ao descontrole do mundo e das ameaças. Essa religiosidade se fundamenta nos recursos dos anjos, espíritos protetores dos antepassados, dos fenômenos paranormais, do inexplicável, das visões e das viagens astrais, apresentando-se como um contrapeso ao mercado flutuante, à impotência do Estado e aos traumas da modernidade. Não se pode negar que há muitos jovens respondendo satisfatoriamente a viver a religião com centralidade nas emoções e com pouco vínculo a valores institucionais, às estruturas de paróquia e à figura de autoridade. Há, nestes jovens, um sagrado, mas um sagrado mais privado, ―light”, menos exigente, com rejeição à religião institucionalizada. É crescente, também, a religião neopentecostal (baseada na idéia de que a vida do individuo é conduzida unicamente pelo Espírito Santo). O neopentecostalismo167 começa nos anos 70 com a terceira onda que, durante os anos 80 e 90, cresce e se desenvolve conforme a referência aos sinais do sobrenatural. O neopentecostalismo passou a ser referenciado para designar o modelo adotado por algumas igrejas de origem ou inspirada no pentecostalismo, incorporando nas décadas recentes características próprias ―como ênfase em revelações diretas, cura, batalha espiritual, e particularmente uma maneira sobrenaturalista de encarar a realidade espiritual‖ (NICODEMOS, 2004, pág. 15). 167 - Igrejas neopentecostais no Brasil; Nova Vida, fundada em 1960, no Rio de Janeiro. Universal do Reino de Deus (Rio 1977) respaldada no discurso da teologia da prosperidade e os ministérios da “libertação” com o enfrentamento do demônio. Internacional da Graça de Deus (Rio, 1980 adota a metodologia da universal: cura, exorcismo e prosperidade. Renascer em Cristo (São Paulo, 1986) com presença no Brasil, Uruguai, França, Estados Unidos, Espanha e Portugual, possui uma linguagem e uma metodologia voltadas para a comunicação com o público jovem. Comunidade Evangélica Sara a Nossa Terra (Goiás, 1976) seus fiéis vem da classe média. Presença maior no sudeste e no centro oeste, também, em Portugal, Paraguai e Estados Unidos. Bola de Neve igreja fundada em 2000 pelo surfista Rinaldo de Seixas Pereira, o pastora Rina. Organizada para atender, sobretudo, jovens com espírito esportista. 328 Para as igrejas neopentecostais, para se ter acesso aos bens materiais aqui e agora, é necessário, primeiro, adquirir bens espirituais que podem ser obtidos através das bênçãos, curas, unção, correntes de oração, sacramentarios (óleo, sal, Terra Santa, água...), jejum, exorcismo... O neopentecostalismo tem-se colocado como a manifestação religiosa que dá uma resposta imediata e eficaz para as necessidades (materiais, emocionais, espirituais, psicológicas...) e trazendo benção de prosperidade e paz. Nessa manifestação religiosa, qualquer pessoa pode falar em línguas, pregar e ter acesso direto a Deus, sem mediação. A graça é obtida pelo tamanho do desprendimento financeiro, ou seja, da oferta e do dízimo. Até nomesfantasias são utilizados na sua proposta de expansão para melhor entrar dentro da cultura como em Hong Kong, em que a igreja recebe o nome de ―Centro de Ajuda Coletiva‖. Assim, as igrejas neopentecostais, em especial a Igreja Universal do Reino de Deus – IURD - segue crescendo dentro do lobby, do marketing e da metáfora do templo como lugar do teatro da fé e do hipermercado a oferecer o que as pessoas buscam. Essa tendência neopentecostal exerce forte atração sobre a juventude. Essa atração está ligada a experiências afetivas e pessoais. ―São igrejas que abrem vários espaços para esses jovens atuarem com uma linguagem própria e um variado jeito de ser‖ (BELLOTTI, 2008, pág. 22,). Sobre a pratica religiosa uma parte considerável da juventude que participa das atividades religiosas nas diferentes confissões apontam para uma falta de dinamização dos momentos celebrativos, conhecidos por cultos ou missas. Eles/as acham esses eventos desinteressantes, demorados, desatualizados. Reclamam, ainda, da hipocrisia, das proibições dogmáticas, das cobranças, do autoritarismo, das cobranças de taxas financeiras por parte dos bispos, pastores e padres. Há, também, por parte de jovens, ―resistências à postura da igreja frente ao aborto, homossexualidade, métodos anticoncepcionais e à concepção de pecado. Ainda não se pode esquecer a existência daqueles que preferem uma igreja com postura conservadora‖ (SCHMIDT, 1996, p.109). Sobre a pergunta clássica sobre o que os jovens estão buscando na religião: ―Há diferentes jovens, há diferentes tipos de buscas. Uns querem estabilidade, tradição, um porto seguro. Outros querem um espaço de sociabilidade seguro, sem abdicar da cultura pop; outros querem paz interior, respostas para suas angustias. Muitas vezes, querem ter um espaço para se engajar em projetos, exercitar suas habilidades artísticas, sentirem-se importantes e atuantes. Há diversas religiões, o que permite acomodar diversas desejos e anseios. Se o jovem se cansa de um, pode procurar outra, assim como qualquer adulto‖ (BELLOTTI, 2008 pág. 22). 329 A religião, com seu sistema de símbolos, têm conseguido influenciar no modo de ser e agir dos/as jovens, apresentando-lhes motivações e propondo formas para se socializarem e relacionarem com o mundo. Algumas considerações finais O contexto contemporâneo da globalização criou relações funcionais, mercantis e consumista e transformou a juventude em fatia do mercado. Como conseqüência, gerou uma busca de identificação por parte dos agrupamentos juvenis. Assim, religiosidade emergiu como expressão cultural que tem ocupado um papel importante na vida dos jovens Ela é um elemento catalisador dos medos e orientador de perspectivas . Os jovens, como as demais pessoas, esperam que a religião lhes ofereça as crenças e os conteúdos para viveram. Eles desejam uma religião que seja boa, que traga a paz de espírito. Uma religião que esta seja superior e tenha força para atender suas dores, tristezas, amor, alegria sendo o lugar para seu acreditar em Deus e sua essência. A internalizarão da religião serve para dar um conteúdo ético aos jovens que vivem em um processo de mudança. Outros têm encontrado, na religião, uma das formas de se expressar no mundo, é o lugar da manifestação do sagrado. Assim, ela se torna produtora de sentido para as pessoas e, sobretudo, para os jovens, que têm encontrado, na pastoral, uma significação para sua existência. REFERÊNCIAS ABRAMO, Helena Wendel. Espaços de Juventude. Ir: In: Políticas Publicas: juventude em pauta. Organização: Maria Virgínia de Freitas, Fernanda de Carvalho Papa. São Paulo: Cortez, Ação Educativa, Friedrich Ebert Sftung, 2003. BELLOTTI, Karina. Em busca do Reino dos Céus, Revista IHU - SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2008 | EDIÇÃO 273. www.unisinos.br/ihu ELIADE, Mircea. O Sagrado e Profano. A essência das religiões. Traduzido por Rogério Fernandes. Martins Fontes. São Paulo. SP: 2001. Paginas 13 a 57. Revista Época, 15 junho 2009. ESCOBAR, Manuel Roberto, MENDONZA, Nydia Constanza. Jovens Contemporâneos: Entre la heterogeneidad y lãs desigualdades. Revista Nómadas. Instituto de estúdios Sociales Contemporâneos – Universidad Central. Buenos Aires, 2005. MARDONE, José Maria. Neoliberalismo e religión. La religión em la época de la globalización. Navarra: Verbo Divino, 1998. 330 MARIANO, Ricardo. Neopentecostais – sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. Loyola. São Paulo, 1999. NICODEMOS, Augustus Lopes. Desafio Hermenêutica: www.portalbrasil.eti.br/religiao_cristaos_independentes.htm Neopentecostalismo PRÀ, Jussara Reis. (Re)socializar é preciso: aportes para uma releitura sobre gênero e juventude no Brasil. In. Democracia, Juventude e Capital Social no Brasil. Org. Marcello Baquero. UFRGS, Porto Alegre, 2004, p. 79 a 119. SCHMIDT, João Pedro. Os jovens e a construção de capital social no Brasil. In. Democracia, Juventude e Capital Social no Brasil. Org. Marcello Baquero. UFRGS, Porto Alegre, 2004, p. 147 a 205. __________, O que pensam os jovens hoje. Imaginário social dos estudantes dos Vales do Rio Pardo e Taquari. Santa Cruz do Sul: Clarice Agnes,1996. TEIXEIRA, Carmem Lúcia. O grupo de jovens: espaços de formação da identidade política. Dissertação de Mestrado – defendida em dezembro de 2006. Universidade Católica de Goiás. 331 JUVENTUDE E GÊNERO NA RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA EM GOIÂNIA Vanildes Gonçalves dos Santos RESUMO O presente artigo trata das reflexões acerca da investigação realizada, durante o mestrado em Ciências Sociais 2007-2008, com o objetivo de identificar as representações de gênero presentes na Renovação Carismática Católica em Goiânia e suas implicações na formação das identidades de gênero dos e das jovens participantes de grupos de oração e Comunidades de Vida, modalidades de organização presentes na Renovação Carismática Católica. Palavras-chave: Catolicismo carismático, juventude, gênero Introdução: Os estudos e as ações realizados pelos movimentos feministas têm impulsionado discussões importantes sobre as relações entre os sexos como uma construção biosocial onde as desigualdades desencadearam um processo de luta pelos direitos iguais entre os sexos. Na Igreja Católica, apesar dos esforços de grupos considerados progressistas, tem avançado pouco nas discussões a respeito da temática com seus/suas fiéis, especialmente no que se refere ao compreender as identidades e as relações de gênero como construções sociais. Foi partindo dessa realidade que nos propusemos a compreender que a religião enquanto campo social, conforme afirmam diversos estudiosos, entre eles Émile Durkheim (1996) e Pierre Bourdieu (2007). Campo social, composto de sistemas simbólicos e crenças estruturantes de significados e representações. São ainda esses autores, juntamente com autoras como Joan Scoot (1995), Rita Gross (1996), Ivone Gebara (2000), que inspira a reflexão sobre a Igreja Católica pensada enquanto um conjunto de instituições que se estruturam e são estruturantes do 332 sistema patriarcal que idealiza e naturaliza formas de ser homem e de ser mulher, bem como o lugar a ser ocupado por ambos na sociedade. A Renovação Carismática Católica Com relação à experiência do catolicismo, os estudos revelaram, que a Igreja Católica não é constituída de um bloco monolítico, pelo contrário, há diversas formas de ser católico. Entre essas encontra-se o ser ―católico renovado‖. Ou seja, ser participante da Renovação Carismática Católica - RCC. Desde a década de 1990, a referida igreja tem convivido com o crescimento do movimento carismático, embora o mesmo já esteja presente nesta desde a década de 1960. Esse movimento trouxe para a igreja formas diferentes de vivenciar a espiritualidade católica com diferentes técnicas corporais, cantos de louvores compostos de letras intimistas, as orações em línguas (glossolalia), as missas de cura, e o uso dos meios de comunicação social, principalmente rádio e televisão e ainda a experiência das comunidades de vida, então chamadas Novas. Autores/as como Brenda Carranza (2000), entre outros/as, apontam que o Concílio Vaticano II, evento ocorrido entre os anos de 1962 - 65 no qual a Igreja se reuniu para repensar sua relação com o mundo moderno, houve formas diferenciadas de compreender essa relação com a modernidade. ―O jeito novo de ser igreja‖, a partir daí tomaram dimensões diferentes em grupos diferentes. Entre eles, a Teologia da Libertação com uma prática e teoria baseadas num modelo de igreja com opção preferencial pelos pobres que a partir das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. De outro em oposição à igreja da libertação, surge a igreja dos movimentos revivalistas, com o objetivo de renovar a Igreja Católica e de recuperar os fiéis que a mesma vinha perdendo. Entre esses movimentos encontra-se a Renovação Carismática Católica . 1 A Igreja Católica e as influências de um mundo globalizado Faz-se importante dizer que essas mudanças dentro da Igreja Católica, não acontecem de forma isolada das ocorridas na sociedade, que vem passando, nas últimas décadas, por transformações profundas na economia, na política e, portanto, no âmbito social. As recessões econômicas, o desemprego, o aumento da violência, 333 a valorização explicita da sociedade de consumo, o avanço tecnológico que faz com que haja alterações na forma de compreender e sentir o tempo e o espaço, as relações que se tornam como nos dizeres de Baumam mais efêmeras, instantâneas, líquidas (BAUMAM, 2001). Nesse cenário, a busca da religião, tem se intensificado e muitas vezes essa busca não é por um lugar preocupado com o coletivo, com a busca de soluções para os problemas que afetam a maioria da sociedade, mas pela resolução de problemas individuais. A respeito disso, são diversos os estudos realizados, entre os quais se encontram os de José Mardones (1998), que ao refletir sobre neoliberalismo e religião, afirma ser a religiosidade fundamentalista e neotradicional a mais adequada à essa realidade de modernidade tardia e neoliberal. Essas religiões são geralmente segundo o autor, marcadas por um fundamentalismo e pela centralidade no emocional. A pesquisa mostrou que na Igreja Católica essa busca tem crescido junto aos grupos da Renovação Carismática Católica, movimento de características pentecostais e neopentecostais, que com seu carisma, mas também por suas condições econômicas e pelo apoio de considerável parte do clero, tem atraído pessoas jovens e adultas. A Renovação Carismática Católica e as representações de gênero junto aos/as jovens. Muitos/as jovens tem se colocado em busca e aderido as experiências de fé. Nessa busca, diversas são as perguntas e angústias que os/as jovens levam consigo característica própria da idade e da situação conjuntural vivida no Brasil atualmente como a incerteza com relação ao trabalho, moradia, estudo, os papéis sociais e sexuais. Nesse amplo contexto, encontra-se a Igreja Católica com suas contradições, dentre elas as referentes às questões de gênero marcada por um sexismo que historicamente tem pesado mais sobre as mulheres. Essa instituição religiosa tem ao longo da história construído e mantido paradigma de masculino e feminino que conforme assevera Rosa Cobo Bedia, compõe o quadro das instituições onde são ―reforçadas as bases fundamentais da reprodução das desigualdades dos sexos e ainda os espaços de socialização das ideologias sexuais 334 que legitimam as diferenças que a sociedade designa a homens e mulheres‖(BEDIA, 1995:75). Impactada pelas contradições e pressões enfrentadas pela Igreja Católica a Renovação Carismática Católica, pensada enquanto um movimento que tem como base a doutrina e os dogmas da Igreja e uma leitura fundamentalista dos textos bíblicos, reforça através de mecanismos de formação idéias que geram e perpetuam desigualdades de gênero tanto na igreja como na sociedade. Uma vez que as identidades de gênero, são resultados de produções elaboradas dentro de contextos históricos e também institucionais. O gênero entendido como relações sociais entre os sexos e como construções culturais (SCOTT, 1995:75), tem na religião uma de suas bases na construção ou desconstrução de paradigmas que geram assimetrias. Jovens mulheres e homens feitos/as nas relações sócio-espirituais Os sistemas religiosos se constituem de representações que ao longo do tempo são elaboradas, legitimadas e transmitidas como verdades e por estarem ligadas ao sistema simbólico do sagrado raramente ou, quase nunca, permitem contestações. Uma das principais representações da religião está no que Durkheim chamou de sagrado e profano. Chamaram-nos a atenção na pesquisa realizada em Goiânia, junto aos/as jovens, os dados que demonstraram a forte presença das representações de sagrado e profano, mas exprimida na dualidade santidade e pecado. Para os/as jovens da Renovação Carismática Católica a santidade é algo que deve estar à frente dos seus objetivos. Mas o que é ser uma jovem santa, um jovem santo? Vejamos o que diz uma das jovens participante de nossa pesquisa: Primeira coisa, não só para uma mulher consagrada, mas para todas, qualquer mulher, aquela mulher que busca a santidade, é a mulher que não leva o outro a pecar, não é motivo de queda do outro. Como não sou motivo de queda para o outro? Me vigiando, vigiar minha roupa, minha conduta, postura como mulher. Entende? Tem coisas que é próprio de homem e que não faz bem para a mulher fazer, porque é próprio de homem. Lógico que agora eu não vou falar assim, nossa agora eu não posso sorrir, falar, não posso rir alto, ser livre. Não é assim, mas é a mulher ter postura de mulher e sempre se espelhando em Nossa senhora, sempre pensando, será que Nossa Senhora faria isso no meu lugar. Entende? Nossa senhora é o modelo de santidade, não só para as mulheres, mas também para os homens (AMANARI). 335 A resposta dessa jovem é similar a todas as jovens das quais escutamos que ser ―santa‖ está relacionado ao controle dos desejos, dos corpos, da sexualidade, no caso das mulheres ser santa é também não levar o outro (o homem) a pecar, não ser motivo de queda, essa fala, muito repetida, remete ao mito da queda, onde a mulher (Eva) é o motivo do pecado de Adão, o primeiro homem a ser criado segundo o relato da criação narrado no texto bíblico do livro de Gênesis. Em contraposição à Eva, (a primeira mulher a ser criada, segundo o mito), está a Virgem Maria a mãe de Jesus, ela é o modelo de santidade que as mulheres devem ter, embora seja dito pela jovem que os homens também a devem ter como modelo, mas todos os exemplos de comportamento a serem seguidos são direcionados para as mulheres. Vejamos como a representação de Maria presente no universo dessas/es jovens é de uma mulher recatada, obediente, silenciosa, conforme diz outra jovem: O que acho mais interessante nela além da castidade é o silêncio. Tudo que ouvia guardava no coração, e a mulher no mundo de hoje é muito faladeira, a mulher conversa demais, então, se ela olhar mais para Maria, ela vai ser mais calada, mais santa e assim vai ficar o namoro, o casamento, eu acho demais isso. Por isso que existe a sagrada família, São José também entra ai, ele também é modelo (ARACI). A santidade (caminho para o sucesso) do namoro, do casamento depende do comportamento da mulher, que uma vez casta, santa, santifica tudo em sua volta. No caso da castidade e da santidade essa é uma exigência também para os homens. No entanto, segundo o que observamos nos discursos dos/s jovens, parte do bom êxito da vivência dessas virtudes passam pela forma como as mulheres se comportam. Outra representação de homem e mulher trabalhada fortemente por esse movimento e muito presente no imaginário dos/as jovens com quem realizamos a pesquisa está ancorada no mito da criação , como a leitura bíblica feita nesses grupos tem como 2 base o fundamentalismo , esse mito tem forte peso na estruturação do pensamento 3 e do discurso de homem e mulher como seres criados e destinados à procriação. Assim são seres heterossexuais, que legitima a heterossexualidade como a única forma de realização da sexualidade considerada abençoada por Deus. 336 Além disso, a pesquisa identificou que outras literaturas as quais os/as jovens têm acesso, assim como, os espaços de formação (seminários de afetividade e sexualidade, projetos de formação realizados no estado ou nos encontros do PHN Por Hoje Não vou pecar) , conformam mecanismos utilizados que reforçam 4 fundamentalismos religiosos e o essencialismo biológico. Corpos controlados e desejos seqüestrados A forma como são consideradas as representações do masculino e feminino na RCC reforça as elaborações e práticas da religião cristã patriarcal que mediante a renúncia e o sacrifício, fundamentos para a manifestação correta da fé, exercem um controle sobre corpos e desejos, atingindo a todos, mas principalmente as mulheres. Conforme os dizeres da teóloga Luíza Tomita, nesse mecanismo de controle construído pelas religiões, as mulheres têm seus desejos seqüestrados, “a religião patriarcal desde cedo, seqüestrou das mulheres o desejo de amar e gozar” (TOMITA, 2006:154). Acrescentamos à afirmação de Tomita o que observamos nas falas e outras expressões das jovens, que, além de não serem reconhecidas como mulheres que têm desejo tanto quanto os homens, ainda têm que cuidar e vigiar, para não levar o homem que naturalmente deseja, ao pecado. Tendo como pano de fundo as elaborações teológicas cristãs que designam como função natural da sexualidade a procriação 5 e como conseqüência disso a heterossexualidade normativa, essas idéias se apresentam na RCC para justificar as posições dos/as jovens que são extremamente contrárias a outras orientações sexuais. Como podemos constatar nas falas dos/as entrevistados/as, participantes do grupo de oração se referindo a homossexualidade: Eu acho uma agressividade ao ser humano. Essa é a minha opinião. Por mais que você sinta atração, acho que é uma coisa que não deveria ser exposta assim, não. Porque Deus criou o homem e a mulher, um complementa o outro, eu não critico a eles, eu critico o ato deles (APUÃ). Isso não é de Deus, é coisa que Deus abomina também. É diabólica (BÊNI). É uma relação que, em si, não tem nada a ver (ITACIARA). Não é aberta à vida. Porque Deus criou o homem e a mulher para serem abertos à vida. Um homem e um homem, como vai ter vida na relação deles? (APUÃ). Não têm filhos... Como pode ter vida? (ITACIARA). É uma coisa que foi o homem que criou, não foi Deus (POTYARA). Não tem espírito, é só carne com carne (APUÃ). 337 A fala dos/as jovens revela como as elaborações da tradição da Igreja influenciam nos seus pensamentos e comportamentos, ao verem a homossexualidade como uma prática antinatural. Desvio ou doença é a outra forma de classificar a homossexualidade e, como tal, tem cura. É o que afirma o jovem morador da comunidade Luz da Vida: Não é a comunidade, mas a igreja vê o homossexualismo comprovadamente como uma doença e tem cura, toda doença tem cura. Eu estive conversando com um padre esses dias, um padre aqui de Goiânia, que disse que homossexualismo não tem cura, homossexual tem que ser tratado, mas não tem cura. Eu acredito em um Deus que cura tudo, o meu Deus não é limitado. Como eu conheço homossexuais que são ex-homossexuais, tem gente que diz não existe ex-gay, existe sim, eu comprovo, eu conheço. Pode continuar tendo a tendência? Pode. Mas o que faz continuar sendo homossexual é a pratica, aquilo que é tendência não dá para decidir, designar a pessoa, você é, porque você tem a tendência, não. Então, se a pessoa não tem a prática, consegue se abster, consegue ser casto, diante daquilo que é o plano de Deus para a pessoa, que é isso a santidade, né, e viver sadiamente a sexualidade, pouco a pouco essa pessoa vai conseguir se integrar e encontrar de novo o caminho para o qual Deus nos criou, homem para a mulher e mulher para o homem. A igreja não discrimina, nem recrimina, mas como o próprio Deus nos ensina, nós não abominamos o pecador, nós abominamos o pecado, a prática, que não é bem-vinda nessa casa, na igreja. Aí você pode dizer, mas há padres que praticam. Mas os padres que praticam, o pecado deles também não é bem-vindo dentro da igreja (IRAÍ). A narrativa desse jovem permite perceber como a comunidade constrói uma imagem negativa da identidade homossexual. Uma forma de pensar que não leva em consideração as construções histórico-sociais dos conceitos construídos a partir de interesses e autoridades dominantes que definem, regulam e internalizam tabus e preconceitos. Mas a forma de pensar está baseada numa leitura fundamentalista dos textos bíblicos e nas elaborações teológicas e pregações de lideranças religiosas (clero e leigos) que ainda adotam um pensamento medieval com relação à sexualidade . 6 A fala cheia de ―compaixão‖ de Irai, manifestada também por outros/as jovens durante as entrevistas, ao dizer que a Igreja não recrimina nem discrimina, porque não abomina o pecador, mas o pecado, é legitimada pelos dizeres do magistério da Igreja Católica , o qual considera a prática da homossexualidade pecado grave, e 7 aqueles que têm tendências radicais à homossexualidade são considerados objetivamente desordenados e para tais pessoas se constitui em provação. Por isso, os homossexuais devem ser acolhidos com respeito e delicadeza e não sofrerem nenhum tipo de discriminação. Essas pessoas são chamados a realizar sua vida segundo à vontade de Deus, se unindo ao sacrifício da cruz do Senhor. Entretanto, 338 entenda-se que fazer a vontade de Deus e se unir ao sacrifício da cruz, significa viver em castidade, se não quiserem estar constantemente em pecado. A nosso ver, esse discurso é mais uma forma de controlar e reprimir-lhes os corpos, além de ser um desrespeito ao direito à sexualidade como dimensão fundamental da pessoa. Portanto, podemos dizer que, nesse caso, corpos tanto de mulheres como de homens são controlados e os seus desejos seqüestrados. Concluindo A nossa pesquisa realizada com jovens da Renovação Carismática Católica revela uma forte tendência desse movimento em retomar os valores patriarcais estruturantes da igreja católica como fundamentos para a orientação de suas vidas e construção de sua identidade como homem e mulher, compondo assim, o movimento fundamentalista atual que reforça e sustenta a estrutura patriarcal, cuja conseqüência é a perpetuação das relações de desigualdades de gênero. REFERÊNCIAS BEDIA, Rosa Cobo. Gênero. In AMORÓS, Célia. 10 palabras clave sobre Mujer. Barcelona: 1995. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. CALVANI, Carlos Eduardo. Gemidos da criação e arrepios da teologia: sussurros éticos nos ouvidos da igreja. Mandrágora, XII, n.12. São Bernardo do Campo/SP. Metodista, 2006. p. 60-67 CARRANZA, Brenda. Renovação Carismática Católica – Origens, mudanças e tendências. Aparecida/SP: ed. Santuário, 2000. CASTELLS, Manuel. O poder da Identidade. 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Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 340 GT 15: CELEBRAÇÕES FESTIVAS: A VALORIZAÇÃO DA RELIGIOSIDADE POPULAR NO BRASIL Coordenação: Drando. João Guilherme da Trindade Curado e Dranda. Tereza Caroline Lobo Resumo: Diante das tendências atuais impostas pela globalização verifica-se um outro movimento que se contrapõe a tal perspectiva de tentativas da padronização até mesmo de aspectos da cultura. No entanto, é perceptível que vem ocorrendo uma retomada de significados das festividades ligadas às religiosidades, fazendo com que estas manifestações populares contribuam para desenvolver, no homem atual, aspectos outrora não incentivados. Buscar compreender as representações culturais e as diversidades de relações e interações que ocorrem por ocasião das realizações de celebrações festivas, assim como as políticas voltadas para esta temática são umas das premissas apontadas para o debate a que se apresenta. Palavras-chave: Festas, Cultura, Religiosidade 341 CELEBRAÇÕES FESTIVAS: MANIFESTAÇÕES DA RELIGIOSIDADE POPULAR EM PIRENÓPOLIS – GOIÁS João Guilherme da T. Curado168 Vai diminuindo a cidade Vai aumentando a simpatia Quanto menor a casinha Mais sincero o bom dia (John Ulhoa) RESUMO. A cidade de Pirenópolis, nascida às margens do Rio das Almas do qual se extraia o ouro manteve as principais características dos povoados surgidos com a mineração nos quesitos urbanos, arquitetônicos e culturais. Mas as manifestações religiosas pirenopolinas só são destacadas em relatos a partir da passagem dos viajantes europeus no século XIX. Ainda hoje muitas destas festividades possuem um caráter da religiosidade popular, possibilitando a compreensão que as fazem perpetuar e prosseguir por gerações, representando o modo simples de pessoas do local diante das inúmeras perspectivas apresentadas pelo mundo atualmente, uma vez que manter a festa é também conservar e sustentar a fé. Palavras-chave: Festas, Religiosidade, Pirenópolis Pensar nas primeiras ocupações oficiais realizadas em Goiás é buscar na História e na Geografia explicações que possibilitem a compreensão dos que aqui chegaram e estabeleceram-se em torno dos núcleos populacionais iniciais, considerando que a maioria dos autores ao descreverem as práticas vigentes nas primeiras décadas do século XVIII aponta que a igreja era construída assim que se estabelecesse o ―descobrimento‖ do ouro às margens dos rios (PALACIN, MORAES, 1994; GOMES, TEIXEIRA NETO, BARBOSA, 2005 dentre outros). 168 Mestre e Doutorando em Geografia pelo Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da Universidade Federal de Goiás – IESA/UFG. Integrante do Grupo de Pesquisa ―Saberes e sabores goianos‖. [email protected] 342 Em uma época em que o mundo ia se ampliando com o povoamento de lugares então ermos, como o dito sertão, a Igreja em parceria com o Estado representado pela coroa é que estabeleciam o marco inicial dos nascentes aglomerados que se davam a cargo do ouro. As primeiras vias urbanas eram ligações entre as datas auríferas a igreja e Casa de Câmara, que delimitavam o Largo da Matriz, espaço importante ainda hoje quando se trata das festas religiosas. Os outros logradouros públicos surgiram em decorrência da necessidade de ligação entre o núcleo do ouro com os caminhos e estradas. Duas obras, (BRASIL, 1961 e GOMES, 1999), apontam as informações dos viajantes europeus que por Goiás passaram nas primeiras décadas do século XIX como sendo importantes registros documentais acerca de Goiás e consequentemente sobre o cotidiano dos goianos. Dentre eles os que mais se destacam, pelo teor dos relatos produzidos são Saint-Hilaire e Pohl, que produziram descrições não só geográficas, mas também sobre o dia a dia e são os primeiros a narrarem algumas de nossas festas, uma vez que muitas delas já não aconteciam mais em território europeu desde a Idade Média ou no Período Moderno, como narram, respectivamente, Bakhtin (2002) e Burke (1989). Atualmente diante do ―multiculturalismo‖ para pegar emprestado um termo utilizado por Bauman (2003) e do ―hibridismo cultural‖ proposto por Canclini (2003) percebemos a importância da valorização dos aspectos relativos a pequenos grupos e que possuem significados amplos para estas comunidades, mesmo que a repercussão em maior escala não seja considerada, pelo fato de que tais manifestações tenham se adaptado à alçada de eventos, ou se tornado atrativos turísticos. 343 As festas em Pirenópolis A denominação do núcleo urbano surgido às margens do Rio das Almas em 1727 foi Minas de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte (JAYME, 1971). Desde então mesmo com as alterações surgidas na dinâmica econômica, as manifestações religiosas do catolicismo predominaram em cerimônias de batismos, casamentos e até mesmo funerais. As festas aos santos, incluindo a padroeira, eram realizadas nas proximidades do Largo da Matriz, espaço de convivência e de confluência da vida e do povoado, mesmo no período da escassez do ouro – responsável pela ruralização da população e também por alterações de alguns festejos, que saiam dos domínios institucionais passando à responsabilidade popular. O calendário das manifestações da religiosidade em Pirenópolis apresenta uma variada gama de celebrações a diversos santos, cultuados em momentos distintos da história e que são incentivados ou proibidos pela Igreja, de acordo com as diretrizes vigentes na instituição. Assim cultos a Santa Ifigênia, Santa Bárbara, Senhora do Carmo, por exemplo, não acontecem mais. As Folias do Divino, outrora proibidas, hoje são três, inclusive sendo uma criada recentemente pela Igreja. Assim é interessante observar alguns aspectos locais das festas ligadas à religiosidade. Dois recentes estudos sobre as festas em Pirenópolis possibilitam uma melhor compreensão dos significados que as manifestações representam para o povo pirenopolino: fé, devoção e recentemente, também, como divulgação, uma vez que a atual vocação econômica da cidade se orienta no turismo, com destaque para o segmento cultural como propõe o Ministério do Turismo (2008). O texto de Curado (2006) sobre as procissões aponta para a permanência ou a circularidade que os préstitos religiosos organizam por algumas das principais ruas de Pirenópolis, tais vias, atualmente, fazem parte de uma área de proteção: o Centro 344 Histórico, reconhecido e preservado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. E é neste contexto das festas processionais que se pauta a análise das transformações ocorridas nas paisagens da cidade, mas que mantem, adaptadas ao momento presente a religiosidade popular dos que mantem raízes naquela cidade. O outro estudo sobre festas de Pirenópolis advem da pesquisa de Lôbo (2006) e aponta para festejos de negros, que adaptados ao catolicismo, tornaram-se manifestações tradicionais que mesmo com o fim da escravidão permaneceram no calendário local, mesmo tendo sua data alterada, em algum momento para juntar-se à Festa do Divino Espírito Santo. Tal festa, dos negros, foi fadada ao desaparecimento por Brandão (1978), mas conforme a autora citada acima permanece sendo um dos símbolos identitários do pirenopolino, principalmente diante da configuração tomada pela Festa do Divino. Esta vontade e/ou necessidade de manter festas ora destinadas aos negros, ora aos brancos pobres ou também aos demais setores sociais, faz, mesmo que inconscientemente, que a população daquela pequena cidade goiana remonte ao período da mineração, quando a segregação sócio-cultural era imposta, mas procurava-se mecanismos diversos para se mesclar. Ainda neste contexto é importante notar que a festa da padroeira acaba por ser comemorada junto a Pentecostes. A partir das informações supracitadas é possível compreender parte do mundo festivo pirenopolino, que atualmente conta com mais uma peculiaridade, o título de Patrimônio Cultural do Brasil recebido pela Festa do Divino Espírito Santo, a segunda celebração registrada pelo Iphan. Tal registro só foi possível, pois se compreendeu que a ―festa é um lugar estratégico para o conhecimento de toda uma 345 sociedade‖ (MENESES, 2010, p.1), e por isso são constituintes dos saberes e fazeres que identificam aspectos essenciais da cultura de um povo. Considerações finais Aferimos no transcorrer da investigação de algumas das manifestações da religiosidade popular em Pirenópolis, através das celebrações festivas, - mesmo diante do processo de globalização e difusão de informações cada vez mais eficientes -, que as festas locais mantem características que as fazem perpetuar e prosseguir por gerações, pois representam o modo simples de pessoas do local diante das inúmeras perspectivas apresentadas pelo mundo atualmente, e que manter a festa é conservar e sustentar a fé. Referências BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 5ª ed. Annablume/Hucitec: São Paulo, 2002. 419p. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Divino, o Santo e a Senhora. Rio de Janeiro: Campanha Nacional de Defesa do Folclore Brasileiro, 1978. 163p. BRASIL, Americano. Súmula de história de Goiás. 2ª ed. Goiânia: Dep. Estadual de Cultura, 1961. 122p. BAUMAN, Zygmunt. 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A Folia de Sant'Ana, revigorada no ano de 2006, é uma das celebrações festivas que compõe a Festa da Capela. Partindo de um contexto de dinamismo cultural nos propomos a compreender não a Folia de Sant'Ana enquanto objeto pensado, mas como fenômeno, quer dizer, aquilo que fundamenta a vivência. O objetivo é o de analisar esta celebração como um lugar que dá sentido ao mundo presente, se articula com as identidades e alimenta a memória que se tem do espaço onde se vive. Palavras-chave: Festa, Lugar, Folia. O povoado da Capela do Rio do Peixe é o lugar da festa em homenagem a Sant‘Ana, ocorrida desde o século XVIII. O lugarejo surgiu com a febre do ouro depois que os bandeirantes chegaram às margens do Rio das Almas, fundando Meia Ponte, atual Pirenópolis. O achado não representou importância econômica para a localidade como aconteceu com as minas de Meia Ponte e Vila Boa. Cunha Mattos, que em 1824, passa pelo povoado, já o encontra em ruínas restando umas poucas habitações, ―15 casas humildes, e uma pobríssima capela‖, enfatiza que o ―arraial não tem importância e consideração alguma no tempo presente (p.35, 1972). O povoamento atingiu seu ápice nas últimas décadas do século XVIII, a partir de então, a ocupação resultante de um assentamento inicial para extração de ouro 169 Doutoranda em Geografia pelo IESA/UFG. Coordenadora do Curso de Tecnologia em Gestão de Turismo da UEG UnU/Pirenópolis. 348 no Rio do Peixe e ribeirões adjacentes se transformou e atualmente é uma pequena aglomeração, com pouco menos de trezentos habitantes, postada ao longo de caminhos e servidões das fazendas que se formaram na região, seguindo sua lógica de existência. Do pequeno arraial minerador sobraram apenas as memórias, o jeito rural de viver e as devoções fundadas numa religiosidade híbrida e popular. Não nos foi possível precisar a data do início da Festa de Sant‘Ana na Capela do Rio do Peixe, mas, em conversas com os moradores, a história se repete: segundo a tradição oral, a versão mais divulgada é a de que uma imagem de Sant‘Ana, trazida pelos bandeirantes, foi roubada pelos garimpeiros, que teriam construído a capela para abrigá-la. A partir de então, a imagem passou a receber donativos, incluindo jóias em ouro e terras. Das jóias correm lendas de que estariam enterradas pelo povoado, sendo objeto de escavações feitas por aventureiros e curiosos. Já as terras formaram glebas que deram origem ao patrimônio da santa, englobando o atual povoado. Quanto a romaria, esta reporta ao início do século XX, quando algumas famílias de Pirenópolis passaram a frequentar os festejos e a instituir rituais que se repetem até hoje. A ampliação do festejo a partir da criação da romaria nas primeiras décadas do século XX envolveu partícipes de outras comunidades, inserindo-os numa rede de relações, ou seja, em ―um tecer de histórias em processos‖ (MASSEY, 2008, p.191) e se sobrepõe às outras relações como a de parentesco, compadrio, vizinhança e amizade. Massey salienta que cada lugar é o encontro de trajetórias e de relações sociais distintas, sendo que todas essas relações interagem com a história acumulada de um lugar e ganham um elemento a mais na especificidade dessa história, além de interagir com essa própria história imaginada como o produto de camadas superpostas de diferentes conjuntos de ligações tanto locais quanto com o mundo mais amplo (MASSEY, 2000, p.185). 349 São diferentes grupos de participantes, pessoas diversas com motivações variadas que frequentam os festejos e se posicionam de forma própria em relação aos rituais que dão sentido à festividade. O lugar da festa está sedimentado de relações e cheio de conflitos internos entre os que chegam e os que vivem no lugar, os que se envolvem diretamente nos festejos participando dos rituais e os que não têm mais identificação com a festa e entre os que visam estabelecer os limites entre o sagrado e o profano. Durante a festa ocorrem as novenas com rezas de terços e cânticos, queima de fogos e fogueiras, levantamento de mastros, procissões, alvoradas com banda de música, leilões, e os ―ranchões‖- boates improvisadas construídas especificamente para este momento. Compondo a estrutura festiva encontra-se também o comércio ambulante que vende comidas, bebidas, roupas íntimas e eletroeletrônicos. Os romeiros fazem grandes acampamentos que são também espaços de festas formando grupos que são tradicionais na festa como os ―caça-cerveja‖, os ―calangos da serrinha‖, os ―fulanos de Sá‖ dentre outros. A festa aglutina outras festas menores como a Folia de Sant‘Ana que ocorre concomitantemente com a festa maior, esta celebração que ficou alguns anos sem acontecer, foi revigorada no ano de 2006. É um festejo antigo, anterior à romaria, que passou por um processo de (re)significação para continuar existindo no presente. No passado a folia acontecia nas fazendas que circundavam o povoado da Capela do Rio do Peixe, era percorrida a cavalo e realizada na semana que antecedia os festejos de Sant‘Ana, antes do início das novenas. Além de arrecadar donativos para a festa a folia arrebanhava os fieis para Festa da Capela criando uma rede de participações. Hoje, a folia é realizada entre os dias 22 a 25 de julho, 350 paralela às novenas, e o caminho percorrido é o próprio povoado, as visitas são feitas nas casas dos moradores locais e nos acampamentos dos romeiros. ―No Brasil a folia é bando precatório que pede esmolas para a festa‖ (CASCUDO, 1972, p. 402), faz seu cortejo, conhecido por ―giro‖, portando a bandeira do santo homenageado e entoando cânticos de saudação, peditório e agradecimento; formada, quase que exclusivamente por homens170, as folias são encontradas em várias regiões brasileiras sendo mais recorrentes as de santos reis, apesar de conhecermos, no município de Pirenópolis, a Folia de São João, no distrito de Lagolândia e a Folia do Divino Espírito Santo, na cidade de Pirenópolis. A Folia de Sant‘Ana gira a pé visitando os acampamentos dos romeiros e as casas do povoado conduzindo uma bandeira com a efígie de Sant‘Ana e Maria; traz alguns instrumentos musicais como a viola, o violão, o pandeiro e a sanfona, e canta versos, de improviso ou não, para se apresentar, pedir esmolas e agradecer os donativos. Sai da casa ou acampamento do ―junta‖, residência do mordomo da folia sorteado no último dia do giro do ano anterior - onde é servido o almoço, realizado os cânticos de agradecimento pela comida e o peditório de esmolas. Daí o grupo caminha pelo povoado e em cada parada são improvisados versos que tem relação com os objetos, espaços ou as circunstâncias encontradas, como a descrição de um altar improvisado para receber o grupo, um pedido de proteção ao proprietário da casa e seus familiares, uma alusão clima do momento, etc. Ao findar da tarde o grupo se dissipa, cada qual segue para seu acampamento, não acontece mais os pousos de folia como ocorre na Folia do Divino Espírito Santo em Pirenópolis. Os foliões voltam a se reunir pela manhã no local da última parada para o café onde 170 Em nossas observações, na Folia de Sant‘Ana na Capela do Rio do Peixe, vimos a presença de poucas mulheres, não mais que três, a acompanhar o grupo portando a bandeira, tocando o pandeiro e recebendo as esmolas. Percebemos ainda sua presença na Folia do Divino Espírito Santo que percorre a cavalo a área rural de Pirenópolis, só que aí, diferentemente da Folia de Sant‘Ana, tem mais mulheres folionas. 351 reiniciam o giro. A folia termina dentro da igreja ou no acampamento do festeiro para entrega dos donativos arrecadados, para a realização do sorteio do mordomo do ano seguinte e os cânticos finais de agradecimento. Os festejos em homenagem a Sant‘Ana na Capela do Rio do Peixe são celebrações que possuem uma dimensão ritualística e, ao mesmo tempo, concebem-se como lócus específico de prática e conteúdo emocional, integrando e definindo o sentimento de pertencimento à cultura do lugar. Como fenômeno próprio da comunidade que a vivencia, nota-se aí a produção de um lugar nitidamente balizado por momentos partilhados e solidários. Esse lugar de encontro proporciona a intersubjetividade e os conflitos, a coesão social e os enfrentamentos expressos na vitalidade da dinâmica histórica. Apesar da singularidade do lugar e as identidades aí constituídas são plurais resultantes do envolvimento pessoal, das experiências individuais e dos encontros temporários com o espaço festivo, ―é uma espécie de ingênuo e poderoso maravilhamento que por algum tempo se partilha. Uma alegria por se estar ‗aqui‘, vivendo ‗isto‘ entre todos‖ (BRANDÃO, 2004, p.29). Referências BRANDÃO, Carlos Rodrigues. De tão longe eu venho vindo: símbolos, gestos e rituais do catolicismo popular em Goiás. Goiânia. Ed. UFG, 2004. 412p. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro. Ed. Tecnoprint S.A., 1972, 930p. CUNHA MATTOS, Raymundo José da. Chorographia histórica da província de Goyaz. Goiânia: Sudeco/Secretaria do Planejamento e Coordenação, 1972(9). 185p. MASSEY, Doreen B. Um sentido global do lugar. In: Arantes, Antônio A. (org). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000, p.176-186 _____________. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, 312p. 352 GT 16: RELIGIOSIDADE SERTANEJA: CULTURA IDENTIDADE E GLOBALIZAÇÃO Coordenação: Ângela Cristina Borges Resumo: Preso aos enredos de significados produzidos por ele mesmo, o homem constrói seu ethos. Este é constituído considerando as maneiras como se amarram as tramas de significados. Na Globalização como no sertão esses significados se relacionam na dinâmica híbrida e sincrética da produção cultural e, conseqüentemente na formação da identidade sertaneja? Neste período não é possível pensar o processo de construção cultural ausente de encontros culturais conflituosos. O homem, ser imutável, significa e re-significa a realidade dialeticamente, dando-lhe sentido num movimento dinâmico e amplo que se estende a todas as esferas da sua vida, inclusive a religiosa.Considerando tal devir, pensando a cultura como um conjunto de significados inacabados que se relacionam dialeticamente esta mesa se propõe a discutir as articulações entre cultura, identidade e religiosidade nos sertões. 353 O CONGADO171 DO NORTE DE MINAS GERAIS: EXPRESSÃO DA RELIGIOSIDADE SERTANEJA Maria Socorro Isidório172 Resumo O Congado é uma das mais ricas expressões da cultura e da religiosidade afro brasileira. Existe em quase todo o território brasileiro, principalmente nos Estados de Minas Gerais, Goiás, Espírito Santo e São Paulo. A diversidade e especificidade de expressão dos grupos em seus contextos apresentam um significativo campo de saberes que pode revelar não só a cosmovisão de um povo como elucidar suas raízes identitárias. Nesse sentido, o estudo dessas manifestações oferece uma valiosa chave de acesso à compreensão da construção de identidade do nortemineiro, que pela sua peculiaridade é considerado como baianeiro, não compondo dessa forma a identidade unitária do mineiro. Palavras-chave: Congado, Cultura, Identidade. 171 O Congado é uma manifestação de origem africana e ibérica de devoção a santos católicos, (Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia e Divino Espírito Santo) que se difundiu pelo Brasil. Tal manifestação se integrou às culturas locais de diversos estados como Alagoas, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e principalmente Minas Gerais. Com sua força de expressão repleta de mitos, crenças, ritos e valores impressos nos festejos de reinados e devoção, o Congado tornou-se parte da paisagem cultural dessas distintas regiões e uma referência da cultura e religião afro-brasileira. No Brasil, o negro encontraria espaço para (re) construir sua identidade e (re) estabelecer seu mundo mítico através de suas manifestações culturais e religiosas. Nesse sentido, o processo de rememoração de sua ancestralidade, representada no Congado através da coroação de seus reis, se configurou como uma oportunidade de vivenciar o sagrado, através de elementos intermediários. Cf. Jean Joubert Freitas MENDES, Música e religiosidade na caracterização identitária do Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias em Montes Claros – MG, pp. 29-30. 172 Formada em Filosofia pela Universidade Estadual de Montes Claros - MG_ UNIMONTES. Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP. Professora da UNIMONTES. Atualmente trabalha no curso de Ciências da Religião. E-mail: [email protected]. 354 O Congado é uma das mais destacadas manifestação da religiosidade popular do Norte de Minas Gerais. É através da arte que compõe os grupos, em suas imagens e formas, musicais, performáticas, coloridas e sincréticas, que ocorre um fascínio e uma atração que mobiliza todo um povo. Uma arte religiosa que revela sentidos e sensações relativos ao sagrado. Estudos nas ciências da religião focalizando aspectos relativos à estética das religiões apontam ricas fontes de compreensão das sensações humanas e os seus variados modos de expressar o sagrado. Quando nos voltamos para a história da arte, constamos que estamos tendo contato com a história da expressão da religiosidade humana. A idéia de expressão está intimamente ligada a um nexo que se pressupõe existir entre uma força que se exprime (um sentimento) e uma forma que a exprime (um ritual, uma imagem, um som) (BOSI, 1999). Brotada da imagética humana, a arte em sua origem mediou através de imagens, performances e símbolos, um vínculo entre o homem e o sagrado, pois ela é uma manifestação do imaginário simbólico do homem. A maneira mais primitiva de experiência de arte e religião se encontrava nos cultos, nos quais as produções artísticas se voltavam para os rituais mágicos e religiosos. Nesse sentido, a produção artística era significada no valor de culto e não no valor de exposição, deslocamento moderno da arte do seu universo simbólico. A mais antiga concepção sobre a arte, assim como a sua relação com a Natureza, é a imitação. Aristóteles afirmou que a imitação é inerente ao homem, que aprende por imitação. Alguns teóricos da imaginação como Cassirer (1994), Eliade (2008) e Bachelard (1997), ressaltam que imitação não é uma reprodução mecânica das coisas do mundo, pois ela é ontológica. A imitação é uma imitação direta de um sentido, de uma essência, para além das imagens e formas em que se materializa (na arte). Esse primordial sentido espiritual de imitação e ou reprodução de algo extra ordinário que denota o laço entre arte e religião, foi assimilado e redimensionado séculos depois em vistas de interesses ordinários. Em tempos coloniais, a Igreja Católica, em sua empreitada catequética, ao travar contato com indígenas e africanos no Brasil, usou a arte como uma (das) estratégia para se adequar ao etos desta sociedade. Implanta-se por aqui uma estética religiosa, que objetivava 355 arrebatar almas selvagens supostamente incapazes de assimilar a fé cristã. Maria Lúcia Montes (1998) ressalta que a arte barroca se afigurou um valioso meio para estimular a imaginação e os sentidos relativos ao sagrado, que era encarnado no esplendor de formas e rebusques de anjos, santos, nuvens, flores, arabescos, entalhados laboriosamente em madeira, ouro, prata, etc., entronizados em magníficos altares e impregnados no interior das Igrejas. De acordo com a autora, além das imagens extasiantes, também o teatro, a música, o canto, a dança e a poesia haviam-se integrado ao arsenal catequético, compondo uma estética artística voltada para a (re) produção da magia da arte religiosa, evidenciando a espetacularização da religião e pondo a arte a serviço da fé. Porém, foi no exterior das Igrejas que essa arte barroca catequética abriu a sua copa e estendeu a sua ramagem, entrelaçando-se a outras. Foi nos aldeamentos indígenas, povoados, vilas e vilarejos que ela se inseriu nas devoções locais e seus ornamentos simbólicos, tais como as celebrações dos solstícios de colheitas, impregnados de rituais e simbologias, dentre outras. As festas religiosas dos nativos eram compartilhadas pela riqueza católica barroca que ia promovendo um sincretismo cultural - religioso na tentativa de impor sua cosmovisão. Não tardaria para que a instancia privada dos colonizadores se estendesse para a pública, estreitando mais ainda o fosso entre o publico e o privado, através de todo tipo de celebração da monarquia e do clero. Esse etos festivo do catolicismo colonial que mediava o público e o privado, porém é rompido no século XVIII, quando a Igreja Católica, já solidificada no país, é influenciada pela mentalidade burguesa européia, com seu discurso erudito e resolve romper e condenar essa religiosidade popular vivenciada de forma sagrada e profana, como expressão da ignorância do povo, uma fé frouxa, além de pontuada de práticas heréticas, em sua avaliação (MONTES: 1998; GÜNTER: 1997). Essas são as bases do catolicismo popular brasileiro, que expressa uma síntese da herança religiosa e cultural indígena, africana e portuguesa. Paulo Süess citando Müller traz o seguinte conceito de religiosidade popular: Por religiosidade popular entendemos aqui a totalidade de convicções e práticas religiosas, formadas por grupos étnicos e sociais na confrontação das suas culturas típicas com o cristianismo, como cultura dos povos dominantes. É uma tentativa de conservarem a sua identidade e existência como povo, que sabe que na religião, na sua fé e nas celebrações rituais, 356 pode afirmar a sua modalidade de ser homem e cristão. (MÜLLER, apud GÜNTER, 1979, p. 14). A religiosidade popular, tão desamparada institucionalmente, é fulcro de identidade do homem simples e religioso, uma identidade ―de fundo‖, autosustentável e resistente, que tem por base (uma base primária) raízes religiosas, além de outras matérias como história, territórios geográficos, fantasias e outras, (CASTELLS: 2008) através da qual esse povo encontra meios de se expressarem. A manifestação da fé é um importante meio de afirmação de identidade de um povo que posiciona e se afirma, acima de tudo, como filho de Deus. Essa inabalável base é expressa de várias formas, dentre elas, através de manifestações cultural religiosas e sua estética sincrética, reproduzidas de geração em geração como um valioso patrimônio cultural que registra os modos de ser e viver no mundo de povos simples, geralmente excluídos da história oficial. No Norte de Minas Gerais são muito fortes as manifestações artísticas/ cultural – religiosas que denotam um sincretismo religioso de raízes africanas, portuguesas e indígenas, evidenciado pelas devoções a Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e outros, fruto das incursões dominicanas européias pelo continente africano no final do século XV. Essa empreitada catequética levou para a África a reza do Rosário e a devoção a Nossa Senhora do Rosário. Essas frondosas manifestações, vividas preferencialmente pelo povo pobre, ao longo do tempo, expandiram seu horizonte tornando-se representativas da identidade não só deste povo, mas em muitos casos, de todo um povo. Em Montes Claros, existem seis manifestações de Congado , que são: um de 1 Caboclinhos, três de Catopês e duas Marujadas. Todos realizam seus rituais em festejos no mês de agosto. O Terno dos Catopês é o mais representativo de todos, ao ponto da Festa de Agosto (festa religiosa de devoção a Nossa Senhora do Rosário) ser considerada a ―Festa dos Catopés‖. A própria estética da festa é referenciada às indumentárias deste grupo. As fitas que caem dos capacetes dos Catopês, assim como os próprios capacetes compõem os cartazes, convites e enfeites da festa há muitos anos, tornando-se o seu símbolo. Montes Claros se 357 proclama ―Cidade da Arte e da Cultura‖ a partir do universo congadeiro e principalmente da estética do Terno dos Catopês. Esse Congado é também o mais reproduzido praticamente por todos os artistas da cidade, como uma representação do ―espírito‖ da cidade. A festa atrai praticamente toda cidade, mostrando uma unidade que ultrapassa os muros das classes sociais e étnicas, tornando-se palco de congregação e orgulho regional. A força de expressão religiosa popular, mediada por uma arte fascinante e mágica, une todo um povo, colocando em um só chão, pobres e ricos, negros e brancos, o centro e a margem, mesmo que periodicamente. De acordo com Hermes de Paula (1979), os Catopês existem na cidade desde o século XIX, constituindo desta forma a história de Montes Claros. Sobre isso, Queiroz (2005) e Mendes (2004) ressaltam que essa festa promove uma imersão da comunidade a este universo mágico - religioso da congada. Um problema, no entanto, é apontado pelos autores: a falta de informação histórica, cultural e religiosa, por parte da comunidade montesclarense sobre os Catopês. Os autores tecem críticas ao alheamento coletivo acerca do universo simbólico deste festejo religioso, no qual, a maioria não sabe que sequer trata-se de uma manifestação de Congado, além da postura ―profana‖, portanto festiva, por parte dos não integrantes dos ternos, entre outros problemas. Estes e outros aspectos, a serem melhor elucidados em pesquisa, no entanto, não anulam e nem enfraquecem a rede de significados simbólicos tecida coletivamente que reforça a religiosidade e a identidade do povo, mediados por uma estética do sagrado que comove e revolve o chão cultural, molhando raízes e fazendo brotar a face desnudada do povo em suas sincréticas devoções. Remetendo a Geertz (1989) concordamos que cultura se constitui uma teia significados urdida pelo homem em sua produção existencial, a partir de diversificados fios. Eliade (2008) também nos lembra que a base da ‗humanidade‘ foi uma só (simbólica) e mesmo o homem que se posta como não religioso e se ―desprende‖ do sagrado, tem em sua espiritualidade vestígios do homo religiosus, que são continuamente dinamizados, mesmo que de forma inconsciente. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 358 BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a Arte. 6. ed. São Paulo: Editora Ática. 1999. CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994. CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. (A era da informação: economia, sociedade e cultura). V. 2. Trad. Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2008. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Tradução Rogério Fernandes. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GEERTZ, Clifford. 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Á luz de Pierre Verger, Sérgio Ferreti Homi Bhabha e Nestor Garcia Canclini , este trabalho objetiva compreender como se dá a articulação entre estas duas tradições religiosas a partir de suas deidades considerando a região fronteiriça, sincrética e híbrida em que estão inseridas: o sertão norte mineiro. Palavras-chaves: Identidade, Hibridismo, Inquices, Orixás, Sertanejo. A cosmologia africana se apresenta no mundo acadêmico como algo ainda a ser desvelado. No Brasil, mesmo os clássicos produzidos por grandes antropólogos como Bastide e Verger não são o bastante para colocar luz sobre o tema e torná-lo mais claro, mais evidente. Certamente, o processo sincrético que esta cosmologia sofreu - na medida em que penetrou no Novo Mundo via colonização - tornou o universo africano mais complexo e enigmático. A apreensão de um mundo cosmogônico totalmente diverso encontrou barreiras edificadas pela cultura e a sua compreensão somente é possível considerando-se categorias nos apresentadas pela dinâmica híbrida e sincrética: acomodação, negociação complexa de elementos culturais e re-significação.. Não pretendemos neste estudo desmerecer a grata e imensa contribuição de autores como Bastide e Verger, mas apenas atentar de maneira breve e tímida a uma também acanhada emergente especulação teológica presente na atualidade no campo afro-sertanejo. Buscar na fonte originária a compreensão acerca do panteão afro-brasileiro, sem dúvida, nos esclarece sobre um arcabouço de informações introjetadas somente pelo senso comum. Roger e Bastide se detiveram naquilo que 173 Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP e professora do curso de Ciências da Religião da Universidade Estadual de Montes Claros. 174 Especialista em Ciências da Religião. [email protected] ; [email protected] 361 mais presente se encontrava no imaginário brasileiro: os deuses dos yorubás, os orixás e, conseqüentemente a tradição religiosa que os tornou conhecido, o Candomblé. No entanto, este bem como outras tradições de matriz africana ainda merece estudos aprofundados não apenas sobre suas lendas mitológicas, fundamentos doutrinários, cânticos, o porquê de sua diminuição de adeptos e o fato de serem objeto de intolerância religiosa, mas também pela diversidade com que se apresentam por todo o território brasileiro. Neste texto, nos referimos em especial ao seu panteão, os Inquices e Orixás. No imaginário brasileiro, os últimos de origem yorubá, se estabeleceram de forma hegemônica como os deuses africanos reduzindo a um pequeno espaço a denominação Inquice , bantu. A grande maioria dos negros deportados para o território brasileiro possuía como bagagem cultural o arcabouço bantu e pertenciam à região do Congo, especificamente Angola . No entanto, a cultura religiosa africana que dominou nosso imaginário foi a Yorubá. O antropólogo José Jorge Carvalho (1999) procura explicitar sobre as causas de tal domínio apoiando-se em estudos historiográficos, bem como nos empreendidos por Pierre Verger. A grande concentração de mulheres e homens yorubás na Bahia e Rio de Janeiro teria, de acordo com tais estudos, contribuído para a preservação da cultura yorubá que este autor idealiza como um ―bloco de cristal‖ ao considerar as difíceis condições de preservação desta cultura, bem como o esforço extraordinário para que a mesma não se perdesse. A imagem do referido autor acerca desta cultura nos convidam - no que se refere à sua conservação - à uma comparação com a cultura bantu mediante uma hermenêutica sobre a terminologia ―bloco de cristal‖. As culturas yorubá e bantu, como sabemos, vieram para o Brasil através de representantes dos mais variados povos africanos, forçosamente migrados. A este respeito, sobre a diversidade africana deportada para o Brasil não há segredos. Não se pode pensar em homogeneidade cultural quando se trata da África, continente constituído por povos diversos. Certamente, havia aproximações culturais, mas não o bastante para se afirmar a existência de uma cultura homogênea. Transferidos para o Brasil os africanos deixaram para trás seu ambiente cultural sendo compelidos a se adaptarem ao Novo Mundo. Considerando que a ética nunca se desatrelou dos rituais, das oferendas e orações na África, é possível imaginar as dificuldades encontradas pelos africanos para cultuar seus deuses como 362 forma de pedirem auxílio na empreitada que enfrentavam. Certamente, os bantus encontraram maior dificuldade, uma vez que mesmo sendo a maioria, foram desarticulados, não conseguindo se constituir num ―bloco de cristal‖, isto é, numa massa concreta e consistente, apesar de sensível. Deslocados e descentrados culturalmente, desagregados dos seus, não conseguiram configurar sua cultura numa rocha límpida e clara onde seria possível identificar seus elementos. Ao contrário, sua cultura tornou-se difusa transformando-se em pedaços espalhados por todo o país apta, desta forma, ao processo híbrido e sincrético que viabilizou e garantiu mediante a re-significação, o surgimento de novas formas religiosas, a exemplo da umbanda. Desarticulados, portanto, os negros vindos do Congo procuraram no Novo Mundo formas e maneiras de invocarem a proteção divina. Na impossibilidade de construírem seu ―bloco de cristal‖ cultural buscaram pontos de intercessão entre as várias culturas africanas e a cultura européia. Susceptíveis e vulneráveis procuraram preservar e cristalizar seu repertório cultural. Entretanto, os encontros culturais são sempre violentos, a acomodação, a negociação complexa dos elementos culturais podem se dá mediante a imposição cultural de um povo. Não queremos afirmar, contudo, que se trata apenas de um fenômeno de inculturação. Hibridação cultural é tradução cultural, e - em função do momento histórico em que ocorre - é a obrigação de interpretar os elementos culturais do outro. A própria sobrevivência durante o processo de encontro cultural exige tal tradução. Como nos sugere Homi Bhabha(1998) , na dinâmica híbrida não se deve reduzir as relações interculturais a binômios como dominador – dominado, superior – inferior. Certamente, tal concepção reduziria as culturas dos povos dominados e colonizados como inferiores e ―sincréticas‖, considerando sincretismo segundo a perspectiva evolucionista que influenciou Nina Rodrigues. Segundo o ponto de vista deste autor, havia uma incapacidade das raças que considerava como inferiores – negros e índios - para as superiores especulações metafísicas do monoteísmo. Entretanto, o conceito de hibridismo é muito mais amplo comparado ao conceito de sincretismo, pois, como afirmamos, corresponde a uma tradução cultural. Traduções culturais produzem novas tradições e, conseqüentemente, novas identidades. Nestor Garcia Canclini(2006) afirma ser hibridações culturais processos socioculturais nos quais práticas discretas, ou seja, o local, se combinam gerando, desta forma, novas estruturas. Foi o que ocorreu com a cultura bantu que, 363 descentrada durante o processo de colonização do Brasil, contribuiu para a produção de novos blocos culturais. A dinâmica híbrida e sincrética própria dos encontros culturais não se constitui uma novidade no que se refere às tradições africanas, sendo que também não se constitui somente como processo forçosamente acionado pela colonização do século XVI. Referimos-nos à equivocada idéia de que processos sincréticos envolvendo as culturas européia e africana somente tenham ocorrido com o domínio colonial europeu. Em relação à África, o sincretismo também sobreveio em momentos históricos de independência política, mesmo que tal autonomia fosse mediante negociações econômicas e políticas. Retrata essa questão o reinado de Njinga Mbandi em meados do século XVII, marcado pelo confronto com os portugueses e pela sua conversão ao cristianismo. Líder dos ambundos-jagas, habitantes das regiões de Ndongo e Matamba, Njinga era descendente destes dois povos e reinou adotando costumes de ambos. A esse respeito nos coloca Marina de Mello e Souza (2001), Expressão do encontro entre dois grupos étnicos, que apesar das semelhanças tinham organizações distintas, Njinga era ambundojaga em sua genealogia, nos costumes que adotou e nosw povos que governou. A essa mistura foram acrescentados elementos portugueses não com a intensidade desejadas pelos missionários, mas produzindo paulatinamente mudanças decisivas na dinâmica das relações entre as tribos da África Centro-Ocidental. Apesar da sua resistência aos portugueses, Njinga relacionava tráfico, poder e cristianismo. Acreditava que o poder dos portugueses se devia à sua religião. Resignificado, vislumbrado como experiência religiosa que capacitava ao poder, o cristianismo atendia ao momento histórico-político do reinado de Njinga. A incorporação de seus elementos, portanto, não pode ser entendida como imposição. É certo que a rainha extraía desta experiência aquilo que mais se adequava ao seu contexto sócio-cultural e que imbricado aos elementos culturais dos ambundos-jagas podia ser re-significado. Não podemos ignorar que o processo de hibridação cultural sempre foi uma realidade, no entanto, atualmente, a globalização contribui para que seja cada vez mais acelerado e intenso. Retornando à cultura bantu , sua descentralização e, conseqüentemente, o processo híbrido e sincrético que se estabeleceu no período colonial brasileiro, 364 foram essenciais para que na atualidade, num mesmo terreiro, deuses yorubás e bantus se acomodassem de forma a não se constituírem de todo uma contradição. No sertão norte-mineiro, o campo afro-brasileiro que denominamos de afrosertanejo, basicamente se constitui a partir de três tradições: Umbanda, Quimbanda e Candomblé. Apesar de a segunda ser comumente considerada como o lado esquerdo da primeira e não como uma tradição independente, sua prioridade no que se refere às práticas ritualísticas e mágicas nos terreiros afro-sertanejos nos induz a duvidar se realmente se configura somente como lado esquerdo. O domínio da Quimbanda nos terreiros afro-sertanejos é uma realidade difícil de ser contestada. Sua busca pela solução imediata dos problemas e a questão axiológica 175 que a envolve, a transforma num atrativo superior e quase independente da Umbanda. Desta forma, talvez a melhor forma de nos dirigirmos a estas tradições seria considerá-las como ―energias‖ que se complementam, mas que possuem independência, assim são vistas pelos adeptos onde esta tríade é uma realidade concreta. A Umbanda chega ao sertão norte-mineiro no final dos anos quarenta seguida do Candomblé que teve seu primeiro terreiro inaugurado nos anos 50. A Umbanda desse período possuía uma grande aproximação com o Kardecismo e, apesar de não ignorar os deuses africanos, estes não eram os atores principais no seu culto. Privilegiavam-se as preces católicas e kardecistas e eram raros os cânticos e orações oferecidos às deidades africanas. Com o estabelecimento do primeiro terreiro de Umbanda nos anos 50, inaugurado por sacerdotes provenientes da Bahia e, a chegada do Candomblé logo após, progressivamente este quadro se modificou. À medida que o sacerdote umbandista inseria-se no Candomblé, a mesa branca de característica kardecista desaparecia dando lugar às giras e aos cânticos aos espíritos da terra e orixás. Entretanto, o Candomblé que se estabeleceu no sertão foi o Candomblé de Angola, conforme aponta Campos (2004), pesquisador que desenvolveu um estudo historiográfico desta tradição na região. Apesar de Angola, o Candomblé no sertão norte-mineiro cultuava os deuses africanos utilizando o termo Orixás, que sabemos 175 A tensão axiológica é produzida na coexistência da Umbanda, Quimbanda e Candomblé num mesmo terreiro afro-sertanejo. De acordo com nosso estudos sobre a umbanda sertaneja, esta tríade reproduz o que historicamente se estabeleceu no sertão norte-mineiro: a tensão entre o Bem e Mal, conexão onde “cada um desses valores produz o seu contrário ou é produto dele, um nasce do outro. Para melhor compreensão veja dissertação de mestrado intitulada “Umbanda Sertaneja. Cultura e Religiosidade no Sertão norte-mineiro” de Ângela Cristina Borges Marques. 365 ser Yorubá. Desta forma, a Umbanda também adotou tal termo. Apesar de dominante no imaginário social-religioso brasileiro, observa-se nos últimos anos nos terreiros de Candomblé da região a busca pela utilização contextualizada dos termos africanos, ou seja, sendo o Candomblé Bantu seu ―verbo‖ deve corresponder à cultura do Congo, especialmente de Angola. O que sucede é uma confusão mental no self religioso dos adeptos dos terreiros onde Umbanda e Candomblé coexistem, pois o ―verbo‖ yorubá ainda é dominante. Isso nos chama a atenção no sentido de tentarmos entender se na Umbanda deste tipo de terreiro os adeptos atribuem metafisicamente quais deuses? inquices ou orixás? A resposta para esta questão exige-nos uma breve reflexão teológica sobre bantus e yorubás. Na tradição Bantu o foco central é a terra, esta seria o princípio e a força que impulsiona tudo e todos. Este princípio, chamado de Kinsa é o fundamento de toda realidade. De Kinsa procede a palavra Inquice, nome atribuído aos deuses africanos do Candomblé de Angola. A terra como centro deste universo induz o afro-sertanejo a uma conclusão: os inquices mais do que os orixás estariam mais próximos da terra e mais, teriam estado sobre a terra, vivido nela. Numa atitude metafísica os inquices são ―humanizados‖. Tomando Bachelard(2001) como referência, poderíamos afirmar a partir deste autor que a terra é o devaneio da vontade, o convite a agir sobre a matéria. Por mais que seja resistente, a matéria ao sofrer a ação humana é forjada. Parece-nos que os Inquices estariam não apenas mais próximos, mas também mais aptos a agir sobre a matéria. Talvez isso explique a força da Quimbanda no sertão norte-mineiro, força que talvez não exista com a mesma intensidade onde o Candomblé presente não seja o de Angola. A Quimbanda Sertaneja expressa a tensão entre o Bem e Mal apoiada no Candomblé de Angola, este traz em seu panteão deuses que sobre a terra estiveram, deuses capazes de agir sobre o destino dos homens. Mas, a idéia de proximidade dos Inquices e sua atuação direta sobre a matéria não é difundida pelos pais de santo para os adeptos. Há um verdadeiro receio em desmistificá-los como não sendo os orixás. Desta forma, o adepto entende que são as mesmas deidades. Etimologicamente, o termo orixá ainda é obscuro. Comumente se aceita como sua etimologia o seguinte: ORI , que significa alto ou cabeça representando na tradição yorubá a individualidade, a sede das energias vitais e do destino. XÁ, significa força, portanto, orixá significa ―Força do alto‖ ou ―Força da cabeça‖. Ligada às forças da natureza, a tradição yorubá concebe deuses como as forças que 366 compõem a natureza e, como tal ligadas à condição humana. Seus cultos traduzem de certa forma, o contato com elementos naturais como água, terra, fogo e ar. Segundo Verger(2008) , O orixá seria, em princípio, um ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas, ou, então assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização. O poder, àse, do ancestralorixá teria, após a sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno de possessão ou por ele provocada. Enquanto força pura e imaterial, os orixás somente são perceptíveis aos homens ao agirem diretamente sobre um deles, veículo que os permitem voltar à terra para receber mediante cânticos, oferendas e ritos, o respeito de seus descendentes que o evocaram‖(2002). O que poderíamos apontar como diferença entre Inquices e Orixás? A pesquisa realizada por Pierre Verger (2008) sobre os orixás no Brasil e na África nos aponta também para uma humanização com narrativas mitológicas, (ódio, amor, ciúme, senso de justiça, etc , ou seja, sentimentos humanos). Afinal, orixá é um ancestral divinizado que viveu e morreu. O que nos chama a atenção nos terreiros afro-sertanejos onde predomina quase com unanimidade o Candomblé de Angola é uma forte tendência por parte dos seus líderes em estabelecer diferenças entre Inquices e Orixás, reforçando a idéia de que os últimos são essências da natureza e como tal também estão presentes no homem, isto é, cada ser humano teria em sua natureza um orixá. Tal questão acaba por se contrapor à emergente idéia, no campo afro-sertanejo, de que os Inquices podem ser espíritos que teriam vivido sobre a terra. Esta idéia não é assumida pelos pais-de-santo, há certo cuidado neste sentido, existe receio em fazer tal afirmação e colocar em risco a credibilidade do terreiro. Sendo assim, na prática, nos parece não haver muita diferença, a vinculação entre inquices e orixás ocorre sem aparentar contradições apesar de estarmos cientes que nem sempre o pai-de-santo pensa assim. A conexão das deidades ritualísticas do Cambomble (Inquices) e da Umbanda (Orixás), realizadas pelos adeptos, se dá através das línguas africanas. Nos terreiros localizados no sertão norte mineiro elas são elementos de ligação que coexiste e mantêm como veículo de expressão o Candomblé e a Umbanda num mesmo 367 terreiro. É através dos cânticos, das saudações e nomes dos iniciados que acontece o meio de comunicação religiosa entre os adeptos da mesma comunidade de culto e a tradição oral, além de ser um imenso conjunto literário, a grande escola da vida. Baseada numa concepção de homem e de universo que lhe confere uma origem divina, esta ligação reconhece um poder sagrado, criador, capaz de preservar e destruir. Os Bantus ligados à ancestralidade e os Yorubás a forças da natureza. Num mesmo terreiro Inquices (Candomblé) e Orixás(Umbanda) coexistem num processo de acomodação e re-significação do simbólico. A tradição africana concebe a fala como um dom de Deus: divina no sentido descendente e sagrada no sentido ascendente, pois materializa ou exterioriza as vibrações das forças. Esta fala é universalizada nos ritos afro-sertanejos e serve como eco da fala divina, pois pode colocar em movimento forças latentes nos seres e objetos como um homem que levanta e se volta ao ouvir seu nome. Parece-nos haver uma tensão entre o que está presente no imaginário social e a mente do pai-de-santo que, por sua vez, não assume tal tensão. Desta forma, ganha corpo a re-significação, pois que a maioria dos adeptos entende serem inquices e orixás os mesmos deuses demonstrando que a força do imaginário social prevalece. A re-significação, portanto, demonstra a força híbrida das regiões de fronteira, a capacidade de entre-lugares, como o sertão, em produzirem o novo. Portanto, aquilo que pode parecer um movimento irregular no sentido de ser impuro, na verdade, é esplendidamente fértil, pois produz novas formulações e contornos culturais. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade. São Paulo: Martins Fontes,2001 BASSIN, Mark. ―Inventing Siberia: Visions of the Russian East in the Esrly Nineteenth Century‖. In: The American Histoucal Review, 96 (3), jun. 1991, pp. 763-794. BASTIDE, Roger. O Candomblé na Bahia. São Paulo: Brasiliana, 1978. BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. CAMPOS, Leonardo Cristiane. A diversidade dos ritos bantus na cidade de Montes Montes Claros: Unimontes, 2004. 368 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2006 CARVALHO, José Jorge. Um espaço público encantado: Pluralidade religiosa e modernidade no Brasil. Série Antropologia. Brasília: Universidade de Brasília, 249, 1999. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Tradução Rogério Fernandes. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC_ Livros Técnicos e Científicos Editora S.A. 1998. MELLO E SOUZA, Marina. Rei negros no Brasil escravista.Belo Horizonte: UFMG, 2001. VERGER, Pierre. Orixás. Deuses iorubas na África e no Novo Mundo. Bahia: Corrupio, 2002. CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. (A era da informação: economia, sociedade e cultura). V. 2. Trad. Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2008. 369 RESUMOS DOS GRUPOS DE TRABALHO - GTs 370 GT 1: IMPACTOS DAS TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS E DA GLOBALIZAÇÃO NA (INTER)RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E SAÚDE Coordenação: Dra. Carolina Teles Lemos Resumo: Se a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e revisadas à luz de novas informações sobre estas próprias práticas, alterando constitutivamente seu caráter (Giddens), também a tradicional (inter)relação entre religião e saúde passa por essas revisões. Os impactos dessa reflexividade incidem tanto sobre a religião, que reconfigura seu olhar em relação à saúde, quanto sobre a área da saúde (pesquisadores da área, profissionais, pessoas acometidas de doenças graves ou não), que revisa suas concepções e buscas religiosas. Tendo presente essa conjuntura, o GT visa ser um espaço de debate sobre os impactos das transformações culturais e da globalização na (inter)relação entre religião e saúde. Palavras-chave: religião, saúde, transformações culturais. Proponente: CRISTINA GALDINO DE ALENCAR Título: Cura ou salvação no espiritismo Resumo: Meu objetivo, nesta comunicação, é mostrar, ainda que em fase de construção, investigação sobre a cura pela imposição das mãos no espiritismo na visão dos clientes que procuram este tratamento. Nele, propomos compreender o porquê desta busca como também verificar qual o significado de cura para ele, cura do corpo ou a salvação espiritual? São discutidos alguns aspectos conceituais, para a compreensão da saúde, da doença, dos processos de procura de saúde, e do ritual de imposição das mãos como terapêutica. A dissertação encontra-se pronto para qualificação. Proponente: DEYVIS NASCIMENTO RODRIGUES Título: Associação entre prática religiosa e de atividades física em Universitários Guanambienses Resumo: A religião desempenha um importante fator para as experiências humanas e para a relação do homem com a saúde, desta forma o presente trabalho teve por objetivo identificar as relações entre o nível de Atividades Físicas Habituais (NAFH) e a prática religiosa em universitários da área da saúde das universidades presenciais com campus na cidade de Guanambi/BA. A amostra contou com 41 estudantes, de ambos os sexos, com idade média de 20,85+3,4anos, os dados obtidos no questionário foram correlacionados em tabela cruzada. Ao final do trabalho, nota-se que dentre os estudantes entrevistados, os ditos católicos são em sua maioria ativos, em contra partida os evangélicos em sua maioria são considerados insuficientemente ativos. Proponente: FILIPE GOMES GADEIA BRITO Título: A interferência da benzedura no processo terapêutico Resumo: O presente trabalho tem por objetivo conhecer de que forma as benzedeiras contribuem para o tratamento terapêutico e a possível cura, assim como o ritual utilizado e como ele é transmitido. Para tal, foi realizado uma pesquisa quanti/qualitativa, com informações coletadas a partir de entrevista semi-estruturada. Percebe-se que existe a interferência da benzedura no processo terapêutico e vale salientar que a mesma não exclui o tratamento médico, visto que existem determinados males onde os benzimentos não podem intervir. A prática de benzimentos alcançou ao longo dos tempos lugar de grande importância, pois os que recorrem às benzedeiras sejam movidos por uma fé no ritual, palavras e objetos utilizados, tentam encontrar ali a cura de enfermidades. Proponentes: SANDRA CÉLIA COELHO GOMES DA SILVA SERRA DE OLIVEIRA, JARDELSON ROCHA OLIVEIRA, RICARDO BRUNO SANTOS FERREIRA Título: Fé e cura: eficácia simbólica na Romaria do Bom Jesus da Lapa Resumo: Os pressupostos das ciências sociais aplicadas à saúde indicam que tanto o homem como a sua vida social estão inscritos de forma consciente e inconsciente. A utilização de fitas, chapéus, imagens, velas e outros objetos conferem a Romaria de Bom Jesus da Lapa uma característica peculiar. Estes símbolos associados à fé permitem a comunicação e harmonia com o invisível, 371 intocável e perfeito. Transformando cada instrumento utilizado em símbolos essenciais para a obtenção da cura perante os mais diversificados males que lhes acometam. O presente artigo permite a reflexão sobre a correlação existente entre o uso de símbolos e conseqüentemente a obtenção da cura através dos mais diversificados tipos de rituais realizados para o Senhor Bom Jesus da Lapa. Proponente: ALLYNE CHAVEIRO FARINHA Título: Senhoras do Sertão: uma análise das práticas de cura pela fé Resumo: Quebranto, cobreiro, mau-olhado, espinhela caída, vento-virado, erisipela. Estes são termos que fazem parte de universo mágico-religioso, o universo das mulheres benzedeiras que tratam destes e outros males com o poder de suas orações. As atividades das mulheres benzedeiras são oriundas de uma realidade campesina, em que se tinha pouco acesso a medicina erudita, atualmente no estado de Goiás essa realidade se alterou e embora o grande avanço médico e uma maior facilidade de acesso ao atendimento, essas práticas ainda se perpetuam. Nesta perspectiva, pretende-se com este trabalho analisar como estas práticas coexistem com o poder médico institucionalizado e como essas mulheres organizam seus rituais em meio a essa nova realidade. Proponente: GENIVALDA ARAÚJO CRAVO DOS SANTOS Título: Religião, saúde integral, terapias espirituais religiosas e qualidade de vida em tempos de racionalizações: desafios no século XXI Resumo: A comunicação objetiva refletir sobre as buscas, as escolhas e as práticas adotadas pelas pessoas, em um contexto em que as concepções de saúde, doença, religião levam a marca da racionalização positivista e da racionalização transdisciplinar. As terapias espirituais religiosas (TERs) são entendidas como os métodos e as técnicas que as pessoas fazem uso para o alcance dos seus objetivos, interesses e desejos, a fim de estabelecerem em suas vidas saúde integral, qualidade de vida e gerenciamento das anomias. Por que as pessoas procuram ou procuraram as TERs? De que forma as TERs proporcionam ou proporcionaram saúde integral, qualidade de vida e gerenciamento das anomias? A metodologia adotada na investigação foi a transdisciplinar qualitativa etnográfica e estaremos apresentando alguns resultados da pesquisa de doutoramento. Proponente: JARDELSON ROCHA OLIVEIRA Título: Fé e regeneração: percepções do processo de doença e cura entre os frequentadores de um centro espírita na cidade de Guanambi/BA Resumo: O Espiritismo Kardecista tem destaque na área de pesquisa das ciências sociais e seu estudo pode favorecer a compreensão do poder que a religião exerce sobre os aspectos socioculturais do homem. O objetivo desta pesquisa foi compreender os motivos que levaram os freqüentadores de um centro espírita, na cidade de Guanambi-Ba, a crer que obtiveram a cura das suas patologias através da fé na doutrina, bem como, suas percepções acerca do processo de doença e cura. Proponente: NAILTON SANTOS DE MATOS E FRANCISCO LUIZ GOMES DE CARVALHO Título: Princípios e práticas de saúde no movimento adventista: a relação entre saúde e religião Resumo: Este trabalho visa discutir os princípios e as práticas de saúde dentro do movimento adventista na segunda metade do século XIX. Neste período, os hábitos alimentares dos norteamericanos já não propiciavam melhores condições físicas. Os princípios fundamentais de saúde abraçados pelos adventistas vem de sua percepção da estreita relação entre saúde física e saúde espiritual. Tais princípios estão alicerçados nos trabalhos dos reformadores, médicos e fisiologistas do século XIX. Segundo White, ― tudo que nos diminui a força física enfraquece a mente e a torna menos capaz de discernir entre o bem e o mal. Ficamos menos aptos para escolher o bem, e temos menos força de vontade para fazer aquilo que sabemos ser justo‖. Compreender as práticas de saúde dentro do movimento adventista é entender o modo como este movimento vê o homem e sua relação com seu Criador. Proponente: PABLO LUIZ SANTOS COUTO Título: A importância das religiões populares urbanas como alternativas à terapêutica: um estudo amostral na igreja batista Filadélfia Independente em Guanambi Resumo: Apresenta a importância e o papel da religião urbana como geradora da fé e na cura milagrosa como a analisada na Igreja Batista Filadélfia Independente de Guanambi. O método utilizado é a análise amostral de uma entrevista semi-estruturada, referente à metodologia quanti- 372 qualitativa, em uma pesquisa empírico-bibliográfica. Conclui-se, a busca pelo sagrado e sobrenatural é algo próprio do ser humano, que leva-o a confiar na fé apontada pela religião. Proponente: RAIMUNDO NONATO LEITE PINTO Título: Religião e saúde: o caso de portadores do HIV Resumo: Nosso trabalho teve o propósito de identificar as características da religião, nas suas mais variadas manifestações e verificar se a crença religiosa exerce alguma influência para pacientes portadores do HIV, no enfrentamento dessa doença.Comparando se o pensamento de autores clássicos da sociologia da religião com o que nos dizem os sujeitos de nossa pesquisa, somos levados a afirmar que a religião exerce uma forte influência nos pensamentos e atitudes das pessoas. Isto seria uma forma de preparar cada uma destas para o enfrentamento da doença. GT 2: RELIGIÃO, VIOLÊNCIA, ETNICIDADE E GLOBALIZAÇÃO Coordenação: Dra. Irene Dias de Oliveira Resumo: Esta mesa pretende analisar a relação entre religião, violência e etnicidade no âmbito da sociedade globalizada, multicultural e plurirreligiosa. A violência tem tido um aumento considerável na sociedade atual e exige reflexão mais acurada e atenta. De outro lado a relação entre violência, religião e etnicidade tem dado origem a polêmicas generalizadas e por vezes superficiais impedindo um olhar mais atento e acurado para as dimensões históricas, culturais e sociais em relação a determinados grupos étnicos. Esta mesa pretende portanto acolher propostas que debatam e questionem a relação religião, violência e etnicidade na sociedade atual. Palavras-chave: religião, etnicidade e violência. Proponente: AZIZE MARIA YARED DE MEDEIROS Título: John Locke e o prenúncio da individualidade religiosa Resumo: Este trabalho apresenta uma reflexão sobre a Carta acerca da tolerância de John Locke (1632 – 1704), escrita no ano de 1689. Nesse texto o filósofo inglês não só argumenta a favor da tolerância entre as religiões, uma decorrência natural do próprio Evangelho, como também demonstra o equívoco em que se constitui a interferência do Estado em assunto tão evidentemente privado como é a religião. O que chama a atenção é que, nessa busca pela tolerância, Locke permite entrever os caminhos que a religião deverá buscar, com uma acentuada defesa da instituição de um Estado laico. A argumentação lockeana sobre a tolerância religiosa e a simultânea instauração de um Estado laico traz como consequência, na verdade e de forma implícita, a defesa da individualidade religiosa como meio de impedir a violência e instaurar o respeito pelas diferenças culturais e étnicas. Do mesmo modo, é possível antever a consolidação da individualidade religiosa nos séculos vindouros, o que se caracterizará, de modo bastante específico, na pós-modernidade globalizada. Proponente: CLAUDIA PICAZIO Título: A empatia como pressuposto para o diálogo intercultural e plurireligioso Resumo: A multiculturalidade, aspecto fundamental da sociedade globalizada, requer um forte compromisso social, econômico, político por parte Das nações. As rupturas culturais e religiosas podem, muitas vezes, favorecer a divisão e a violência. A empatia assim como formulada pela filósofa alemã Edith Stein será aqui apresentada como um dos possíveis pressupostos para um diálogo, compreendido como momento necessário para a troca de experiência, para o respeito, a integração e a promoção da diversidade, na convicção de que uma cultura de paz não pode prescindir de uma relação estreita entre direitos humanos e religião. Palavras-chave: multiculturalidade - empatia – diálogo. Proponente: IRAN LIMA ARAGÃO FILHO Título: Relações de poder e gênero: aspectos religiosos e culturais ligados à mudança de mentalidade nas relações de poder entre os gêneros no seguimento protestante Resumo: O presente estudo faz uma análise sobre as mudanças no perfil de dominação existente no seguimento protestante, no tocante ao papel da mulher, que tem conquistado cada vez mais espaços nas igrejas, fato que se evidência pelo número cada vez mais crescente de pastoras e cargos de lideranças que atualmente são destinados as mulheres em várias congregações Brasil afora, o que até pouco tempo atrás era difícil de acontecer, tendo em vista que esse é um seguimento no qual os princípios basilares de organização são permeados de um conservadorismo de gênero, que sempre relegou as mulheres a um segundo plano dentro da comunidade eclesiástica. 373 Proponente: MARIA SYLVIA GONÇALVES Título: Bororo e brancos uma relação pacífica? Resumo: Com esse projeto pretende-se mostrar a conflitual relação entre Bororos e brancos durante o processo do contato. Perguntamo-nos sobre a possibilidade de uma convivência entre ―brancos‖ e Bororo. A história do contato nos revelou a dificuldade da convivência entre ambos, mas ao mesmo tempo nos ensinou a entender o diferente e, principalmente, nos possibilitou entender como o etnocentrismo, pode contribuir para o aumento do preconceito e dos conflitos entre os povos. Palavras-chave: Bororo- cultura - conflitos Proponente: OLI SANTOS DA COSTA Título: Piabiru: o caminho sagrado dos povos pré-colombianos Resumo: Nesse artigo iremos tratar de uma questão bastante polêmica. Trata-se do caminho sagrado dos pré-colombianos denominado caminho de Piabiru, que segundo o imaginário das tradições indígenas o referido caminho foi criado pelo misterioso Sumé, um homem branco, que apareceu a milhares de anos atrás, entre as civilizações da América pré- colombiana. Sumé era uma espécie de profeta ou um grande Xamã, que percorreu um caminho da Bolívia à Argentina, totalizando cerca de cinco mil Kilometros, instruindo os povos indígenas por meio de um código ético de vida, e também, ensinando novas técnicas em relação a agricultura. Entretanto, quando os padres católicos jesuítas chegaram na América do Sul para colonizar e catequizar os "nativos", ouviram deles esse relato e pela semelhança fonética trataram de sincretizá-lo com o apóstolo São Tomé, e se auto denominaram seus representantes com o objetivo de facilitar a catequização. E ainda, proibiram sob pena de morte a pronúncia do nome Sumé. Tal violência praticada, que teve como fim aculturar essa população étnica, trouxe significativas consequências para o acerco histórico, cultural, social e religioso dessa população, tendo em vista que esse caminho era um caminho considerado sagrado, e que levaria esses povos a terra sem mal, a lendária terra prometida. Proponente: CLAUDOMILSON FERNANDES BRAGA Título: A tipologia das representações sociais e os atos comunicativos: o caso da reserva indígena Raposa Serra do Sol (2005 – 2009) Resumo: O objetivo deste artigo é demonstrar a partir da tipologia das Representações Sociais e dos atos comunicativos, sistematização desenvolvida por Serge Moscovici, a relação existente entre estes dois universos conceituais e como a difusão também pode subsidiar a construção de Representações Sociais (RS) do tipo polêmica. O presente estudo teve como base amostral todas as noticias publicadas pelo jornal Folha de São Paulo entre os anos de 2005 e 2009, período em que ocorreu processo de demarcação e homologação da Terra Indígena Raposa / Serra do Sol no estado de Roraima (Brasil). A categorização do corpus textual ( Strauss, 1987; Strauss e Corbin, 1999/1998) com posterior análise estatística através do software SPSS possibilitou identificar a relação entre os atos comunicativos do tipo difusão e as RS polêmicas. Proponente: WAWAY KIMBANDA Título: Africanidade religiosa no sertão norte mineiro na era da globalização Resumo: O trabalho se debruça sobre as heranças religiosas africanas no sertão norte mineiro. Pergunta pelo seu lugar na era da globalização. Desdobra-se na perspectiva da Antropologia social da religião. Focaliza a interação entre a africanidade religiosa e a cultura da globalização. Assim o trabalho possibilita perceber os impactos e desafio produzidos pelo ―controle‖ exercido por essa cultura nas heranças religiosas africanas. O filósofo Gilles Deleuze enxergou longe quando antecipou ao surto da globalização analisando filosoficamente a ―sociedade de controle‖. É indispensável interpretar o sentido do ―controle‖, pois globalização expressa o sentido da universalidade. As conseqüências são evidentes e rápidas mudanças sofridas nessas heranças que são caracterizadas pela continuidade na descontinuidade, de forma sincrética e condenada. Proponente: ELCIO SANT´ANNA Titulo: O papel da narrativa relacionado a rituais e festividades de São Benedito no município de Bragança. Resumo: A presente comunicação busca inaugurar um esforço de aquilatar a presença da narrativa como trama mítica no contexto das devoções e festividades beneditinas na Zona Bragantina, festas estas que marcam de forma contundente o calendário da região, determinando uma afluência de grande mota de fieis e foliões. Dentre os elementos de grande destaque, está a marujada, rito, dança seculares, radicados em diversas partes do país, mas que na versão bragantina, segundo Armando 374 Bordallo da Silva, apresenta particularidades ímpares. Segundo este, o drama marítimo não se encontra presente no ritual e nas festividades da Marujada de Bragança. Se tem algum relevo afirmar que ser ―bragantino é ser marujo e devoto de São Benedito‖, a que se perguntar como pode a tal ―bragantinidade‖ ser afirmada nos seus rituais, prescindo das narrativas fundantes, preenchedoras dos quadros sociais da memória. Assim, não seria o caso de perguntar de maneira insistente se a ―questão do auto‖ também se aplicaria aqui? Ou será que este se trata de mais um ―retorno do recalcado‖, ―ilusão do arcaísmo‖ em busca de um ‖auto originário‖. Proponente: DIRCEU MARCHINI NETO Titulo: A Ordem do Hospital no noroeste da Península Ibérica durante a Idade Média Resumo: A Ordem Militar e Religiosa do Hospital esteve presente na Península Ibérica desde os primeiros anos do século XII e atuou de forma muito significativa na região da Galiza, ao longo dos caminhos de Santiago. No norte de Portugal desempenhou importante papel na organização do território, além da assistência aos peregrinos. A existência dos Hospitalários no noroeste ibérico teve como sustentáculo as doações e privilégios régios e pontifícios dos reis de Castela, Leão e Portugal e dos Sumos Pontífices. Proponente: GIOVANA DOS ANJOS FERREIRA Titulo: Intolerância religiosa: Islamismo em Belém Resumo: A presente produção visa fazer uma analise a respeito da descriminação, preconceito e desrespeito que gera intolerância religiosa social e cultural para com a comunidade islâmica partindo desse pressuposto, Iremos fazer uma apresentação da convivência ,organização,reação da comunidade islâmica em Belém.levantando a questão:se há intolerância religiosa pra com os islâmico em Belém e de que forma isso ocorre. Proponente: HULDA SILVA CEDRO DA COSTA Titulo: Religião e Violência Resumo: Neste artigo vamos tratar da pungente questão da relação entre a religião e a violência, em suas mais variadas interfaces, com foco, inclusive, no fundamentalismo, procurando elucidar se a violência pode encontrar a sua origem na própria religião ou não. A violência é uma dimensão cultural, que tem suas raízes históricas e simbólicas, portanto, construída ao longo do tempo e também pela cultura dos povos. Alguns antropólogos apregoam ser a religião a própria causa da existência da violência no mundo, outros entretanto afirmam que a violência faz parte da própria dimensão humana. E para abordar a temática faremos uma incursão inicialmente procurando elucidar a origem provável da violência humana, perpassando pela questão do sagrado e da violência, e procederemos ainda a uma análise do fundamentalismo, desde o seu surgimento através do protestantismo norte americano, para por fim, podermos apresentar algumas reflexões sobre tão grave e excruciante problemática. Proponente: LEILA DO SOCORRO ARAÚJO MELO Titulo: Africanidade, Resistência cultural e Religiosidade: leituras da não disciplinarização do corpo na capoeira em Belém. Resumo: O presente estudo objetiva fazer uma reflexão em torno da prática da capoeira em Belém, entendendo-a como elemento que trás em seu bojo aspectos de resistência física e simbólica, articulada a criação de estratégias de sobrevivência, seja nos aspectos da religiosidade, ludicidade e corporeidade.O estudo parte de material bibliográfico e etnográfico da capoeira paraense, e é demonstrativo do universo simbólico sincrético presente nesta expressiva prática cultural. Palavras-chave: simbolismo, capoeira, resistência. Proponente: LUANA ANDRESSA FREITAS RIBEIRO PERES Titulo: Intolerância religiosa entre católicos e protestantes na Amazônia: um diálogo através do ensino religioso Resumo: Este trabalho foi construído através de trabalhos realizados em atividades pedagógicos durante os estágios supervisionados, pois, se observou os conflitos da mesma religião, com aspecto religioso diferente. Por esse motivo, foi centralizada a temática da intolerância religiosa entre catolicismo e protestantes, tendo como foco a Amazônia, onde a um grande quadro de pluralismo religioso. Em pleno século XXI e bastante comum vivenciarmos casos de intriga religiosa nas escolas tanto publica como particular. Com isso, o ensino religioso auxilia dentro da sala de aula interações de diferentes culturais proporcionando e valorizando o respeito entre os indivíduos cristãos e não cristãos, mostrando a importância de se trabalhar em conjunto. 375 Proponente: MAURINEIDE ALVES DA SILVA Titulo: O ―eixo do mal‖ x o "grande satã‖: a construção da doutrina maniqueísta no contexto das relações Estados Unidos e Oriente Médio Resumo : A relação Estados unidos e Oriente Médio é marcada por diferenças tão acentuadas que tal encontro tem provocado um choque étnico, religioso e cultural extremamente delicado e motivador de conflitos.Os dois termos proferidos por destacados lideres políticos: o termo "O Eixo do Mal" do presidente dos Estados Unidos George W. Bush referindo-se à países do Oriente Médio e o termo "O Grande Satã" do líder supremo do Irã Aiatolá Ali Khamenei referindo-se aos Estados Unidos tem forte conteúdo maniqueísta e nos apresentam,portanto, uma similitude entre as duas culturas que pode funcionar como uma motivação e/ou justificação para a relação conflituosa entre os dois lados.A motivação/justificação nesse caso é a crença maniqueísta em uma inevitável luta do bem contra o mal e que está enraizada na cultura de ambos os povos:dos Estados Unidos por sua descendência puritana e do Irã em função do islã. Proponente: ROBERTO FERNANDES DE MELO Titulo: Sociedade, Política, Violência e Meio Ambiente Resumo: O presente artigo, fazendo uso da pesquisa bibliográfica, faz uma análise das relações entre sociedade e natureza, mostrando que as injustiças e violências nas relações humanas e sociais promovem também a exploração do meio ambiente. Desta forma as consciências políticas e ambientais caminham juntas. os movimentos ambientais são apresentados como modelos na busca de mudanças paradigmáticas das relações sociedade e meio ambiente. Proponente: CRISTINA ANGELINI MELCHIOR Titulo: A Fé Bahá‘í como proposta de Paz Mundial Resumo: A Fé Bahá‘í, cujas raízes remontam ao ramo Xiita do Islã, nasceu no atual Irã. Seu fundador, conhecido como Bahá‘u‘lláh, iniciou um sistema religioso que tem como princípio fundamental um projeto ambicioso de unificação da humanidade em torno do que seus adeptos reconhecem ser ―a religião de Deus‖, conceito aparentemente contraditório com o de ―unidade na diversidade‖, que todos os Bahá‘ís utilizam como carro chefe para minimizar qualquer dúvida quando são indagados a respeito da universalidade da sua fé e do respeito às diferenças de raça, etnia, gênero e credo. A despeito da sua atuação em prol globalização da fé e da paz mundial, os Bahá‘ís são perseguidos no seu país de origem. São proibidos de estudar, trabalhar e, muitas vezes, seus líderes são condenados à morte pelo governo iraniano. GT 3: PROTESTANTISMO E GLOBALIZAÇÃO Coordenação: Dr. Eduardo Gusmão de Quadros Resumo: As relações entre protestantismo e capitalismo fazem parte dos estudos clássicos sobre os movimentos religiosos herdeiros da Reforma Protestante. Contudo, faltam ainda análises acerca das possíveis imbricações entre as práticas do sistema econômico atual e a expansão do protestantismo na América Latina. Sem causalidades lineares, a experiência protestante parece correlacionada com a modernização, com a expansão dos mercados, com a urbanização rápida, com a cultura midiática cada vez mais hegemônica no continente. Portanto, esse grupo de trabalho é um espaço para reflexão onde pesquisadores e pesquisadoras troquem idéias e informações sobre o mundo evangélico, sua cultura, suas manifestações de fé, suas práticas sociais, colocando como pano de fundo os processos da globalização. Palavras-chave: Protestantismo, globalização, crenças e mercado. Proponente: DIÓGENES BRAGA RAMOS Título: Protestantismo e política a partir de Paulo Wright Resumo: Este ensaio visa uma leitura política a partir do protestantismo a luz de Paulo Wright. Não é possível fazer um resgate histórico apurado deste protestante catarinense em nível político e teológico com precisão, pois existem poucas pesquisas sobre o mesmo e um grande desencontro de informações. Mas procurarei buscar uma relação de Paulo Wright a partir de sua formação cultural, política, social e teológica tendo como pano de fundo uma aproximação teológica de diálogo com 376 Paul Tillich. Destacando que no processo de globalização formatado pela relação midiática o protestantismo tem um grande papel na relação política no cenário brasileiro. Proponente: TIAGO REGE DE OLIVEIRA Título: ―Crentes‖: o imaginário sobre os fiéis pentecostais da Igreja Assembléia de Deus Resumo: O movimento religioso denominado pentecostalismo moderno que surgiu nos Estados Unidos no inicio do século XX chegou ao Brasil já nos primeiros anos de seu desenvolvimento. Surgem nessa primeira fase de implantação uma das maiores e tradicionais representantes do movimento pentecostal no Brasil, a Igrejas Assembléia de Deus. Devido sua maneira própria de analisar e se relacionar com a sociedade em que estava inserida e por desenvolver um padrão específico de postura e comportamento, foi desde o princípio alvo de criticas que incidiam sobre suas práticas religiosas, sua forma de exercer a fé e a religiosidade, bem como sua liturgia de culto. Tudo isso fez surgir no imaginário das sociedades aonde chegavam certos estereótipos que de uma maneira geral era resumido na terminologia de cunho pejorativa ―os crentes‖. Proponente: JÚLIO CÉSAR TAVARES DIAS Título: Nova caça às bruxas: o ethos da Igreja Universal do Reino de Deus Resumo: Neste trabalho procede-se a análise da prática religiosa da Igreja Universal do Reino de Deus, acreditando ser ela o melhor e mais representativo exemplo do chamado movimento neopentecostal e da Teologia da Prosperidade, buscando entender suas principais práticas e encontrar razões para seu rápido crescimento, principalmente entre pessoas das classes mais baixas. Consideramos aqui como suas práticas caracterizantes e principais: 1. os rituais de exorcismo, 2. a entrega de dízimos e ofertas por parte dos fiéis, 3. práticas semelhantes às encontradas no catolicismo popular brasileiro. Proponentes: LUCÍ FARIA PINHEIRO, ALLYSON DE ABREU MORAIS, ISABEL CRISTINA V. DE OLIVEIRA, JULIANA BRAGA DE ASSIS Título: Elementos para uma reflexão sobre o ecumenismo como alternativa em face do contexto sócio-cultural e religioso da economia de mercado Resumo: A proposta visa apresentar uma contribuição ao debate sobre a atualidade do ecumenismo como estratégia política e ético-religiosa de enfrentamento das conseqüências sócio-culturais na formação da cidadania e avanços na construção de uma sociedade mais justa. Parte da pesquisa aborda a tendência da IURD em adequar-se diretamente ao mercado a partir da venda da salvação por meio de uma mídia própria voltada para o mercado especializado e sua entrada na política eleitoral. Outra parte converge esforços no sentido de apontar o espaço do trabalho como permeável à perspectiva ecumênica, mostrando como capital e trabalho tentam ajustar seus interesses para gerir a instabilidade no cotidiano, procurando de um lado cumprir com as metas lucrativas e de outro, suprir a ausência da sociabilidade de classe nas organizações políticas. Por último, avançamos no sentido de apontar como os cristãos enfrentam através da perspectiva ecumênica nos encontros nacionais de fé e política, os desafios colocados pela ideologia neoliberal contra a crise do ideário socialista. Proponente: EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS Título: Protestantismo e modernidade: uma leitura de Ernest Troeltsch Resumo: A discussão sobre protestantismo e modernidade surgiu ainda na época da reforma protestante. Tal relação foi, inclusive, utilizado enquanto argumento apologético pelas missões evangélicas. O sociólogo alemão Ernest Troeltsch fez uma discussão original do tema, em obra publicada no inicio do século XX. É esta obra, hoje clássica apesar de pouco conhecida no Brasil, que discutiremos nesta comunicação. Proponente: ALBERTO DA SILVA MOREIRA Título: Pentecostalismo brasileiro para exportação Resumo: Esta comunicação aborda o processo de expansão internacional de algumas das mais influentes e dinâmicas igrejas pentecostais brasileiras. Originadas nos anos 1980, igrejas como a Universal do Reino de Deus, Renascer em Cristo, Internacional da Graça de Deus, Deus é Amor, Sara Nossa Terra e Fonte da Vida expandiram primeiro para a América Latina, Portugal e Estados Unidos e hoje afirmam estar presentes, como a Universal, em mais de 170 países. Além de fazer um painel deste crescimento rasante, sugiro a hipótese de uma afinidade eletiva entre o processo de globalização da sociedade capitalista ocidental e a dinâmica interna do próprio (neo)pentecostalismo. Por um lado essas igrejas tem uma capacidade impressionante de permanecer homogêneas em 377 muitos aspectos, por outro lado elas usam e reprocessam (geralmente em chave negativa) o imaginário das culturas locais. Palavras-chave: Pentecostalismo, Globalização, Religião, Igrejas Neopentecostais. GT 4: SANTIDADE, PROFECIA E SABEDORIA Coordenação: Dr. Valmor da Silva Resumo: A mesa propõe a discussão sobre santos/as, profetas e sábios/as, no âmbito das religiões e de seus textos sagrados. Os temas de santidade, profecia e sabedoria, embora partindo de situações culturais específicas, perpassam as diversas religiões e culturas, na ótica da globalização. Perpassam igualmente as diversas épocas históricas, para expressar a tradição, a transformação e a modernidade. As personagens trazidas para a discussão podem ilustrar aspectos como carisma, liderança, martírio e messianismo. Podem também apresentar-se textos sagrados que ilustrem a temática proposta, além de temas específicos sobre determinados enfoques. Palavras-chave: santidade, profecia, sabedoria Proponente: VALMOR DA SILVA Título: Santidade como atributo divino e humano: o exemplo do Padre Pelágio Resumo: Analisa a santidade como atributo exclusivamente divino, mas igualmente atribuído a seres humanos. Santo é o que está próximo de Deus ou então, no outro pólo, o que está distante dele. Santidade caracteriza o tremendo e o fascinante da divindade, bem como sua hierofania, ou seja, a manifestação do sagrado aos seres humanos. Como na própria Bíblia Hebraica, por um lado Deus é santo, transcendente e inacessível, como na chamada Lei de Santidade (Lv 17-26) e, por outro, está próximo, caminha com o povo, acompanha as pessoas, como na marcha do povo de Deus pelo deserto (Nm 11-14). A Moisés Deus afirma: ―Não poderás ver a minha face, porque o homem não pode ver-me e continuar vivendo‖ (Ex 33,20). Ao mesmo Moisés, poucos versículos antes, afirma o contrário: ―Iahweh, então, falava com Moisés face a face, como um homem fala com seu amigo‖ (Ex 33,11). A exposição será aplicada a um exemplo concreto, a trajetória de santidade do Padre Pelágio Sauter, cognominado o apóstolo de Goiás. Proponente: EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS Título: Os poderes do morto: sentidos do corpo de padre Pelágio Resumo: O corpo do santo é um corpo sagrado. Isso significa que ele, ou partes dele, são receptáculos de um poder miraculoso. Isso costuma ser revelado, especialmente, depois da personagem considerada santa haver falecido. A devoção ao Padre Pelágio não foge à regra, sendo seu túmulo visitado regularmente por fiéis que guardavam sua memória. Logo, afirmam os relatos, certa água começou a jorrar do local, e as pessoas se aproveitavam dela para encontrar a cura de problemas somáticos ou espirituais. Tal fenômeno, suas crenças e ritos, é o que estudamos nesse artigo. Proponente: RAFAEL JACOB Título: Santa Dica e a República dos Anjos: um araíso no Cerrado Resumo: O artigo sintetiza aspectos sociais do sertanejo goiano e as melhorias executadas a partir do momento em que estes passam a seguir Santa Dica. Levando em conta a questão do coronelismo e do controle exercido pela Igreja durante o período da República Velha, vemos que o Reduto dos Anjos torna-se a única saída para uma vida social mais digna. Isso faz com que o sertanejo recorra ao mito do salvador e do paraíso terrestre. Proponente: LINDSAY BORGES Título: Modelo e mártir Resumo: estudar as homenagens ao primeiro arcebispo de Goiânia (1957-1985), durante sua vida e também após sua morte – registradas nos veículos de comunicação da arquidiocese – percebe-se a construção de um modelo calcado nas virtudes cardeais: sabedoria, temperança, fortaleza e justiça. O ápice dessa construção ocorre durante o jubileu de ouro sacerdotal do prelado, com escritos que se aproximam de uma hagiografia. Após sua morte, o arcebispo é aclamado como mártir, por ter dedicado sua vida à causa religiosa, tendo se 378 tornado, segundo sugerido por Cristo. depoimentos, uma testemunha muito próxima do modelo Proponente: FILIPE PINTO MONTEIRO Título: A Santíssima Trindade nos sertões: Severino Tavares, enviado de Padre Cícero e pessoa de José Lourenzo Resumo: A proposta é apresentar a trajetória de Severino Tavares, homem religioso que conviveu com o beato José Lourenço na comunidade de Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (1926-1936), Ceará. Severino tentou angariar fiéis pelos sertões nordestinos, especialmente na região do baixo e médio São Francisco, por onde circulou entre os anos de 1932 e 1935 e fundou uma comunidade messiânico-milenarista no vilarejo de Pau de Colher (Bahia, 1934-1938). Em suas andanças se dizia o ―Espírito Santo‖, emissário de Padre Cícero e ―secretário‖ de Zé Lourenço. Trabalhamos na perspectiva de que Severino fomentou uma re-significação de conteúdos escatológicos populares cujas raízes se encontram em Juazeiro do Norte (1889-1934) e Caldeirão. Proponentes: DANIELLE VENTURA BANDEIRA DE LIMA, THIAGO GOMES MEDEIROS Título: A construção de santidade no Norte do Brasil: o caso do padre Malagrida e do padre Ibiapina Resumo: O presente trabalha visa analisar a construção de santidade de dois padres que atuaram em épocas distintas no Norte do Brasil: padre Gabriel Malagrida e padre Ibiapina. Para compreender a admiração que ambos causam nos seus biógrafos ao analisarem suas trajetórias de vida, faz-se necessário observar como eles atuaram em áreas inóspitas trazendo mensagens de esperança para a população carente. Malagrida atuou no século XVIII, nas províncias do Norte, evangelizando, reformando igrejas, fundando seminários, asilos e casas de amparo a mulheres excluídas da sociedade patriarcal. Ibiapina, por sua vez, atuou na mesma região, no século XIX, construindo açudes, hospitais, igrejas, cemitérios e casas de caridade. Proponente: SONIR JOSÉ BOASKEVIS Título: O Santo, o Filósofo e o Abade: a metafísica da luz de Pseudo-Dionísio, Areopagita, segundo a visão de Hugo de São Vitor e sua influência na gênese da arquitetura gótica na Abadia de Saint Denis no século XII e suas implicações até a Renascença Resumo: Apresenta um dos momentos mais claros da Idade Média, à luz da tradição teológica de Boécio, Santo Agostinho e Pedro Abelardo, bem como da tradição filosófica de Platão, Aristóteles e Epicuro. Analisa a idéia da luz como ―perfeita ponte‖ entre o mundo físico e o metafísico, idéia expressa pelo termo ―Metafísica da Luz‖, mas já presente em escritos atribuídos a São Dionísio, Areopagita, em traduções latinas de João Escoto Erígena e interpretações de Hugo e São Vítor. Sua aplicação mais efetiva se deu entre os anos de 1137 e 1144, quando o Abade Suger reformou o coro e o nártex da Abadia de Saint Denis, na Îlle de France, inaugurando o que, mais tarde, ficou conhecido como o estilo gótico, a aliança perfeita entre as reflexões metafísicas da doutrina cristã com a materialidade de uma abadia cujas paredes teriam sido abençoadas pelo próprio Cristo. A discussão diz respeito à contribuição do amálgama existente neste período entre a Teologia, a Filosofia e a Arquitetura para a catequização do povo. Proponente: CRISTIAN SANTOS Título: Mística e Ciência: a patologização da religiosidade em O Homem, de Aluísio Azevedo Resumo: Analisa a representação dos elementos físicos e psíquicos da personagem Magdá, em O Homem, de Aluísio Azevedo, tendo por referencial teórico a concepção de corpo moderno proposta por Foucault. Observa-se que a construção da corporeidade na narrativa do romance obedece à lógica cientificista de então, profundamente comprometida em taxonomizar a physis e, por consequência, em reduzir a experiência mística feminina a mero evento de cunho psíquico. Concluise que a leitura médica dos oitocentos, concebe a mística enquanto questão problemática, tanto na perspectiva física, vinculada à configuração dos corpos, quanto no ordenamento social, à medida que a adoção de práticas religiosas poderiam implicar num desfavorecimento do projeto de feminilidade proposto pelo positivismo. Proponente: JOSÉ CARLOS DE LIMA COSTA Título: Características do Profetismo Israelita Resumo: O ―profetismo‖ se refere a uma instituição plenamente reconhecida no Antigo Israel. Em seu estágio mais desenvolvido, foi mais que um ministério, entre outros, e pode ser visto, como um forte movimento religioso no seio da nação. Provavelmente, o profetismo foi a instituição que mais contribuições ofereceu a nação e que também mais a influenciou. O objetivo deste trabalho é fazer 379 um inventário das principais características do profetismo, visando compreender as influências que exerceu no seio da religião israelita. Dentre as características mais distintivas do profetismo, seis se destacam: uma nova experiência da realidade divina; a compreensão da unidade da existência; o absolutismo ético; uma perspectiva negativa da realidade; a individualização da relação divinohumana; a crítica à institucionalização da religião; e a crítica às instituições nacionais. Proponente: LEONARDO AGOSTINI Título: O Dia do Senhor em Sf 1,14-18 Resumo: O yôm YHWH, em Sofonias é um evento litúrgico, bélico e teofânico, contra o qual, no presente ou no futuro da ação, nada nem ninguém é capaz de oferecer alguma resistência, porque nele está a força e a potência de YHWH. Quando YHWH age como juiz, a sua obra suscita o temor e o tremor das nações, porque não recai somente sobre o seu povo, mas sobre todos os reinos da terra, que são obrigados a reconhecer a sua soberania que domina o tempo com um evento incontrolável pelo ser humano. O yôm YHWH sofoniano é um bom exemplo profético de apologia à soberania divina do Eterno Criador e Provedor atento ao seu projeto inicial, mas, igualmente, evidencia a lógica da sua ação sancionadora. YHWH, quando exerce a sua justiça, mostra-se justo juiz, a fim de reprimir o mal e detê-lo, cortando-o pela raiz para obter, como fim último, a correção do culpado, pois Ele não tem prazer e nem quer a morte do pecador (cf. Ez 18,23.32; 33,11). Proponente: HÉBERT VIEIRA BARROS Título: A sabedoria profética dos jovens na literatura hebraica Resumo: A Escola Sapiencial e seus agentes mudaram os acontecimentos históricos do povo de Israel. Isto pode ser constatado no discurso profético e também dos vários sujeitos da sociedade hebraica. Mulheres, homens, jovens e crianças foram agentes também desta evolução da cultura. Apesar de não termos, nos escritos hebraicos, o conceito de jovens como temos hoje, isto não justifica negar sua participação na profecia como discurso também sapiencial. Na história bíblica, acompanhando o povo hebreu desde os primórdios de sua origem, temos um conceito e atuação dos (as) jovens bem diferentes do tempo da chamada de Monarquia. No tempo da Monarquia, os jovens e a própria sabedoria sofreram um forte processo de ocultamento. Tornar visível os que a história oficial ocultou é reviver a origem da profecia numa perspectiva sapiencial. Proponente: ROSEMARY FRANCISCA NEVES SILVA Título: Francisca Schervier: construtora da justiça e da solidariedade Resumo: Profetas e profetisas são pessoas que viveram uma grande experiência de Deus e não se apoderam desta experiência para o bem próprio, mas fizeram dela uma doação de sua vida à vontade de Deus. Os profetas e profetisas, ao anunciarem a profecia de Deus, faziam-no a partir da experiência que tinham de Deus no convívio com o sofrimento e as injustiças vividas pelo povo. Profetas e profetisas são também vocacionados e chamados por Deus para realizar determinada missão. É a partir de tais afirmações e com o apoio dos estudiosos e estudiosas da literatura sagrada e clássicos da sociologia da religião que trabalharemos com a figura de Francisca Schervier, uma mulher que fez a experiência do transcendente e, sendo do gênero feminino e tendo vivido no século XIX, foi uma profetisa, cuja experiência a levou a ser um meio de esperança, anunciando a justiça, a solidariedade e ao mesmo tempo sendo portadora da mística. GT 5:TRANSE E RELIGIOSIDADE PÓS-MODERNA Coordenação: Drando. Welthon Rodrigues Cunha Resumo: A presente mesa tem por objetivo promover e incentivar a troca de experiências e estudos sobre o transe/possessão nas religiões, especialmente, naquelas de caráter mediúnico como a Umbanda, Candomblé e Kardecismo. O transe se configura como um dos fenômenos principais e, às vezes central, nas diferentes formas de religiosidade, possibilitando também a sua interpretação sob diferentes saberes científicos como a psicanálise, antropologia, sociologia, e a teologia. Palavras-chave: Transe, possessão, mediunidade e religiões afro-brasileiras. Proponente: WELTHON RODRIGUES CUNHA Título: Êxtase, transe e possessão: delimitação de fenômenos Resumo: O êxtase, o transe e a possessão são fenômenos presentes em diversas formas de religiosidade em todo o mundo. Porém, no campo das ciências da religião, existe uma discussão 380 sobre o fato se estamos tratando de um fenômeno único com diversas variantes ou se trata de fenômenos diversos. Em nosso trabalho pretendemos analisar o problema, demonstrando posicionamentos teóricos contrários e propondo uma nova abordagem sobre a questão. Proponente: SULIVAN CHARLES BARROS Título: Caminhos para um Brasil Imaginário: Transe e Possessão na Umbanda Resumo: A umbanda, enquanto manifestação religiosa, expressa toda a dinâmica cultural brasileira, harmonizando a contribuição das culturas indígenas, africanas e portuguesa. Ela explica por meio da relação existente entre poder, marginalidade social e possessão em seu universo simbólico, a formação de um Brasil imaginário, numa espécie de continuidade com o plano social do Brasil real. Caracterizados como possuidores de atitudes, hábitos e modalidades de comportamento estabelecidas a partir do pertencimento a categorias sociais marginalizadas, as entidades ―brasileiras‖ da umbanda, enquanto representações coletivas, constituem fatores sociais projetados e vividos pelos seus médiuns e fiéis religiosos. Na unidade de construção destas figuras míticas e no entendimento de suas narrativas se superpõem as diversidades indicadoras de sentimentos, aspirações e atitudes individuais de suas experiências sociais, revelando o sentimento comum e individualizado que os indivíduos possuem da sociedade. No plano ideológico, estas ―entidades‖ são codificadas, conceituadas e hierarquizadas dentro de um universo cósmico como projeção do universo social. A própria hierarquia destes espíritos corresponde à estratificação hierárquica das classes sociais. A noção de evolução espiritual passa a ser adequada ao conceito de evolução social preconizada pela sociedade mais ampla. Na estrutura do imaginário, estes deuses ocupam posições hierárquicas baseadas em relações de mando e de subordinação. Assim, as interações entre as diferentes ―entidades‖ espirituais configuram a estrutura cósmica onde a sua posição é ocupada num gradiente que se estende do excessivo estereótipo da ―direita‖ ao excessivo potencial de inversãotransgressão da ―esquerda‖. Aí está composto todo o campo e temática de trabalho umbandista. Calcado em cima destes espíritos abnegados e de suas narrativas de dor e sofrimento, é possível mergulhar tão profundamente na realidade brasileira, de buscar aí sua fonte de inspiração, transformando em símbolos emblemáticos figuras do cotidiano popular e buscando a sua maneira o seu significado mais profundo. Proponente: PAULO PETRONILIO CORREIA Título: Transe e Transfiguração estética no Candomblé Resumo: O objetivo dessa performance é fazer uma abordagem estética, portanto política do transe no Terreiro de Candomblé. É bem verdade que as chamadas religiões de matrizes africanas carregam toda uma complexidade estética que contorna a comunidade religiosa e faz do Terreiro uma verdadeira obra de arte. Não se pode esquecer que tal beleza ―odara‖ se revela no transe uma vez que é no corpo do iniciado que a estética passa a ter visibilidade no espaço sagrado. Proponentes: DANIELA PINHEIRO SOUZA, ELISA SOFIA ANGELIM DA SILVA DOS SANTOS, KELVINN MODESTO CARVALHO BARBOSA Título: O Retrato do Êxtase: processos de devoção e crença religiosa Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar a imagem do individuo em momentos de transe/êxtase no espiritismo, na umbanda e no protestantismo. Para isso utilizaremos fotografias como objetos de estudo que procuram exteriorizar os sentimentos, emoções e o conseqüente comportamento resultante do contato do individuo com a(s) divindade(s). Objetivamos assim, explicar qual a ―essência desta energia psico-corporal‖ que leva os indivíduos à um comportamento diferenciado através das expressões exteriores, registrados por imagens que evidenciam o que o individuo sente no momento do êxtase. Proponente: FREDERICO MAEL S. M. BUENO Título: "Memórias de Pai Joaquim" Resumo: Memórias de Pai Joaquim‖ O candomblé de Goiânia, contado a partir do arquivo do Babalorixá Joaquim de Xangô, juntamente com seus familiares que tocaram seus tambores no setor serrinha na década de 70, no setor Fama na década de 80, 90 e início dos anos 2000. Atualmente seus descendentes de santo e sangue continuam a tocar o candomblé na cidade de Senador Canedo-Go, onde o ancestral cultuado é Pai Joaquim, seu Orixá de cabeça Xangô e Martinho Pescador, entidade da linha de marinheiro cultuado pelos cultos de Umbanda e Candomblés de Angola de todo o pais. Dados: Vídeo Documental de 15 minutos, colorido NTSC, em DVD, DV-SP, DVCAM e outros formatos a combinar. 381 Proponente: MARIA BETÂNIA BARBOSA ALBUQUERQUE Título: Ecologia de saberes na religião do Santo Daime Resumo: Este estudo volta-se para os saberes da ayahuasca, beberagem de origem indígena feita da combinação de um cipó e folhas de um arbusto da Amazônia, utilizada em diferentes contextos culturais como, por exemplo, na religião do Santo Daime. O texto é parte da pesquisa de pósdoutoramento realizada no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Pt), caracterizando-se, metodologicamente, como bibliográfica, documental e de campo. Têm como fontes a bibliografia sobre as religiões ayauasqueiras, os cadernos de hinos do Santo Daime e a realização de entrevistas com daimistas de diferentes países: do Brasil, Portugal, Espanha, Holanda, Bélgica e Israel. Teoricamente, inspira-se nos estudos de Carlos R. Brandão acerca da educação como cultura e nos escritos sociológicos de Boaventura de Sousa Santos, restringindo este texto à noção de ―ecologia de saberes‖ deste autor. Proponente: CAMILA DE MELO SANTOS Título: Os filhos de Xangô: memória e tradição do candomblé tocado por Joaquim de Xangô Resumo: Cinema Invisível aborda a imagética do culto de Xangô com base na ritualização do sincretismo religioso brasileiro que incorpora, em seu conteúdo histórico, a resistência da cultura africana no Brasil, submersa ao modelo escravista como forma proibida de afirmação de sua identidade cultural. Discutiremos as relações do cinema documental como método e técnica de observação na pesquisa de campo e sua função heurística na representação da história. A partir do método etnográfico, construímos a imagem do Babalorixá Joaquim de Xangô e seu imaginário na expressão do cinema documental, como forma de produção do conhecimento Proponente: BRUNO RODRIGO DUTRA Título: Rito e Mito: perspectiva teórica da sociologia da religião: uma análise a partir de Pierre Bourdieu. Resumo: O presente estudo visa analisar os principais apontamentos teóricos sobre mito e ritual, a partir da sociologia da religião. Partindo dos princípios sociológicos de Pierre Bourdieu, como principal norteador teórico, buscarei posicionamentos de outros estudiosos dessa temática, como Bronislaw Malinowski e Vitor Turner. Assim, serão apresentados seus respectivos posicionamentos com comentários e análises comparativas. Este trabalho apresentará, além dos apontamentos teóricos, elementos rituais e míticos presentes em algumas religiões afro-brasileiras, especialmente, na Umbanda. GT 6: RELIGIÃO E MODERNIDADE Coordenação: Dra. Sandra Duarte de Souza Resumo: O estudo da recomposição das relações entre religião e modernidade tem sido o foco de uma parcela significativa da produção acadêmica atual. O fenômeno da secularização tem redimensionado o lugar da religião na contemporaneidade, que vai perdendo seu lugar de matriz significante das relações sociais, para assumir um status menos nobre, dividindo a produção de significados com outras instâncias como a mídia e a ciência. Mais ainda: o leque cada vez mais amplo de alternativas religiosas abre uma concorrência fragmentária, que inviabiliza a constituição de monopólios simbólico-religiosos, enfraquecendo tradições e ameaçando sua sobrevivência. O presente GT está aberto à submissão de propostas de comunicações que dialoguem com o binômio Religião e Modernidade em suas mais diversas formas. Proponente: EMERSON ROBERTO DA COSTA Título: O Trânsito Religioso e a recomposição das formas religiosas na Igreja Evangélica Assembléia de Deus, em São Bernardo do Campo Resumo: O campo religioso contemporâneo, diante das mais variadas ofertas, tem apresentado intensa mobilidade religiosa. Os sujeitos religiosos, a partir de suas próprias demandas e combinações simbólicas, transitam nas mais diversas expressões religiosas apropriando-se de elementos que atendam suas necessidades provocando uma movimentação incessante estabelecendo uma nova configuração dos grupos religiosos, num processo de ressignificação contínua. A partir dos postulados das ciências da religião, essa pesquisa propõe-se a analisar esse evento tendo como universo de análise a Igreja Evangélica Assembléia de Deus, em São Bernardo 382 do Campo, objetivando demonstrar, mediante a análise do conjunto de dados obtidos em instrumento de pesquisa, uma conexão entre os elementos indicadores da pesquisa e o fenômeno caracterizado para identificar quais são as motivações de gênero para o trânsito de homens e mulheres que circulam das diversas alternativas para esse grupo religioso e, a partir desse referencial, compreender os contornos que essa relação estabelece indicando os novos padrões religiosos desenvolvidos a partir desse fluxo. Proponente: IVAN GADELHA ESPIRITO SANTO Título: Pentecostalismo e a modernidade: O sistema de identidade Religiosa da Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA) em confronto com aspectos da modernidade. Resumo: As Instituições religiosas diante da modernidade adquiriram múltiplas características em suas práticas religiosas. No pentecostalismo não é diferente, as características de cada uma das igrejas inserida neste contexto vão se transformando de acordo com o espaço e tempo e também propositalmente vão absorvendo novas características de acordo com a necessidade de agregar adeptos ou de não repelir do campo religioso. Entre as varias vertentes do pentecostalismo destaco a Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA), uma instituição que apresenta características que divergem deste contexto e atuam de forma rígida na tentativa de fundamentar suas tradições a partir da sua interpretação sobre as ―escrituras sagradas‖ objetivando ignorar as transformações que são características da modernidade. Dessa forma, a IPDA determina um modelo de comportamento restrito de seus adeptos gerando uma identidade religiosa que confronta e se protege das transformações ocasionadas pela modernidade. Proponente: JOSE ROMULO DE MAGALHAES FILHO Título: Uma leitura do pentecostalismo brasileiro pela ótica de Max Weber e Georg Simmel Resumo: A religião aparece como categoria que procura responder as condições da existência humana e que se manifesta através de expressões humanas coletivas, o que a coloca no campo das relações sociais. O pentecostalismo é uma das expressões de religiosidade que mais cresce no campo religioso brasileiro e tem alcançado os segmentos médios da sociedade brasileira. A partir do conceito de religião em Weber e de indivíduo e massa em Simmel, este texto se propõe a refletir sobre esta expressão de religiosidade crescente na sociedade brasileira. Proponente: REINALDO APARECIDO CASTRO Título: Olha pra mim Senhor: O individualismo cantado na Igreja Pentecostal Resumo: Essa pesquisa tem como objetivo evidenciar que a construção do individualismo se deu dentro de uma ótica religiosa, além de procurar entender como esse fenômeno tem influenciado o jeito de ser religioso na modernidade. Para tal delimitaremos o universo pentecostal para pesquisa, utilizando canções de grande veiculação nesse meio como objeto de pesquisa e instrumento de afirmação da tese. Proponente: LUCAS FERREIRA MODESTO DA SILVA Título: Expansão dos cultos religiosos no vetor de crescimento da cidade de Viçosa/ MG. Resumo: O objetivo desta pesquisa foi analisar a expansão dos cultos religiosos no vetor desejado de crescimento da cidade de Viçosa, Minas Gerais, relacionando a presença dos cultos a aspectos socioeconômicos e territoriais, para isso foi realizado o levantamento das igrejas, aplicação de questionário semiestruturado, consulta a dados da prefeitura, ao acervo das igrejas e feito o geoprocessamento de imagens. Com os dados coletados foi possível espacializar a área de estudo e identificar os padrões comportamentais de cada culto em seu território, assim como estabelecer padrões socioeconômicos dos fieis. Conclui-se que ocorreu a eclosão de vários cultos religiosos evangélicos e que o número de fieis está igualando ao da religião católica. Proponente: ADRIANA RODRIGUES CORRÊA e GÉZIKA DOS ANJOS FERREIRA Título: Corte: ―Amor e Sexo no Cristianismo Contemporâneo‖ Resumo: Diferente da maioria dos modelos de relacionamento afetivo-amorosos atuais, tem-se a Corte,que objetiva um relacionamento baseado no diálogo, na amizade,no compromisso, no tratamento com lisonja, onde sempre a sexo é para ser desfrutado após o casamento. Tal posicionamento dito como radical tem ganhado espaço dentro de igrejas pentecostais e neopentecostais,pois visa resguardar os indivíduos em vários âmbitos: o físico, o moral,o emocional, o psicológico e, logicamente, o espiritual. 383 Proponente: ANALUPE BHEATRIZ CARNEIRO Título: Modernidade e suas implicações na relação de transcendência no pensamento do Pe. Henrique C. de Lima Vaz, SJ. Resumo: Existe um componente ateu na modernidade? Este estudo visa refletir, num âmbito filosófico, a substituição da transcendência por um imanentismo que encerra o sujeito em si mesmo. Partimos das profundas análise realizadas por Pe. Vaz sobre modernidade filosófica e religião e o papel fundamental da Razão Moderna e da ciência moderna. Proponente: DANIEL SANTOS SOUZA Título: Pelos caminhos da práxis e do diálogo: ensaios de uma cristologia pluralista da libertação com inspirações em Jacques Dupuis e Jon Sobrino Resumo: Este trabalho é o resultado de uma pesquisa financiada pela FAPESP (2009-2010) que buscou estabelecer os alicerces primários para uma ―Cristologia pluralista da libertação‖, tendo como fontes a teologia do pluralismo religioso formulada pelo teólogo belga Jacques Dupuis (1923-2004) e a cristologia elaborada pelo teólogo jesuíta Jon Sobrino (1938-). Este estudo imprimiu esforços para fundamentar uma cristologia pluralista da libertação centrada no diálogo inter-religioso e na práxis da libertação humana. Proponente: MARCO AURÉLIO CORRÊA MARTINS Título: A Riqueza das Nações e as Coisas Novas: Moral e economia em Smith e em Leão XIII Resumo: Usar o paradigma indiciário significa a possibilidade de ir além do meramente descrito, auscultando as fontes de modo a ampliar-lhe a compreensão. Partindo da possibilidade de entender a Encíclica Rerum Novarum sob o ponto de vista da Economia Moral, chegou-se a negá-la, afirmando, sim, uma Economia Política na Carta. Na descrição das atuais versões da história da economia, Adam Smith não é mais descrito como defensor do ―laisser faire‖ e da atuação nula do Estado em economia, mas um pensador moral. As idéias descritas na Carta Encíclica se aproximam muito dessa visão atual de uma moral em torno da Economia Política. Inicialmente, alguns conceitos de Smith fazem paralelo na Encíclica. Deste modo, torna-se necessário conhecer as influências sobre Leão XIII. Faltam à historiografia em língua portuguesa no entorno da Encíclica, estudos sobre sua origem, ou a historicidade de sua constituição. Debruçando-se sobre alguma bibliografia disponível encontramos algumas descrições na literatura estrangeira. Entre liberalismo e marxismo, o Papa vai ouvir as reflexões e experiências empreendidas pela própria Igreja na Europa, África e Estados Unidos, buscando indicar uma via católica em reação ao crescimento do Socialismo entre os operários. Contudo, as principais influências sobre o texto vêm de seus dois secretários particulares a partir outro texto trabalhado pelo Jesuíta Mateo Leberatore em questões de economia e pelo Cardeal Zigliara em questões filosófico-sociológicas. Proponente: EDSON DONIZETE TONETI Título: O Deus do universo e o universo de Deus Resumo: Em afirmação enfática, o atual papa disse que ―numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações, para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras.‖ Adicionado a esse processo de globalização, o fenômeno da secularização revela uma certa ―animosidade justa‖ na adequação da cidade humana à divina. O trabalho propõe-se discutir o como recuperar o status de força libertadora da religião no feixe de relações sociais estabelecidos entre pessoas, grupos e instituições, o que pode demandar o abandonar uma ―evidência suspeita‖ de outrora e trabalhar humildemente no sentido de que seus quadros não se tornem ―nova vassalagem‖, predisposta à marginalização, mas assumam um protagonismo que lhes é próprio, capaz de mitigar os efeitos nefastos de outros produtores de significados hodiernos. Proponente: PEDRO LUCAS DULCI PEREIRA Título: Religião, auto-conhecimento e vertigem Resumo: Dizer que estamos vivendo um período de crise já não afeta mais ninguém. Multiplicam-se nas prateleiras os ensaios, livros e revistas que identificam e mostram as características desse tempo novo que estamos entrando. Há os que defendem ser realmente um tempo novo, uma pósmodernidade outros pensam ser apenas o período antigo só que com suas marcas elevadas a níveis nunca visto antes, uma espécie de hipermodernidade. Moderno, pós-moderno, hipermoderno. Não nos interessa aqui. Esses são apenas conceitos, tipos teóricos, tentativas de elucidação do presente. 384 O que todos os pesadores, que se dedicaram a compreender a sociedade que vivemos, concordam é que vivemos tempos marcados pelo esforço de se buscar em todos os níveis o progresso que com certeza trará uma vida melhor para os homens. Um momento marcado pelo jogo de produção e consumo onde quem não se encaixa, ou como produtor ou como consumidor, é obrigado a se tornar refugo da sociedade e viver às custas da intervenção estatal por meio de políticas de ação afirmativa, auxílios, bolsas e todo tipo de dádiva do governo. Todo esse cenário que descrevemos, sem nenhuma pretensão de ser exaustivo, da modernidade revela todo o seu lado infantil. Mas não é só a infantilidade de um período histórico-cultural, é da condição humana. O que torna-se digno de observação nesse momento que estamos vivenciando é que nele abre-se a oportunidade de mostrarmos como a religião pode se mostrar como um campo de cognição privilegiado, na medida em que esse relacionamento com Deus nos leva a uma instância ativa fundamental no procedimento dialógico da investigação em si que se revela muitas vezes como um poderoso olho filosófico que o ―pensamento da Transcendência‖ nos oferece na forma de uma crítica contundente ao humanismo narcisista que constitui nossa antropologia contemporânea de raiz renascentista, iluminista e romântica. Sendo assim, a presente comunicação pretende mostrar que existe uma grande tradição de pensadores que propõem o relacionamento com Deus como um remédio para a vida insignificante do homem moderno. Proponente: ROMES DE SOUSA MENDES Título: A ultima ceia: plurisignificado e multinarratividade Resumo: A última ceia que estamos acostumados a ver ornando vitrais e imputando uma sacralidade recorrente na cristandade tem seus referenciais em três momentos distintos da história da humanidade aos quais comumente não percebemos no dia a dia. filha de três tempos históricos a ultima ceia alimenta o ato performático da fé sobre uma ação de unificaçao do dogma da comunhão que torna coesa a sacralidade da obra por parte de toda uma cristandade. Proponente: ROBSON RODRIGUES GOMES FILHO Título: Teoria, religião e modernidade: um balanço teórico dos excessos interpretativos nos estudos de religião Resumo: Visto que há mais de um século o conceito de religião/sagrado deixou de ser um domínio exclusivo da Teologia ou das Ciências da Religião, sendo incorporado por outras áreas do conhecimento como História, Sociologia, Antropologia e Geografia, percebemos que seu entendimento na produção científica oscilou em diversos momentos entre um excesso de racionalização/funcionalização e uma compreensão demasiadamente não-racional do conceito. A versatilidade, os excessos e equilíbrios do conceito de religião/sagrado compõem o objeto de reflexão deste trabalho, que realiza um balanço historiográfico destas compreensões visando uma discussão que abranja tendências teóricas atuais, relacionando-as às principais tradições teóricas que foram vigentes ao longo do século XX. Proponente: LUANA HORDONES CHAVES Título: Uma análise da relação entre religião e modernidade sob a perspectiva da globalização. Resumo: Pode-se entender globalização como um processo de mundialização da cultura, o qual vem a transformar as noções de internacional, nacional e local. Globalização é, pois, um processo social que atravessa de maneira diferenciada e desigual os mais diversos lugares: neste contexto, tempo e espaço são comprimidos e suas noções são então redefinidas ao se tratar de sociedade global. A fim de analisarmos o campo religioso contemporâneo, propomos pensar a globalização como uma perspectiva a partir da qual devemos interpretar as atuais relações sociais e religiosas. Nesse sentido, tomaremos a globalização como um instrumento metodológico para pensar as tendências da religião na modernidade, tendo em vista a permeabilidade das fronteiras inter-religiosas das diversas experiências culturais. Sendo assim, propomo-nos neste trabalho a discutir as transformações que vem ocorrendo no campo religioso, tomando alguns pontos dessa dinâmica. Proponente: RAQUEL LIMA CATALANI Título: Intolerância religiosa e as relações de poder Resumo: Diante das múltiplas possibilidades de abordagem do tema da intolerância religiosa, esta pesquisa busca entender particularmente como elas estão intimamente ligadas ao desejo de poder e dominação do ser humano. Para isso, a partir do contexto brasileiro, tenta-se recuperar algumas das diversas memórias de intolerância e desrespeito que marcaram nossa História, buscando entender como o cristianismo foi e tem sido utilizado para legitimar atitudes autoritárias e violentas, ou seja, a 385 intolerância com as diferenças que reflete na verdade o desejo de dominação e as disputas pelo poder. Proponente: PAULO ROGÉRIO RODRIGUES PASSOS Título: Religiosidade e crise de identidade da classe média brasileira Resumo: As possibilidades hoje são tão alvissareiras, quanto complexas. Essa premissa leva-nos a crer que tudo é possível, desde que nos preparemos para adentrar nessa nova realidade. Os menos favorecidos economicamente e culturalmente rogam a Deus, recorrem à magia e aos espíritos pela libertação da complexidade, do desconhecido, do incognoscível. Os mais afortunados e esclarecidos recorrem a Deus, a magia e aos espíritos pela libertação do medo, da auto-afirmação, do empreendedorismo, do empoderamento. Proponente: JOSE AMAURY ALVES CRUZ Título: Entre tapas e beijos: um estudo sobre tolerância religiosa Resumo: O sincretismo religioso é definido, como fusão de duas ou mais crenças religiosas. Falando-se de Brasil especificamente Salvador, surgiu um refugio à ―tolerância religiosa‖, mesmo de forma dissimulada chamada de hibridismo cultural (religioso).Tal análise rejeita qualquer interpretação que considere padrões da religiosidade do Brasil. Talvez baseada até na ignorância teórica religiosa, essas expressões de tolerância são expressões da praticidade de resistência e sobrevivência. Sem sombra de duvida Salvador, centro natural onde esses valores são cristalizados. Salvador é símbolo da fusão de elementos que fundiram as bases, mas especificas de um sincretismo tolerante único dentro deste surto religioso, a exemplo a mistura hibrida entre candomblé e catolicismo, na lavagem da igreja do Bom fim, concebida pela égide da fé. As reflexões sobre o tema se deram a partir do filme ―Ò PAI Ò‖ e dos seriados da Rede Globo, baseado no filme homônimo de Monique Gardenberg de gênero comédia 2007 Globo filme, episódios, escritos por Guel Arraes e Jorge Furtado. Na visão do seriado Ò PAI Ò o sujeito cotidianamente adquire no ambiente que vive mesmo em meio a conflitos pessoais uma tolerância religiosa construída entre tapas e beijos, esta constatação foi um convite para uma reflexão, sobre o processo que leva a essas transformações. O que chama a atenção para essa relação de conflito existente e o poder das representações nos sistemas audiovisuais, é o quanto essas inquietações permeiam e formam tanto o imaginário social dos sujeitos como seus códigos de sociabilidade. Discutir sobre os desafios e as contribuições que o fenômeno religioso e suas interfaces culturais aportam para o campo das Ciências da Religião, debater sobre o fenômeno e suas transformações culturais no âmbito da globalização, é recursos para que possamos compreender o alcance, aos processos de mudança e o surgimento de novas propostas no campo sócio-cultural e religioso. Essas reflexões fez surgir o desejo de escrever sobre um dos temas mais recorrentes nas produções acadêmicas ligada ao desenvolvimento religioso do Brasil. Refletir sobre o lúdico meio de sobrevivência e sua relação com a religião é pensar nas transformações em curso na esfera sócio-econômico cultural e suas repercussões nas tolerâncias e intolerâncias e nas mais manifestações das diversas religiosidades. A proposta desta comunicação é parte integrante, de um estudo socio-pedagógico iniciante, na construção de uma sociabilidade religiosa educacional, a partir da ética pertinente ao mundo globalizado. Objetiva-se desenvolver um diálogo de fundamentação filosófica que traga aproximações com outras áreas do saber, sobretudo com as ciências da religião, as ciências sociais e a antropologia, no sentido de acolher sociabilidade religiosa educacional. Para isso usaremos como metodologia, apresentação expositiva, de concepções variadas sobre o tema, como também a utilização de recursos audiovisuais como referencial teórico. Proponente: RENATA SILVA DA COSTA Título: Estado Laico da teoria à realidade. Resumo: Este trabalho procura analisar a relação entre o Estado Laico e cristianismo brasileiros, ressaltando como ocorre a interação entre Estado e instituições religiosas cristãs e não-cristãs, pondo-as em comparação. Além disso, procura-se observar como ocorrem os incentivos estatais as igrejas cristãs e práticas religiosas não-cristãs. Proponente: WILLAME FONSECA DOS SANTOS Título: A busca espiritual na modernidade Resumo: Esta pesquisa tem como foco tratar das maneiras de como as pessos procuram por conforto e/ou evolução espiritual no contexto contemporâneo, sem a interferência de igrejas ou outras instituições religiosas para tal, sabendo como essa nova forma de "busca religiosa" se configura em nossa sociedade. E os possíveis fatores que colabora para esta mudança. 386 Proponente: LUZIA IRENY E SILVA Título: Cadê a Bíblia que coloquei aqui? Resumo: A construção de Goiânia concretiza o discurso de progresso nacional e bem como da modernidade, movimento iniciado na Europa, o qual promoveu mudanças socioculturais em várias partes do mundo. No plano regional o sonho deste empreendimento pela dissidência política goiana se realiza, sustentado na desqualificação da Cidade de Goiás, aquela torna referência para interiorização do país, abrindo fronteiras, legitimadas pelo Estado Novo. Porém de representação da modernidade Goiânia passa a deparar com os sinais do capitalismo periférico como crescimento desordenado, secularização tendo que conviver com padrões tradicionais negados, concentração de renda e baixos salários. Surge atrelado ao projeto arquitetônico de cidade Jardim, o qual para o imaginário coletivo ora tem nuances de cunho religioso ora geopolítico, os sonhos de melhoria de vida dos que chegam a Goiânia vai ficando às margens do Córrego Botafogo, dessas invasões vão surgir o Setor Universitário, Vila Nova, Nova Vila, entre outros regiões que acomodam a Praça da Bíblia, a partir desse monumento pretende-se refletir que lugar o livro sagrado representado, na praça, ocupa no imaginário coletivo goianiense. Proponente: LÍDIA MARIA DE LIMA Título: De santo...por enquanto! - O trânsito religioso de mulheres entre o protestantismo e cultos afro brasileiros Resumo: Esta pesquisa analisa o fenômeno do trânsito religioso, entre as mulheres seguidoras de religiões afro brasileira, que outrora transitaram (ou participaram ativamente) em cultos protestantes (e que hoje participam e/ou lideram cultos afros), identificando suas motivações para este trânsito. Além da pesquisa bibliográfica fora realizado um estudo de campo na Tenda de Umbanda Mané Baiano e Zé Pilintra, na cidade de Diadema, em São Paulo. Proponente: NILZA DE MENEZES LINO LAGOS Título: As transformações de gênero na pertença dos orixás Resumo: O presente texto vem se desenvolvendo por meio de observações nos templos de religiosidade afro-brasileira na cidade de Porto Velho, Rondônia, e, tem como objeto de análise as relações de gênero na pertença dos orixás. O trabalho originou da observação do maior número de adeptos e adeptas pertencentes a orixá Oxum e Yansã, comparando-se com Yemanjá e Nanã, Ewa e Obá, também orixás femininos. A partir de uma análise dos arquétipos desses orixás, fazemos algumas pontuações sobre transformações nas representações de gênero na religiosidade afrobrasileira. Proponente: SIMONI CARDOSO BARBOSA Título: Nova era, um breve histórico na religiosidade sertaneja, fenômeno, cultura, espiritualidade e consumo no sertão norte mineiro. Resumo: O presente trabalho apresentará a Nova Era no sertão norte mineiro, em Montes Claros Minas Gerais, onde a religiosidade sertaneja se apresenta num contexto pós-moderno de tradicionalismo arraigado. Sugere novos paradigmas religiosos, de forma sucinta nota-se, no entanto, na busca do sagrado, ora misturadas a práticas esotéricas, místicas, através de um enfoque holístico na tentativa de explorar o espaço geográfico, na busca de uma magia outrora perdida, na sociedade globalizada. Embora a realidade sertaneja tenha sofrido transformações, pressupõe caráter individualista, imediatista, sob a ótica de novos conceitos e práticas religiosas. Cabe ressaltar que, neste trabalho procuro apresentar a Nova Era em Montes Claros, e conceituar não de forma cabal, mas de antemão a compreendê-la, a partir de um breve histórico, no sertão norte mineiro. ¹Mestranda em Ciências da Religião, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –PUC/SP, Graduada em Ciências da Religião pela Universidade Estadual de Montes Claros/ UNIMONTES, Especialista em Ciência das Religiões pela FIJ/RJ. Proponente: NAIRA CARLA DI GIUSEPPE PINHEIRO DOS SANTOS Título: Gênero e religião na mobilização de qualificações no/para o trabalho Resumo: O imaginario contemporaneo representa as organizações empresariais e a religião como pertencentes a mundos distintos, incompativeis um com o outro. As primeiras, expressão do mundo moderno, integrariam a esfera publica e o campo da racionalidade por excelência com todos os adjetivos que lhe são proprios ou adjacentes (como masculino, eficiente, impessoal, imparcial, etc.), e a segunda, expressão de um mundo arcaico, pertenceria à esfera privada (pessoal, feminina por 387 excelência) e se situaria no exterior do campo da racionalidade organizacional, de modo que uma não deveria exercer ou receber influência da outra e sobre a outra. Ao nivel da pratica, contudo, tanto os sujeitos trabalhadores quanto as proprias organizações bricolam e transitam entre esses dois mundos na gestão da sua atividade laboral. Proponente: MARIA APARECIDA DE CASTRO Título: Romaria de carros de boi: a comunidade em foco Resumo: A ruralidade característica do grupo de romeiros-carreiros de Inhumas tem a comunidade como centro e está na contramão da modernidade que tem o indivíduo como centro. A participação no grupo é uma experiência de comunidade para os grupos de famílias de romeiros-carreiros. O grupo é um espaço de proteção, de alívio, de bem estar para o romeiro-carreiro que vive no mundo urbano marcado pelo individualismo par antagônico da comunidade. Proponente: SELMA D'ABADIA OLIVEIRA Título: Caminho e, lugar-tempo sagrado Resumo: Na pesquisa, cujo resultado parcial pretendo apresentar, busco interpretar o conjunto de crenças e de valores que estão associados às atividades, às ações e às práticas vivenciadas pelos devotos que percorrem o caminho (trajeto percorrido em forma de peregrinação realizada por ocasião da festa da romaria do Muquém). Entendo que assim, o caminho, o lugar, o tempo e o sagrado na festa da romaria do Muquém, são bastante significativos junto a vários segmentos sociais. A experiência do caminho, o acampar, leva os indivíduos a reestruturarem seus ethos, sua visão de mundo e seu estilo de vida. Entre os aspectos que são ressignificados ao longo do caminho durante a peregrinação, e durante a festa, está o ideário da comunidade. Proponente: JÂNIO MARQUES DIAS Título: A Magia Sertaneja a partir do Quatro Elementos da Natureza: Agua, Terra, Fogo e Ar Resumo: A preocupação primeira desta comunicação é criar um diálogo entre medo, cultura, superstição e religiosidade a partir das etnias locais. No sertão, cada homem em diferentes espaços, criou mitos imaginários como forma de controle e construção da identidade. A água, a terra, o fogo e o ar foram os principais elementos usados na construção dessa identidade, carregada de misticismo, práticas mágicas e moral. O diálogo entre os conceitos de medo, cultura, superstição e religiosidade nos apresentam uma outra visão de mundo em um espaço diversificado e marcado pela pluralidade Proponente: ALEXANDRE THIAGO TIBERY LIMA MALUF Título: A configuração da religiosidade contemporânea brasileira e sua relação com o consumo. Resumo: O trabalho trata-se de um ensaio tendo por base um artigo científico da pesquisadora Deis Siqueira à respeito da religiosidade contemporânea brasileira. A religião evangélica é o grupo de maior crescimento no Brasil. As três ramificações diferentes que compõem os evangélicos são: os tradicionais ou primeira onda, os pentecostais ou segunda onda e os neopentecostais ou terceira onda. Este último possui características estruturadas em técnicas de marketing, gerenciamento empresarial, forte utilização e exploração dos meios de comunicação em massa e técnicas de persuasão. A religiosidade protestante em geral baseia-se no consumo e lida com a exclusão, mas há um grupo que busca o contrário: se livrar da inclusão e do consumo. São pessoas mais abastadas que têm sua religiosidade configurada em um grande sincretismo religioso que tende ao ecumenismo e ao holismo. O curioso é que tanto na religião evangélica quanto as mais ecumênicas focam a mercantilização da sociedade e a monetarização da vida. Proponente: EMILSON FERREIRA GARCIA JUNIOR Título: O avanço midiático da igreja católica e seus reflexos no espaço religioso Resumo: As progressivas mudanças no panorama religioso do Brasil e o desafio de conquistar mais fiéis têm motivado inúmeros movimentos da Igreja Católica a investir incisivamente no mercado midiático. O objetivo desse estudo é analisar essas relações com os meios de comunicação e suas conseqüências no espaço social. Proponente: FÁBIO DIAS SILVEIRA Recurso: computadorcom Kubuntu Linux 10.04 Instalado, Projetor Multimidia, audio Título: Religião e Religiosidade no Mundo do Software Livre: Uma análise dos sistemas Ubuntu Christian Edition, Ichthux, Sabily e Ubuntu Satanic. Resumo: Em pleno século XXI as religiões se virão obrigadas a acompanhar a sociedade, se inserindo no mundo da tecnologia, sendo que se tornem possíveis cultos, pregações e difusão de 388 crenças, cultos e ritos a partir da Internet. Sendo assim o trabalho vai discutir sobre as tecnologias multimídias e os softwares específicos para grupos religiosos e simpatizantes das mais diversas áreas do meio religioso e da religiosidade, por meio do Software livre. Religião e Religiosidade no Mudo do Software Livre: Uma análise dos sistemas Ubuntu Christian Edition, Ichthux, Sabily e Ubuntu Satanic. Na era tecnológica, o mundo busca se atualizar intensamente, impulsionando os grupos sociais para que acompanhem essa imensa enfervecência tecnológica. A história nos mostra que com o advento do radio e da TV, os grupos e segmentos religiosos entrarem no mundo da comunicação ―audio-impresso-visual‖, fazendo com que os segmentos religiosos não só cresçam, mas também se subdividam para poder atender outros tipos de necessidades. Assim, partir da década de 90, a informática ganha um espaço e faz com que apenas em uma década, evolua mais do que se evolui até então em um seculo.Tendo em vista isso a necessidade de entrar na era digital também se fez presente, já é possível acender velas virtuais, consultar a oráculos e outros tipos de vidências sem sair de casa, velórios via web e softwares (sistemas operacionais e aplicativos), específicos para cada seguimento religioso. Com isso, o trabalho ira levantar a discussão sobre a fé e a tecnologia fazendo uma análise dos sistemas Ubuntu Christian Edition (http://ubuntuce.com/download.htm), um sistema operacional baseado em Ubuntu especifico para cristãos; Ichthux (http://ichthux.com), sistema operacional baseado em Ubuntu especifico para cristãos com interface KDE, Sabily (www.sabily.org) desenhada especialmente para muçulmanos, cujo nome faz referência a verso do Alcorão e Ubuntu Satanic Edition (www.ubuntusatanic.org) que é uma versão diabólica de uma das distribuições mais famosas do Linux. E o Ubuntu transformado com uma série de temas inspirados na sedução e misticismo dos adoradores de Satã. Desta forma se verificará a importância e a influencia da tecnologia nas relações sociais religiosos em busca de novos adeptos e simpatizantes. Proponente: JORGEANNY DE FÁTIMA RODRIGUES MOREIRA Título: Religiosidade e Tradição na Festa do Divino Pai Eterno em Trindade Goiás: a influência do turismo religioso no espaço festivo Resumo: A Festa do Divino Pai Eterno em Trindade-GO teve origem entre a comunidade simples do campo e tinha como objetivo prioritário o encontro dos fiéis com o sagrado. Essa manifestação religiosa pautava-se em rezas a Santíssima Trindade, a qual era atribuída milagres pelos moradores do município e de seu entorno. Atualmente a cidade de Trindade recebe, durante 10 dias dos meses de junho e julho, milhares de devotos de todo o país. Isso acarretou em uma série de transformações na cidade, nas celebrações, nos rituais e no modo de vida da população local. Esse artigo enfoca essas transformações advindas do turismo religioso em Trindade. Para isso, subsidiamos nos referenciais teóricos sobre o tema, nas observações de campo e nas entrevistas realizadas com moradores locais. Palavras chave: Turismo religioso, manifestação popular, comunidade local. Proponente: LEILA BORGES DIAS SANTOS Título: Universalismo católico, pluralismo religioso e modernidade no Brasil. Resumo: O catolicismo no Brasil tem duas formas de expressão: o catolicismo oficial/ institucional e o popular/leigo e sincrético. O oficial teve de aceitar as manifestações do popular para sobreviver e ser considerado legítimo pelos fiéis brasileiros, o que produziu a complementaridade de ambos os catolicismos. O universalismo católico abraça o sincretismo religioso e étnico, aproximando-se do pluralismo religioso, advindo da modernidade. Soma-se a análise de Max Weber,contribuições de Giddens, Pierucci, Jessé Souza, Mauss, Da Matta, Carlos Rodrigues Brandão e Paula Montero. Proponentes: LEILA DO SOCORRO ARAÚJO MELO e DANIELA SOUZA Título: Religiosidade Popular e Diversidade Religiosa no culto das almas em Belém do Pará Resumo: Cultos e práticas ritualísticas sempre existiram em relação aos mortos, o que é muito presente nesses tempos de globalização. O presente estudo tem como objetivo fazer uma análise do universo de significados da prática ritual de culto aos mortos a partir de dados etnográficos coletados nos cemitérios de Belém, buscando construir um perfil do universo religioso de seus praticantes, para entender as reformulações religiosas do homem amazônico na chamada modernidade. 389 Proponente: CARLOS JOÃO PARADA FILHO Título: Entre sentidos e saberes: impacto e influência das crenças religiosas nos processos de ensino-aprendizagem Resumo: A existência de conflitos entre professores e estudantes da Faculdade de Educação da UFF, tendo as crenças religiosas dos segundos como motivação central, levou-me a realizar uma pesquisa de campo na qual constatei que, sempre que os conteúdos acadêmicos questionam ou contradizem as crenças religiosas destes estudantes,estas prevalecem sobre aqueles.Diante disso passei a trabalhar em uma disciplina as patologias da experiência religiosa(fundamentalismo, intolerância, etc), tendo em vista a construção de perspectivas e vivências espirituais mais saudáveis, educativas e socialmente mais responsáveis. A disciplina, preedominantemente vivencial, tendo sido muito procurada pelos estudantes, deu origem ao Projeto Educação e Espiritualidade no qual estão envolvidos, inicialmente, estudantes de Pedagogia, Letras e História. O Projeto contempla ensino, pesquisa e extensão. Proponente: FRANCISCO ALVES FALEIRO Título: A noção do sagrado na juventude atual Resumo: O trabalho visa à verificação,através de pesquisa realizada com os estudantes do Colégio Estadual Senador Teotônio Vilela, para compreender como o sagrado está internalizado nesses alunos. Proponente: RENATO SOMBERG PFEFFER Título: Reflexões sobre a educação contemporânea: a contribuição de Abraham Joshua Heschel a partir de suas raízes judaicas. Resumo: O pensamento de Heschel busca na tradição judaica uma luz para o homem moderno. Esta tradição afirma que o mundo descansa sobre três pilares: estudar para participar da sabedoria divina, cultuar o criador e ter compaixão pelo nosso próximo. Nossa civilização, afirma Heschel, subverteu estes pilares fazendo do estudo uma forma de alcançar o poder, da caridade um instrumento de relações públicas e do culto uma forma de adorar nosso próprio ego. Esta crise extrema exige uma reorientação radical: estudo, culto e caridade são fins, não meios. O poder, por sua vez, é um instrumento, não a finalidade da existência. Ou seja, o clímax da existência, a experiência suprema do viver, deveria ser o estudar. GT 7: RELIGIÃO, FILOSOFIA E GLOBALIZAÇÃO Coordenação: Dra. Maria Eliana Rosa de Souza Resumo: Este grupo de trabalho é um espaço que se propõe a refletir sobre temas ou problemas que envolvam a filosofia em diálogo com a religião e/ou com as questões políticas, sociais, culturais e éticas pertinentes ao mundo globalizado. Objetiva-se desenvolver um diálogo de fundamentação filosófica que se abra, porém, a aproximações com outras áreas do saber, sobretudo com as ciências da religião, as ciências sociais e a antropologia, no sentido de acolher a diversidade que o tema ―Filosofia, Religião, e Globalização‖ suscita. Palavras-chave: filosofia, religião, globalização, sociedade, cultura. Proponente: LEONARDO VENICIUS PARREIRA PROTO Título: Religião e Marxismo: debate possível? Resumo: A relação entre religião e marxismo é possível ser debatida? Essa é uma questão históricosocial que tem nos escritos de Marx uma contundente crítica à existência da religião no contexto moderno do mundo. Essa comunicação tem como objetivo fazer uma reflexão crítica acerca do método materialista histórico dialético utilizado como recurso heurístico de análise da religião como uma particularidade do todo social. Proponente: MARIA RITA MEDEIROS FONTES Título: As influências das crenças religiosas na sociedade política dos Estados Unidos: uma reação crítica às questões levantadas por Alexis de Tocqueville Resumo: A relação da religião com política não é, de forma alguma, algo novo que se apresenta nas considerações acerca desses dois temas instigantes. Muito já foi analisado sobre essa questão, o 390 que traduz uma constante preocupação em definir os limites de atuação dos preceitos religiosos na vida dos cidadãos no Estado. Este artigo se propõe a discutir criticamente as considerações de Alexis de Tocqueville sobre a formação da democracia, conforme seu livro A democracia na América, em especial sobre a sua concepção de constituição da população americana e as consequências das interferências ocasionadas pelas diversas orientações religiosas. Pretende também apresentar a proposta de Hannah Arendt para a conciliação do tema, com o intuito de enriquecer o debate e ampliar as perspectivas para a sua compreensão. Proponente: MURILO CHAVES VILARINHO Título: Discutindo a questão da Laicidade Estatal versus Intolerância Religiosa num mundo globalizado Resumo: No mundo contemporâneo, a afirmação dos ideais de liberdade, igualdade, justiça e equidade bandeira dos Direitos Humanos (como advoga a Declaração Universal dos Direitos do Homem -1948) se deparam com uma série de desafios, entre eles, o binômio Laicidade Estatal versus intolerância religiosa. Partindo do exposto, coloca-se como questão central, a laicidade Estatal é condição basilar para o fim da intolerância religiosa dentro das fronteiras soberanas de uma dada sociedade e num mundo pautado na globalização dos espaços (que busca padronizar a cultura, e a própria fé). Para pensar essa proposta, essa reflexão busca discutir no âmbito dos conceitos sociológicos e filosóficos o significado de tolerância religiosa e laicidade Estatal a partir dos ideais de Direitos Humanos e teorias da globalização. Proponente: VICTOR HUGO DE OLIVEIRA MARQUES Título: Pluralidade Religiosa e o Problema do Absoluto em Heidegger Resumo: À luz das manifestações de uma visão de mundo como Aldeia Global, os impactos sobre os fenômenos religiosos são inevitáveis, sobretudo, pela constatação de uma pluralidade. Não obstante, suscita-se, inevitavelmente, a pergunta pelo absoluto e sua validade. Uma leitura possível deste fenômeno é feita pelo filósofo Heidegger que recoloca a pergunta pela essência do fundamento a partir âmbito ontológico da transcendência, ou seja, da abertura do ser-aí ao seu mundo, constituindo, assim, uma ontologia da finitude. Proponente: ANA CAROLINA SOUZA MENDES Título: O uso do pronome de segunda pessoa do plural, no discurso religioso católico da Arquidiocese de Goiânia Resumo: O trabalho pretende fazer uma análise linguística do uso do pronome de segunda pessoa do plural, nos folhetos distribuidos pela Arquidiocese de Goiânia. Sabendo que tal pronome, no Português Brasileiro, está em desuso e que em seu lugar usa-se o pronome de tratamento vocês. A pesquisa revela a influência do latim como língua adotada para unificar a Igreja Católica, que prefere usar pronomes que não estejam tão afastados do latim como o vocês. Proponente: MARIÂNGELA RICARDO ALVES MOREIRA Título: O humano e o divino em Weber, Parsons, Durkhein, Marx: uma leitura de Frei Betto Resumo: O presente trabalho apresenta um apanhado das conceituações e elucubrações de quatro pensadores, quais sejam, Durkhein, Weber, Parsons e Marx, a respeito de questões relacionadas ao tema de discussão que foi levantado por Frei Betto, em seu livro ―Entre Todos os Homens‖, as quais podem ser sintetizadas em dois pontos convergentes, ou polos aparentemente antagônicos, que são a humanidade e a divindade de Jesus Cristo. No que concerne ao livro de Frei Betto, pode-se afirmar que se trata da possibilidade de se fazer não apenas uma leitura, mas várias leituras sobre a vida de Jesus, extraindo-se daí os referidos pontos de análise: divindade e humanidade. Como esta dicotomia, sustentada pelo livro, é vista e descrita por Weber, Marx, Durkhein e Parsons? Tal pergunta revela a complexidade do tema tratado neste trabalho monográfico, o qual consta, primeiramente, de uma introdução, depois, quatro breves capítulos, com uma síntese panorâmica sobre os conceitos de todos os autores estudados, tentando-se realizar uma conexão entre os capítulos, como um todo. Finalizando, faz-se as considerações finais, manifestando-se uma visão crítica sobre tema estudado. Proponente: NAYARA LIVIA MAIA SODRÉ Título: Cinema, Filosofia e Religião - Um paralelo entre filosofia e religião na análise do filme: "A menina de ouro" Resumo: "A menina de ouro", retrata a estória de Maggie Fitzgerald, uma jovem determinada que possui um dom para lutar boxe. Ela procura um treinador, mas ele não aceita treinar mulheres e 391 acredita que ela esteja velha demais para iniciar uma carreira no boxe. Apesar da negativa, Maggie decide treinar diariamente no ginásio. O filme retrata elementos como a VONTADE e o SOFRIMENTO que faz uma relação com a filosofia de Arthur Schopenhauer, e traços de religiosodade, como fé, perseverança, superação. Proponente: RUTH DE FÁTIMA OLIVEIRA TAVARES Título: Paróquia Sagrado Coração de Jesus (Pires do Rio, Goias,1964-1985) frente ao conceito típico-ideal (tipo-ideal) Resumo: A partir da utilização do instrumento metodológico denominado "tipo-ideal", esta pesquisa se propõe a analisar as práticas desenvolvidas pelos freis franciscanos da Paróquia Sagrado Coração de Jesus em Pires do Rio-Goiás, durante o período da ditadura militar brasileira (1964-1985), a fim de confrontá-las com as práticas da igreja "tipo-ideal" da referida época. GT 8:. O SAGRADO FEMININO E A GLOBALIZAÇÃO Coordenação: Dr. José Carlos Avelino da Silva e dranda. Maria Cristina Bonetti Resumo: O Sagrado Feminino será revisitado mediante um diálogo entre as várias concepções, trazendo para este Grupo de Trabalho conhecimentos e conceitos que revelam a riqueza das discussões contemporâneas sobre o tema. A Antigüidade e seus reflexos no mundo globalizado serão um dos focos de abordagem. Palavras-chave: Sagrado Feminino, Antigüidade, Mundo Globalizado. Proponente: JOSÉ CARLOS AVELINO DA SILVA Título: Atena, a deusa da sabedoria. Resumo: Tendo saído do guerreiro mor, não podia deixar de ser guerreira. Tendo saído de sua cabeça, estava referenciada à sabedoria. O encontro dos princípios masculino e feminino é a base do vir-a-ser dos processos naturais. Quando Zeus reúne em si mesmo os dois princípios, ele transcende a natureza. É pela trancendência que ele põe Atena no mundo. Nascida guerreira, Atena fez opção pelo cosmo masculino. A deusa presidiu o julgamento de Orestes. Palavras-chave: Atena, sabedoria, transcendência, cosmo masculino. Proponente: MACSUELBER DE CÁSSIO BARROS DA CUNHA Título: O Partenon de Atenas, reflexo do sagrado feminino das Grandes Mães. Resumo: Nas sociedades antigas clássicas a mulher era relegada a 2º plano, de tal modo que se igualava a escravos e crianças, todos eles seres de categoria inferior. Mas o mesmo não acontecia no âmbito da religião, onde diversas deusas eram veneradas e cultuadas. Esta prática que revela o sagrado feminino nestas sociedades teve origem remota nas Grandes Mães, deusas da fertilidadefecundidade. Na Grécia, Atena, que tem origem nestas Grandes mães, possuía em sua Acrópole um templo dedicado a seu culto, o Partenon, templo de uma grandiosidade e complexidade ímpar, construido em estílo dórico, mostrava toda a força e influência que a deusa possuía na vida da população. As regras e medidas desta arquitetura fantástica, com o poder de concretizar as relações religiosas entre deusa e homem foram posteriormente compiladas por Vitrúvio no ―Tratado de Arquitetura‖, servindo de modelo para toda construção religiosa romana. Palavras-chave: Atena, Partenon, Grandes Mães, sagrado feminino. Proponente: IVAN VIEIRA NETO Título: O feminino grego e o ciclo da vida e da morte. Resumo: A mitologia grega nos atesta a sua dupla origem: de um lado percebemos a influência da religião indo-européia e sua estrutura patriarcal, do outro o legado do culto às deusas-mães préhelênicas. Pretendemos analisar o Hino Homérico a Deméter sob estes dois prismas, a fim de apresentar a identificação da mulher com a Natureza e estabelecer o feminino como princípio oposto e complementar ao masculino no ciclo espiral da vida e da morte. Palavras-chave: religião grega, mitologia, natureza, imaginário helênico. Proponente: CLÓVIS ECCO Título: Ideário católico sobre família na sociedade a partir dos documentos da Igreja Católica Resumo: A família como átomo da sociedade civil, e preconizada pela Igreja, assume os preceitos de gerenciar os interesses privados, cujo bom funcionamento é imprescindível para a organização da vida social e o bem estar da coletividade. No entanto, em grande parte do século XIX, a família 392 Ocidental na sua complexidade, não age de acordo com as pretensões e preconizações da Igreja Católica. A família age ―livremente‖ com muitas variantes ligadas às tradições históricas, culturais e políticas de cada região. Nos Países do Ocidente, por exemplo, aonde não foi oficializado o divórcio, discute-se nos meios legais, através dos mecanismos Institucionais, a aprovação ou a rejeição do projeto de lei sobre o tema. Proponente: RODRIGO SANTOS MONTEIRO OLIVEIRA Título: Metamorfoses: a utilização das artes mágicas como legitimação social da mulher, a partir da obra de Lúcio Apuleio (século II d.C.). Resumo: A representação da mulher tem sido assunto fecundo e aberto a discussão a partir das análises recente de seu papel perante a sua sociedade e seu tempo, sejam eles quais forem. Por meio dos debates já levantados, analisaremos o papel da mulher na sociedade romana do século I d.C, a partir da obra apuleiana intitulada Metamorfoses. Enfatizaremos a ação destas enquanto agentes sociais possuidoras de certa legitimação perante uma sociedade descrita por muitos como masculinizada, destacando a ligação que estas mulheres possuem com o conhecimento mágico e como este, a partir do medo e da curiosidade, afirma sua posição social. Palavras-chave: magia, poder, mulher, legitimação. Proponentes: HELOISA SELMA FERNANDES CAPEL e DANIELA CRISTINA PACHECO Título: Narrativa e representações mito-simbólicas da Deusa Ísis: a redenção pelo sagrado feminino. Resumo: Esta comunicação pretende, por meio da leitura de O Asno de Ouro, de Lúcio Apuleio (século II d.C.), identificar o papel pedagógico e formador da narrativa mítica. Nascido em Madaura, por volta de 114 e 125 e tendo vivido entre os governos de Adriano (117-138 d.C.) e Marco Aurélio (161-138 d.C), Apuleio foi um representante da filosofia médio-platônica do século II e sacerdote de Cartago. Sua narrativa contém o aspecto da redenção pelo sagrado feminino relacionada à romanização de cultos estrangeiros em função da crise e aos sincretismos mágico-religiosos. Nesta comunicação, objetiva-se analisar sua mitologia mágica e o papel das representações mitosimbólicas da deusa Ísis. Palavras-chave: mitologia, sagrado feminino, sincretismo. Proponente: GRASIELLE AIRES DA COSTA Título: Em busca da palavra perdida Resumo: A presente comunicação envolve uma performance cênica curta na qual visa-se expressar o sagrado feminino no mito de Eros e Psique por meio do viés simbólico-alquímico dos quatro elementos. Evocando a contemplação e os sentimentos suscitados nos espectadores, propõe-se, a partir da cena, que o próprio público dê um nome à performance. Em seguida, faz-se uma discussão acerca do trabalho, na qual público e performer dialogam acerca de suas impressões e disposições. A performance utiliza-se da poesia de Fernando Pessoa e tem base nas pesquisas desenvolvidas pelo grupo Máskara da Universidade Federal de Goiás. Conta, ainda, com o apoio do Cnpq, por meio da Bolsa de Iniciação Científica desenvolvida junto ao projeto Mito e Performance: interfaces na formação do professor de história. Palavras-chave: mito, performance, Eros e Psiqué, sacralidade de Psiqué. Proponente: ELENO MARQUES DE ARAÚJO Título: A releitura do Magnificat. Resumo: A abordagem dessa comunicação pretende apresentar a releitura de um canto judaico interpretado por duas mulheres. O canto figura tanto no Velho quanto no Novo Testamento. Primeiramente ele foi cantado por Ana no Livro de 1Sm 2,1-10, como gesto de gratidão a Deus por ter conseguido engravidar, gerar e dar a luz a Samuel. Quando ela vai entregá-lo no Santuário por ser o primogênito e por ser o filho da promessa. Mais tarde, e com pouca variação da escrita, é cantado por Maria, na visita que ela faz a sua prima Isabel. A questão da unidade textual desse canto judaico é que em ambos os Testamentos são apresentados na voz de mulheres e no mesmo contexto o de gravidez, tanto Ana como Isabel eram idosas e estéreis. A novidade é que no contexto do NT, são duas grávidas: Maria e Isabel. Uma terceria vertente do mesmo texto é o Hino a Mariana de Dom Hélder Pessoa Câmara. Aqui ele apresenta uma nossa releitura pedindo a igualdade e a paz para toda a humanidade. Palavras-chave: alma, espírito, Deus, misericórdia, humildes. Proponente: JOSÉ ROBERTO ALVES LOIOLA 393 Título: Teologia feminista e pós-colonismo: convergências entre o pensamento de Elizabeth Fiorenza e Boaventura de Souza Santos Resumo: O crescente interesse pelos estudos feministas tem sinalizado não apenas a exaustão do pensamento moderno como também a possibilidade de superação da resistência à designação ―feminista‖, tanto em nível cultural quanto teológico. O artigo propõe uma discussão sobre a teologia feminista em perspectiva pós-colonial. Inicia com um histórico preliminar do imaginário feminino na teologia cristã ocidental na perspectiva de Delumeau (1989) e procura fazer um análise crítica do pensamento moderno a partir dos pressupostos teóricos de Fiorenza (2009) e Santos (2006). Ao introduzir o pensamento teológico de Fiorenza, o artigo apresenta o pós-colonialismo como epistemologia mais adequada para a elaboração de uma teologia feminista emancipatória. O artigo também apresenta interlocuções com as teólogas feministas; Lieve Troch (2007) e Maaike de Haardt (2007) reforçando a idéia de uma teologia feminista plural e não linear. Palavras-chave: teologia feminista, feminismo, pós-colonialismo, modernidade, cristianismo. Proponente: REINALDO DA SILVA JÚNIOR Título: Maria: a expressão feminina do sagrado no Brasil Resumo: Discutir a força da expressão mariana no universo religioso brasileiro é o principal interesse desta comunicação. O cuidado de não reduzir a experiência religiosa ao significado simbólico de uma tradição – o cristianismo europeu – somado à certeza da força do contexto cultural na representação e descrição de uma experiência, que se dá dentro deste ambiente histórico espaço/temporal, nos leva a pensar a figura de Maria como uma evidência apodítica de uma essência religiosa que tem no feminino uma expressão destacada. Neste sentido Maria atravessa seu universo cultural católico e se abriga nas diversas manifestações religiosas do povo brasileiro, seja ele regido pela cultura negra – no Candomblé – ou pela indoamericana – no Santo Daime. A discussão tem um fundo antropológico, percorre um viés sociológico, dialoga com uma forte perspectiva psicológica, mas deve ser vista como uma investigação fundamentalmente fenomenológica, pois o que se prioriza é encontrar uma essência que possa nos dizer de uma religiosidade tipicamente brasileira, sem que esta se apresente fora de seu processo histórico de construção e transformação, condições que devem estar contempladas em todo fenômeno humano. Palavras-chave: fenomenologia, sincretismo, essência, evidência apolítica. Proponente: IZABEL QUIXABEIRA Título: Sagrado feminino e a divinização do corpo na contemporaneidade. Resumo: A proposta desta atividade fundamenta-se na compreensão de que um corpo saudável e belo se constrói com base no equilíbrio das emoções e sensações, que pertencem ao cosmo feminino. A auto-imagem corporal influencia em nossos comportamentos e em nossa percepção de realidade. Buscamos criar oportunidades para a reflexão e o resgate da sensibilidade e da consciência harmonizando arquétipos femininos e masculinos, para a aceitação da natureza biológica humana, para a criatividade e o prazer de viver mesmo em meio às pressões e opressões contemporâneas. A oficina orienta-se pelo trabalho corporal, utilizando técnicas da psicoterapia corporal, exercícios expressivos e respiração, que promovem desbloqueio energético e experimentação de sentimentos, isto é, sob a orientação das concepções de Reich e da Análise Bioenergética. Palavras-chave: auto-imagem, harmonização, arquétipos, masculino e feminino. Proponente: EDSON MATIAS DIAS Título: O feminino e a mulher no movimento de Jesus: novas teias de significado no mundo judaico. Resumo: A mulher no mundo judaico era algo ao lado das coisas, como os animais e todos os outros pertences do homem. Considerada inferior, ninguém podia ensinar a ela a Tora. O movimento de Jesus surge como uma nova forma para as relações. O ‗messianismo‘, apresentado por esse carismático, difere em muitos dos aspectos do modelo da religião judaica e do poder do Império Romano. As mulheres subjugadas nas relações nesse período apegaram a sentidos que as limitavam. Jesus abre um campo de diálogo e de ‗cura‘ de tais mulheres do isolamento, resgatando os elementos femininos desprezados na religião judaica. Palavras-chave: significado, feminino, movimento de Jesus. Proponente: Sanau Baltazar da Costa Título: Corpo, sexualidade e o sagrado feminino: possíveis interconexões. Resumo: A abordagem da presente comunicação pretende, por meio de investigação em textos acadêmicos, levantar questionamentos no processo sócio histórico de construção e transformação do 394 fenômeno da sexualidade humana. O objeto de estudo da Educação Física é o corpo em movimento dotado de sentido, também construído a partir de cargas culturais, históricas e espirituais, que dialoga com o sagrado feminino e a sexualidade humana. Essa sexualidade construída historicamente modifica-se desde a antiguidade até a era globalizada. Neste sentido, verificamos que hoje a questão de Seletividade, Cortejo, Discurso Amoroso, Sedução Feminina, bem como o ritual de encontro com o outro estão ganhando novos contornos em momentos de globalização. Nesse âmbito propomos uma discussão dessa nova perspectiva global de corpo, e como o sagrado feminino vivencia a sexualidade na contemporaneidade. Palavras-chave: sagrado feminino, sexualidade, educação física, globalização. Proponente: ELIANA BÁRBARA RODRIGUES Título: O sagrado feminino na educação infantil: uma proposta da pedagogia Waldorf. Resumo: O estudo proposto, caminha na tentativa de refletir, reconhecer e mostrar como a pedagogia waldorf propõe a parceria do cosmo feminino com o cosmo masculino na vivência educacional e artística em que o respeito pelo sagrado feminino está presente no modo em que se dá o relacionamento com a natureza, com a criança e com tudo que envolve esta relação; assim como na observação dos ritmos da natureza que estão relacionados com os ritmos musicais e ritmos corporais e estes relacionados com as estações do ano, que celebram com rituais sazonais, cantos e danças as festas do tempo sagrado. Portanto, esta comunicação pretende trazer para um diálogo o estudo de caso: ―As Danças da Festa Junina na proposta da Escola Waldorf‖. Palavras-chave: pedagogia Waldorf, danças da festa junina, sagrado feminino. Proponente: LUCY COELHO PENNA Título: Aparecida e outras Senhoras das Águas no Brasil. Resumo: Seis figuras femininas associadas simbolicamente com as águas são analisadas como arquétipos da alma coletiva brasileira. Discute-se o seu papel na transformação do Self Cultural, de modo a subsidiar a evolução da consciência ecológica.Como criar uma nova atitude conectada com a natureza dentro e fora do humano? Aparecida, Nazaré, Oxum, Yemanjá, Yara, as Ycamiabas e a deusa do Marajó podem ajudar. Palavras-chave: Nossa Senhora Aparecida, divindades femininas, arquétipos femininos, Senhora das águas. Proponente: PATRÍCIA DUARTE Título: A representação simbólica da sacralidade feminina: da pré-história a antiguidade. Resumo: A figura feminina desde dos primeiros tempos da existência da raça humana tem sido fundamental para o desenvolvimento das sociedade e tribos. Tanto nas sociedades pré-históricas como nas sociedades antigas a mulher teve um papel sagrado, pois a sua função de geradora das espécies a tornou um símbolo sagrado ginecológico e embriológico, como relata Eliade (1991). A mulher passou a ser representada por símbolos considerados sagrados em diversas sociedades como apresenta Jung (1964), mas percebemos que com o passar do tempo esse sacralidade foi se perdendo e se fragmentou mais ainda com a globalização. Palavras-chave: sagrado feminino, pré-história, representação simbólica. Proponente: ISABEL CRISTINA MEDEIROS RODRIGUES DE OLIVEIRA Título: O sagrado feminino nas relações. Resumo: Considerando que a visão do sagrado feminino dentro do xamanismo matricial, nos reporta aos primórdios da humanidade, reconhecemos que o caminho trilhado pelos seres humanos ainda está longe de chegar ao fim. Em contato com o caminho do coração, que nos traz o resgate de feminino, perguntamos: E o amor? Ele é natural ou necessário? Seria o amor o tijolo suporte do Mundo? Nosso objetivo é trazer uma reflexão para a alma e questionar: de onde vem a solidão humana? E entraremos neste aspecto da questão, abordando a busca do par perfeito e o casamento como união dos opostos que se complementam. Seria o sagrado feminino a consciência do dar e receber? A harmonia na relação a dois? De onde vem? Ser - Fogo; Sentir – Água; Estar – Terra; Saber – Ar: todos juntos na Roda de Cura! Palavras-chave: xamanismo matricial, união dos opostos, amor, solidão. Proponente: MARIA CRISTINA DE FREITAS BONETTI Título: O sentido do sagrado nas relações. 395 Resumo: Nossa proposta é discutir e (re) pensar a dimensão cultural das relações entre homens e mulheres mediante um diálogo do poeta em relação às imagens/ esculturas ao fazer uma interpretação de como a mulher construiu e ressignificou a sua feminilidade e a maneira única de se colocar diante do outro na atualidade. Nesta comunicação a linguagem com o sagrado se dá a partir de um discurso amoroso dialogado entre o simbolismo na arte da pré-história , onde a poesia (Aedo) é uma recitação vinculada a interioridade e a arte presente (Escultor), com seu impacto na sociedade moderna e contemporânea. Colocamos uma questão: O que é sentir o sagrado nas relações? Palavras-chave: aedo e escultor, discurso amoroso, simbolismo. GT 9: RESISTÊNCIA, ASSIMILAÇÃO E ACOMODAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE NOS INÍCIOS DA IGREJA Coordenação: Dra. Ivoni Richter Reimer Resumo: O tema abarca textos, iconografias e realidades dos séculos I-III, buscando perceber as dinâmicas e os jogos assimétricos de poder existentes nas relações político-sociais, religiosas e de gênero. Inseridos no imperial contexto ‗globalizante‘ romano, o movimento de Jesus e as igrejas originárias, num processo de continuidades e rupturas, vivenciaram e elaboraram diversas e diferentes posturas e estratégias de sobrevivência na construção de identidade e formas comunitárias. Estas têm às vezes simultaneamente traços contra-culturais, mas também de assimilação e de acomodação às novas realidades emergentes. Perceber a diversidade e a conflitividade na formação da Igreja nos inícios ajuda a entender seu desenvolvimento posterior, com reflexos e expressões na contemporaneidade. Palavras-chave: inícios da igreja, relações de poder, resistência, assimilação, acomodação, identidade. Proponente: DARLYSON FEITOSA Título: O Neomonoteísmo Cristão Pós 70 d.C. Resumo: "neomonoteísmo" é o termo aqui usado para expressar a inclusão do filho (jesus cristo) na linguagem sobre o divino, a partir de 70 dc. muito antes das controvérsias dos concílios ecumênicos dos séculos iii e iv, a epístola aos hebreus, considerada como um escrito do final do séc. i dc, já apresentava a controvérsia sobre a identidade do filho. Proponente: EDUARDO SOARES DE OLIVEIRA Título: A identidade no cristianismo nascente: um olhar sobre o papel dos mártires. Resumo: o presente trabalho visa a partir de um olhar crítico sobre o papel dos mártires do início da igreja cristã,identificar como estes personagens contribuiram para o desenvolvimento e fortalecimento da identidade cristã inicial. pois neste momento a identidade vista enquanto processo de construção histórica, se dá por meio de um turbulento e denso momento socialmente controvertido e religiosoamente plural. Proponente: SARA DE SOUZA BRASIL RODRIGUES DE FARIA Título: Patriarcado romano x Patriarcado protocristão: apontamentos contraculturais Resumo: Na Comunicação pretende-se identificar, na macroestrutura do patriarcado romano, os movimentos de resistência dos primeiros cristãos e seus reflexos nas relações familiares e na organização da casa dos crentes em Cristo. Ademais, será analisado o processo de assimilação e também de resistência cultural dos cristãos em relação à família patriarcal judaica. Proponente: EDER JOSE DE MELO SILVA Título: Jesus e a Samaritana: elementos teologicos e missiologicos para o agir e refletir da Igreja na e a partir da América Latina Resumo: nosso ação missionária e pastoral necessita de reflexão, mas não qualquer reflexao. o equilibrio entre o agir e refletir deve ser a busca constante para não cair no ativismo desordenado e desorientado,como também em uma contemplação distanciada da realidade. busca-se neste trabalho refletir sobre o agir da igreja na américa latina, em seu contexto social, politico, econômico e religioso. uma reflexão biblica, relevante e pertinente. percebe-se, no encontro de jesus com a mulher samaritana, alguns elementos teológicos, missiológicos e pastorais, que oferecem a igreja na américa latina fundamentos seguros para a ação e reflexão. 396 Proponente: IVONI RICHTER REIMER Título: Mulheres nas sinagogas: história, fontes e (inter)ditos sobre participação feminina em espaços sagrados. Resumo: a comunicação apresenta um recorte da pesquisa a respeito de mulheres nas origens do judeu-cristianismo. Pergunta pela participação de mulheres em sinagogas judaicas, desvelando antisemitismos religiosos na história interpretativa cristã. Destaca a ambigüidade existente em normas judaico-cristãs sobre a presença e ausência, o silenciamento e a atuação de mulheres em ambientes sagrados. Resgata e visibiliza seu protagonismo a partir da análise de textos do novo testamento e de material epigráfico antigo. Palavras-chave: sinagoga, mulheres, interpretação, epigrafia, misogenia e antisemistismo religioso. Proponente: LIA RAQUEL MASCARENHAS LACERDA Titulo: Mulher, Economia e Cultura no contexto de Atos 16,11-15 Resumo: Destaca a participação de mulheres em nível econômico e religioso no contexto histórico das igrejas cristãs originárias. Atos 16,11-15 evidencia a atuação de mulheres no trabalho público e no espaço sinagogal e eclesial num ambiente patriarcal. As palavras do original grego integrantes do texto mencionado serão analisadas em perspectiva lexiológica e histórico-social. O grupo de mulheres lideradas por Lídia aceitou a fé e os costumes do povo judeu-cristão, vivenciando sua espiritualidade. Essa narrativa, porém, não continuou gestando liberdade, já que posteriormente a história da Igreja constitui experiências e estruturas hierárquicas patriarcais. Reler esse texto de Atos numa ótica de luta pela sobrevivência e dignidade de mulheres visa desenterrar valores que nunca poderão ser desbotados. Proponente: EVANDRO ARAÚJO BESERRA NETO. Título: O alimento sacrificado aos deuses em 1 Coríntios e as estruturas de Poder do Império Romano Resumo: As ‗políticas‘ da Igreja e da cidade de Corinto se configuram ao redor da mesa, nos banquetes rituais e transparecem as estruturas de poder do Império Romano, portanto, reconfigurar os seus assentos é reconfigurar ‗mundos‘. O comer e o beber sacrificados conferem nomia às ‗coisas‘ e às pessoas de Corinto, eles sustentam o homem e ‗mundo dos homens‘ na colônia romana e no Império. A Ceia do Senhor, celebrada pela comunidade cristã, propõe uma releitura desses rituais e dos espaços que eles significam outorgando cidadania aos marginalizados. Palavras-chave: Estruturas de poder, alimento sacrificado, Ceia do Senhor, identidade, 1 Coríntios Proponente: DINO MAGALHÃES SOARES Título: Paulo, Apóstolo da harmonia e da comunhão comunitária com Deus (Gl 3,26-28) Resumo: Paulo, Apóstolo das nações, na perícope Gálatas 3,26-28, abriu fronteiras em torno da unidade em Cristo. Paulo sensibiliza a cada um ao reconhecer o batismo recebido em Cristo e que, por essa ação, formavam uma comunidade de filhos de Deus. Como irmãos em Cristo Jesus todos são iguais, não havendo nenhuma diferença entre eles, seja de etnia, de patrão (senhor) e escravo ou de gênero. As possíveis diferenças sociais, culturais, religiosas, nacionais, biológicas ou qualquer outra diversidade entre as pessoas, que poderiam impedir a harmonia e a comunhão comunitária com Deus, são ultrapassadas. No entanto, nossa sociedade clama pelo exercício dessa perícope para acabar com as injustiças para com o próximo e pela falta de amor para com Deus. Proponente: KEILA CARVALHO DE MATOS Título: Vozes polêmicas e contraditórias: ministérios de mulheres nas cartas paulinas Resumo: Apresenta e investiga ministérios de mulheres em cartas paulinas, destacando 1Co 14,33b35 com análise exegética e do discurso. A partir da formação e atuação discursivo-teológica do apóstolo é demonstrado que a perícope não é texto autêntico de Paulo, mas uma glosa interpolada. O texto é controverso em relação às cartas autênticas paulinas, evidenciando que o corpus paulinum é gênero dialógico polifônico na temática de ministérios de mulheres. GT 10: DEMANDAS HISTÓRICO-SOCIAIS E CUIDADO ECOLÓGICO NA TRADIÇÃO BÍBLICA Coordenação: Dr. Haroldo Reimer 397 Resumo: A Mesa Temática busca enfocar a emergência de um pensamento ecológico na tradição bíblica, tanto em seus textos originais (Antigo e Novo Testamento) quanto em seus desdobramentos interpretativos na histórica da transmissão e recepção. Corolários: textos bíblicos e cuidado ambiental; militarismo e consciência de proteção ecológica; afirmação e superação do antropocentrismo; gratuidade e inclusividade; ética da responsabilidade. Proponente: MARIA CRISTINA PRATIS HERNÁNDEZ Título: A natureza e a esperança para uma filosofia do futuro Resumo: O objetivo desta comunicação é o de verificar a importância de um novo paradigma éticopolítico na história moderna, que é originado nos pressupostos metafísicos da crise ecológica. Onde novas exigências éticas emergem dessa crise, fazendo surgir um novo fundamento racional da esperança, que vai em direção a um outro conceito de natureza. Essa nova forma de subjetividade é inspirada nas concepções filosóficas de Ernest Bloch, de Vittorio Hösle, de Hans Jonas e, sobretudo, no diálogo entre as religiões. Para isso, foram usados dados obtidos mediante uma investigação bibliográfica, de maneira que o seu conteúdo foi analisado de forma descritivo-interpretativa. Palavras-chave: natureza, filosofia, futuro, religião. Proponente: HAROLDO REIMER Título: Saneamento básico e santidade do espaço de habitação: apontamentos sobre Dt 23,12-15 Resumo: A Comunicação visa apresentar como num fragmento de texto ético-jurídico da tradição do antigo povo hebreu se estabelece uma vinculação entre saneamento básico e santidado do espaço de habitação. O texto encontra-se em Deuteronômio 23,12-15 e recomenda fundamentalmente que os hebreus tenham cuidados essenciais com a alocação de dejetos. O texto se utiliza do verbo hebraico shub ―voltar, dar meia volta‖, que na versão grega passa pelo sentido de metánoia, estabelecendo sentidos no campo semântico da palavra ―conversão‖. Objetiva-se mostrar como um texto antigo assim pode ser potencializado como elemento de sabedoria em práticas hodiernas no sentido da preservação do ambiente para as gerações futuras. Palavras-chave: Deuteronômio, ecologia bíblica, saneamento, santidade. GT 11: TRADIÇÃO HEBRAICA: HISTÓRIA, EMERGÊNCIAS E ACOMODAÇÕES CULTURAIS Coordenação: Dr. Haroldo Reimer e Drando. Claude Detienne Resumo : O foco da Mesa Temática está voltado para a configuração da tradição hebraica, ressaltando as emergências próprias e as acomodações culturais e religiosas em decorrência de processos históricos mais amplos no contexto do Antigo Oriente Próximo ao longo do primeiro milênio a.C. Corolários: interpretação de textos e outras produções e representações culturais da tradição hebraica (iconografia, arqueologia, etc.); empréstimos culturais, recepção crítica e acomodações; hibridismos; imbricações com a cultura oriental e helênica. Proponente: LEÔNIDAS RAMOS GHELLI Título: Apocalipsismo em Amós: uma releitura da profecia clássica Resumo: A literatura apocalíptica é uma das mais complexas elaborações literárias do povo de Israel. Ela foi sendo construída ao longo de séculos. A influência da literatura apocalíptica no cânon vai de simples referências transcendentes e cósmicas até a inserção de textos longos e importantes. Ao escolher o livro de Amós para analisar criticamente percebeu-se essa incrível possibilidade de entender como um texto foi trabalhado passando por várias etapas de elaboração até chegar à forma final. O livro de Amós nos proporciona o conhecimento dessa complexa evolução textual, pois nele há textos da profecia clássica que impactaram gerações. Mas há também uma retro-influência, isto é, textos posteriores que foram inseridos e misturados aos textos antigos para servir de dobradiças textuais para aplicações e contextualizações. Os motivos apocalípticos aparecem em abundância no livro de Amós com esse propósito. Palavras-chave: Amós, apocalipsismo, profecia Proponente: ANA LUÍSA ALVES CORDEIRO Título: Recuperando o Imaginário da Deusa: estudo sobre a divindade Asherah no antigo Israel 398 Resumo: A comunicação quer apresentar o estudo que procura recuperar o imaginário das divindades femininas, em especial a Deusa Asherah, no antigo Israel. A elaboração monoteísta na religião hebraica esteve permeada de trocas simbólicas, de conflitos, de choques, de imposições, mas também de re-significações. Desta forma, informações extrabíblicas nos ajudam a nos aproximar do que foram os contextos por detrás de textos bíblicos que fazem propaganda de uma teologia monoteísta (Javé como único Deus) a partir da negativização, supressão e proibição das Deusas. Palavras-chave: imaginário, antigo Israel, monoteísmo, deusas, Asherah Proponente: FABIO PY MURTA DE ALMEIDA Título: Olhares sobre a pesquisa de Deuteronômio – a pesquisa bíblica e algumas matrizes ideológico-históricas Resumo: Neste espaço, gostaria de trazer à tona a discussão sobre o histórico da pesquisa da literatura de Deuteronômio, desde a interpretação humanista de Wette até o movimento recente de leitura bíblica reconhecida como ‗redacional‘. Um esforço que visa mostrar, ao menos inicialmente, como a leitura da literatura fora impregnada pelas diferentes correntes histórico-ideológicas. Palavras-chave: Deuteronômio, livro, leituras, história cultural e historia social. Proponente: CÁSSIUS DUNCK DALOSTO Título: O Estado hebraico e a sua influência na formação do Pentateuco Resumo: O direito hebraico, como o Antigo Testamento nos apresenta, é todo dado por Deus através da pessoa mediadora de Moisés. Entretanto, sabe-se que este direito foi construído ao longo da história deste povo e, com o desenvolvimento do Estado hebraico, foi retroprojetado a um tempo distante, na forma de uma narrativa mítica. Neste sentido vemos que essa retroprojeção a um tempo distante é uma técnica utilizada pelo próprio estado hebraico para legitimar as suas leis já produzidas. Encontramos exemplos para isso no próprio Código da Aliança, que é considerado um código produzido durante a época da monarquia hebraica. Leis sobre a propriedade, roubo, escravidão e contra a vida são o cerne desta produção jurídica e pode-se inferir que foram produzidas em uma época diferente daquela apresentada na narrativa mosaica, mostrando a manipulação do Estado para a formação das leis. Palavras-chave: Estado hebraico, Pentateuco, Código da Aliança Proponente: CLÁUDIO CARDOSO TEIXEIRA JÚNIOR Título: A escravidão no antigo Israel Resumo: Em momentos distintos no primeiro milênio a.C, a sociedade do antigo Israel (hebreus) utilizava mão de obra escrava no meio de produção, sob influência das culturas dos povos vizinhos. Portanto, a prática da mão de obra escravagista abrange normas, instituições relativas à organização, subordinação, hierarquia e à condição do trabalhador escravo. A causa fundamental para este fenômeno eram as relações de dependência a partir de contratos de dívidas e empréstimos. Algumas leis do chamado ‗direito hebraico‘ reagem a este fenômeno. A comunicação visa enfocar este conjunto, delineando como se constituía o trabalho compulsório na Antiguidade. A literatura bíblica é a fonte formal mais importante para o conhecimento das diversas maneiras pelas quais os povos hebreus obtinham escravos, seja pela escravidão voluntária, endividamentos, escravos estrangeiros, prisioneiros de guerra, tendo suas peculiaridades e diferenças entre cada deles, constituindo mão de obra servil numa economia agrária. Palavras-chave: Escravos; Hebreus; Trabalho; Mão de obra Proponente: DANIEL JOSÉ DO PRADO Título: Decálogo, uma constituição? Resumo: O Decálogo tem um lugar especial na tradição jurídica do antigo Israel. É possivel dizer que o Decálogo tenha surgido durante a época da monarquia em Israel, mais precisamente no século X – VII a.C. A sua previsão está contida no corpo da Torah, em dois momentos distintos. Em Êxodo 20,117 e Deuteronômio 5,6-21. Trata-se de regras fundamentais. A violação de uma destas regras contidas no Decálogo em ambas as versões resultaria em penalidades. Estes dez preceitos consistem em um conjunto de regras que traduzem a essência-dogmática jurídica do Israel Antigo. O decálogo funciona como uma espécie de constituição dos hebreus. E as demais normas funcionam como segmentos no propósito de preencher e se adequar aos fatos presentes em um determinado contexto social com uma maior precisão. Pois estas estão sempre em consonância com os dispositivos do Decálogo. A proteção à vida é o exemplo mais notável. Este, talvez, é o bem de maior relevância para o direito dos hebreus, o que justifica a presença do dispositivo ―Não matarás‖ (Ex 20,13) e (Dt 5,17) no Decálogo. 399 Palavras-chave: Decálogo, hebreus, constituição, proteção à vida. Proponente: HAROLDO REIMER Título: Inefável e sem forma: apontamentos sobre o segundo mandamento bíblico (Ex 20,4-6; Dt 5, 810) Resumo: A comunicação visa apresentar que o chamado segundo mandamento bíblico constitui o núcleo legal da tradição anicônica do antigo Israel. O referido mandamento se encontra em duas versões: Êxodo 20,4-6 e Deuteronômio 5,8-10. Como base da tradição anicônica da cultura hebraica antiga, com desdobramento em outras expressões culturais e religiosas, o mandamento interdita todas as formas de icônicas na representação da Divindade do povo hebreu. O aniconismo [das formas] estabelece relação de paralelidade com a interdição da pronúncia do nome do Deus hebreu [mística do nome]. Palavras-chave: Bíblia, aniconismo, monoteísmo, mandamento Proponente: SÉRGIO BATISTA DE OLIVEIRA Título: A presença do legalismo judaico no discurso pentecostal da Igreja Evangélica Assembléia de Deus (IEAD). Resumo: A comunicação apresenta em seu corpo elementos do legalismo judaico no discurso pentecostal da IEAD. Verifica-se que essa igreja busca desde seu nascedouro interpretar seus textos a partir do método de compreensão bíblica o fundamentalismo. Para isso buscou no Pentateuco a Tora livro da lei do povo judeu e em suas tradições, o conhecimento do legalismo judaico. Tendo tomado conhecimento desse conteúdo, analisa-se comparando com o discurso da IEAD. Evidenciase que ao aplicar o ensino bíblico aos membros, também sé fundamentavam em textos do Pentateuco. Legitimando o legalismo à igreja. Constata-se que não se apropriaram totalmente do legalismo judaico em seus ensinamentos. Justifica-se em outros textos que alguns ensinamentos somente aplicavam-se aos judeus. Palavras-chave: legalismo, pentecostalismo, IEAD, doutrinas bíblicas GT 12: SOFIA COMO BUSCA DAS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS EM CORINTO Coordenação: Dr. Joel Antônio Ferreira Resumo: Os ―fortes‖ (senhores, masculinos, gregos, romanos, judeus, ricos, filósofos), entre os coríntios, consideravam-se superiores ao mundo e também em relação aos cristãos menos sofisticados. Também dentro da comunidade eclesial tinha os ―fortes‖ os ―perfeitos‖ Julgavam-se livres para fazer tudo o que queriam: nada atinge o seu ―Ego‖ (1 Cor 6,12; 10,23). É este tipo de ―liberdade‖ que eles praticavam, sem pensar nos outros. Mas para Paulo só existe a liberdade que serve ao próximo e edifica a comunidade. A ―liberdade para‖ é absoluta. È determinada pelo conteúdo concreto do ato de amor que faz o bem ao irmão e à comunidade toda. Optando pelos ―fracos‖, os da margem, o Apóstolo vai sugerindo aos grupos que saiam do ―sistema‖ greco-romano. Palavras-chave: Sofia, fortes, fracos, transformação Proponente: Dr. Joel Antônio Ferreira Título: SOFIA COMO BUSCA DAS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS EM CORINTO Resumo Os ―fortes‖ (senhores, masculinos, gregos, romanos, judeus, ricos, filósofos), entre os coríntios, consideravam-se superiores ao mundo e também em relação aos cristãos menos sofisticados. Também dentro da comunidade eclesial tinha os ―fortes‖ os ―perfeitos‖ Julgavam-se livres para fazer tudo o que queriam: nada atinge o seu ―Ego‖ (1 Cor 6,12; 10,23). É este tipo de ―liberdade‖ que eles praticavam, sem pensar nos outros. Mas para Paulo só existe a liberdade que serve ao próximo e edifica a comunidade. A ―liberdade para‖ é absoluta. È determinada pelo conteúdo concreto do ato de amor que faz o bem ao irmão e à comunidade toda. Optando pelos ―fracos‖, os da margem, o Apóstolo vai sugerindo aos grupos que saiam do ―sistema‖ greco-romano. Palavras-chave: Sofia, fortes, fracos, transformação Proponente: Israel Serique Título: A simbologia das relações de poder na igreja de Corinto 400 Resumo: No âmbito das realidades religiosas, podemos dizer que o carisma, o profetismo e o símbolo fazem parte não somente daquelas realidades pelas quais o fenômeno religioso é nutrido, mas também constituem-se em vias nas quais as relações de poder têm seu livre trânsito fixando padrões de conduta, valores e contribuindo para a manutenção do status quo de certos grupos que detém o gerenciamento destes capitais de valor simbólico do fenômeno religioso. No período neotestamentário, a pequena igreja cristã de Corinto – enquanto uma comunidade que fazia parte de uma cidade cosmopolita com fortes tensões sociais– passava por um momento de grande desafio à fé: ou ela mantinha-se fiel ao ideário de igualdade e solidariedade ensinado por Jesus ou, então, assumia os valores de uma sociedade que marginalizava seus cidadãos. Proponente: IVONI RICHTER REIMER Título: A Sofia IESSU no evangelho Marcos: protagonismo de mulheres na construção do imaginário sapiencial cristão Resumo: O evangelho Marcos apresenta uma primeira narrativa organizada da práxis de Jesus de Nazaré, confessado como Filho de Deus pela/s comunidade/s. Misericórdia transformadora, polêmicas desinstaladoras, reconstrução das relações assimétricas de poder em todas as dimensões são características visíveis do Reino de Deus ―que se aproxima‖. Mulheres participaram não apenas desse movimento, mas contribuíram na elaboração de referenciais que serviram de base desse projeto de vida no movimento de Jesus. De onde vem e o que será esta ‗Sofia‘ que marca essa práxis de Jesus? A comunicação esboça algumas perspectivas hermenêuticas feministas de libertação. Palavras-chave: Sofia Iessu, Marcos, movimento de Jesus, mulheres, hermenêutica feminista. GT 13: RECUPERAÇÃO DA DIMENSÃO CRÍTICA DA FÉ DIANTE DOS DESAFIOS DA GLOBALIZAÇÃO Coordenação: Dr. Élio Estanislau Gasda Resumo: A reflexão crítica sobre o atual projeto de globalização desvela toda sua problemática política, econômica, cultural, antropológica. Neste contexto, encontra-se a perda do referencial ético, um dos maiores da história da humanidade. Conceitos éticos fundamentais como Justiça, Verdade e Solidariedade encontram-se relativizados, quando não marginalizados diante da hegemonia do pensamento único. A mesa propõe uma aproximação crítica da questão a partir da tradição éticoteológica do cristianismo. Esta tarefa pressupõe a autonomia das religiões e do discurso religioso diante da ideologia dominante. Palavras-chave: Teologia, Ética, Justiça, hegemonia do pensamento único Proponente: RITA MARIA GOMES Título: Globalização atual e a perspectiva bíblica da justiça Resumo:A presente comunicação tem como objetivo refletir a globalização considerando sua complexidade e ambigüidade, sobretudo, os riscos de uma globalização sem instâncias reguladoras. A globalização é uma realidade e para além da contribuição grandiosa nas áreas da comunicação e ciência, gera graves problemas sociais devido ao modelo econômico capitalista que lhe é inerente. Globalização e Capitalismo são responsáveis pela exclusão social crescente. Por isso, buscamos uma abordagem ética baseada na compreensão bíblica da justiça. Promover a vida em sua integralidade, eis o que é justiça para o testemunho bíblico. Palavras-chave: Globalização, Mercado, Capitalismo, Bíblia, Justiça Proponente: OMAR LUCAS PERROUT FORTES DE SALES Título: Globalização e fé cristã: perspectivas e desafios Resumo: A globalização atual afeta realidades múltiplas da vida humana. Interfere e interage com as esferas políticas, sociais, econômicas, culturais e religiosas. O modo pelo qual o cristão vive e professa a fé sofre impactos, tanto positivos quanto negativos. Interessa-nos pensar os desafios e perspectivas da globalização para a vivência e propagação da fé cristã, bem como a resposta da fé à complexidade dessas questões. Importa questionar a realidade a fim de melhor compreender as transformações vividas na atualidade e apontar caminhos de valorização da vida. Palavras-chave: Globalização, fé cristã, práxis 401 Proponente: ÉLIO ESTANISLAU GASDA Título: O que Jerusalém tem realmente a dizer a Atenas? Resumo: O tema deste Congresso provoca uma revisão das formas históricas da relação entre religião (Jerusalém) e cultura secular (Atenas). O progresso está no centro do discurso hegemônico da globalização. Qual a influencia da religião na configuração da cultura global do progresso? Somente a preservação da autonomia pode impedir a instrumentalização do discurso religioso por parte do pensamento hegemônico. Se as religiões recuperarem a capacidade crítica, talvez nosso futuro possa ser mais animador. Palavras-chave: Cultura, Religião, Ideologia do Progresso, autonomia. GT 14: JUVENTUDE E RELIGIÃO NA (PÓS) MODERNIDADE Coordenação: Dr. Flávio Munhoz Sofiati Debatedora: Carmem Lúcia Teixeira Resumo: A proposta da Mesa Temática é apresentar uma discussão acerca da questão juvenil e da presença do elemento religioso na trajetória de jovens participantes de movimentos presentes no interior do catolicismo. Nessa perspectiva, apresenta-se uma discussão acerca dos elementos teóricos que envolvem os estudos na área de religião e juventude; um debate em torno de uma experiência prática de trabalho com juventude no interior do catolicismo; e uma comunicação acerca da juventude em suas manifestações e adesões ao universo religioso. A mesa busca articular as três comunicações propostas em torno de questões que envolvem as noções de modernidade e pósmodernidade nos estudos da sociedade contemporânea. Proponente: LOURIVAL RODRIGUES DA SILVA Título: Juventude e Religião na Contemporaneidade Resumo: Apreender os vínculos entre juventude e religião no atual contexto contemporâneo, examinando em especial aspectos relativos à socialização da juventude no campo religioso com suas influências e interesses. Palavras-chave: Juventude, religião, contemporaneidade, sociabilidade Proponente: VANILDES GONÇALVES DOS SANTOS Título: Juventude e gênero na Renovação Carismática Católica em Goiânia Resumo: O objetivo da comunicação é apresentar uma reflexão construída a partir dos estudos realizados no mestrado sobre a influência da religião e seus mecanismos de formação na formação das identidades de gênero dos/as jovens e os impactos dessa influência nas relações de gênero. Palavras-chave: Catolicismo carismático, juventude, identidade e gênero. Proponente: FLÁVIO MUNHOZ SOFIATI Título: Jovens religiosos na (Pós) Modernidade Resumo: A comunicação tem como proposta apresentar uma discussão acerca da juventude católica e sua relação com os elementos da modernidade, enfatizando o debate crítico em torno de questões apresentadas por teóricos que defendem o advento de uma sociedade pós-moderna. A perspectiva é de estabelecer um diálogo com as experiências da Pastoral da Juventude e a Renovação Carismática a fim de desenvolver algumas considerações sobre a temática religiosa na vida juvenil. Palavras-chave: Juventude, Religião, Modernidade, Pós-modernidade. GT 15: CELEBRAÇÕES FESTIVAS: A VALORIZAÇÃO DA RELIGIOSIDADE POPULAR NO BRASIL Coordenação: Drando. João Guilherme da Trindade Curado e dranda. Tereza Caroline Lobo Resumo: Diante das tendências atuais impostas pela globalização verifica-se um outro movimento que se contrapõe a tal perspectiva de tentativas da padronização até mesmo de aspectos da cultura. No entanto, é perceptível que vem ocorrendo uma retomada de significados das festividades ligadas às religiosidades, fazendo com que estas manifestações populares contribuam para desenvolver, no homem atual, aspectos outrora não incentivados. Buscar compreender as representações culturais e as diversidades de relações e interações que ocorrem por ocasião das realizações de celebrações 402 festivas, assim como as políticas voltadas para esta temática são umas das premissas apontadas para o debate a que se apresenta. Palavras-chave: Festas, Cultura, Religiosidade Proponente: TEREZA CAROLINE LÔBO Título: Folia de Sant‘Ana: uma das celebrações festivas dentro da Festa da Capela em Pirenópolis/Goiás Resumo: O povoado da Capela do Rio do Peixe é o lugar da festa de Sant'Ana ou Festa da Capela, ocorrida desde o século XVIII quando é encontrado ouro no Rio Peixe, município de Pirenópolis. São diferentes grupos de participantes, pessoas diversas com motivações variadas que frequentam os festejos e participam dos rituais que dão sentido à festividade. A Folia de Sant'Ana, revigorada no ano de 2006, é uma das celebrações festivas que compõe a Festa da Capela. Partindo de um contexto de dinamismo cultural nos propomos a compreender não a Folia de Sant'Ana enquanto objeto pensado, mas como fenômeno, quer dizer, aquilo que fundamenta a vivência. O objetivo é o de analisar esta celebração como um lugar que dá sentido ao mundo presente, se articula com as identidades e alimenta a memória que se tem do espaço onde se vive. Palavras-chave: Festa, Lugar, Folia. Proponente: JOÃO GUILHERME DA TRINDADE CURADO Título: Celebrações festivas: manifestações da religiosidade popular em Pirenópolis/ Goiás Resumo: A cidade de Pirenópolis, nascida às margens do Rio das Almas do qual se extraia o ouro manteve as principais características dos povoados surgidos com a mineração nos quesitos urbanos, arquitetônicos e culturais. Mas as manifestações religiosas pirenopolinas só são destacadas em relatos a partir da passagem dos viajantes europeus no século XIX. Ainda hoje muitas destas festividades possuem um caráter da religiosidade popular, possibilitando a compreensão que as fazem perpetuar e prosseguir por gerações, representando o modo simples de pessoas do local diante das inúmeras perspectivas apresentadas pelo mundo atualmente, uma vez que manter a festa é conservar e sustentar a fé. Palavras-chave: Festas, Religiosidade, Pirenópolis Proponente: DIÓGENES ALVES STIVAL Título: Festividades italiana em Nova Veneza / Goiás Resumo: Nova Veneza teve sua povoação com imigrantes italianos tendo como fundadores a família Stival, que adquiriram uma fazenda doando 4,5 alqueires para a formação da cidade. O início do traçado urbano foi assinalado pela construção de uma capela dedicada a Nossa Senhora do Carmo, seguindo outras construções, sendo a primeira cidade planejada do Estado. Apesar de ser uma cidade de pequeno porte, atualmente tem recebido um grande número de visitantes no Festival Gastronômico e Cultural, que neste ano teve a sua sexta edição, com objetivo de resgatar os costumes, a culinária e a cultura dos pioneiros. Atualmente esse evento mostra as delícias da culinária, o esporte, a cultura e a religiosidade, além do Carnaval de Máscaras. Palavras-chave: Nova Veneza, Festas, Cultura Proponente: ANA QUERUBINA MELO DE MORAES Título: Canto da Primavera Resumo: Pirenópolis é uma cidade do período colonial que recebe um festival - o Canto da Primavera, atrativo para milhares de turistas e visitantes que durante sua realização altera toda a rotina da cidade. É interessante questionar a cultura como algo aberto, que pode ser mudado, o que pode ser observado nas tendências musicais das apresentações artísticas realizadas durante o evento. O Canto da Primavera, no ano de 2010 completará sua 11º edição, em todas as outras edições teve em sua grade de apresentações artistas locais, estaduais e nacionais, além de oficinas ligadas à musicalidade. A investigação sobre este evento propicia melhor entendimento sobre a cultura musical goiana. Palavras-chave: Pirenópolis, Cultura, Música GT 16: RELIGIOSIDADE SERTANEJA: CULTURA IDENTIDADE E GLOBALIZAÇÃO Coordenação: Ângela Cristina Borges 403 Resumo: Preso aos enredos de significados produzidos por ele mesmo, o homem constrói seu ethos. Este é constituído considerando as maneiras como se amarram as tramas de significados. Na Globalização como no sertão esses significados se relacionam na dinâmica híbrida e sincrética da produção cultural e, conseqüentemente na formação da identidade sertaneja? Neste período não é possível pensar o processo de construção cultural ausente de encontros culturais conflituosos. O homem, ser imutável, significa e re-significa a realidade dialeticamente, dando-lhe sentido num movimento dinâmico e amplo que se estende a todas as esferas da sua vida, inclusive a religiosa.Considerando tal devir, pensando a cultura como um conjunto de significados inacabados que se relacionam dialeticamente esta mesa se propõe a discutir as articulações entre cultura, identidade e religiosidade nos sertões. Proponente: MARIA SOCORRO ISIDÓRIO Título: O Congado no Norte de Minas Gerais: expressão da religiosidade sertaneja. Resumo: O Congado é uma das mais ricas expressões da cultura e da religiosidade afro - brasileira. Existe em quase todo o território brasileiro, principalmente nos Estados de Minas Gerais, Goiás, Espírito Santo e São Paulo. A diversidade e especificidade de expressão dos grupos em seus contextos apresentam um significativo campo de saberes que pode revelar não só a cosmovisão de um povo como elucidar suas raízes identitárias. Nesse sentido, o estudo dessas manifestações oferece uma valiosa chave de acesso à compreensão da construção de identidade do norte-mineiro, que pela sua peculiaridade é considerado como baianeiro, não compondo dessa forma a identidade unitária do mineiro. Palavras-chaves: Congado, Cultura, Identidade. Proponentes: ÂNGELA CRISTINA BORGES e SHIRLENE DOS PASSOS VIEIRA Título: Entre Inquices e Orixás: deuses bantus e yorubanos nos terreiros afro-sertanejos. Resumo: A cosmologia afro-brasileira se apresenta no mundo acadêmico, como algo ainda a ser desvelado. Os clássicos concentraram-se na mitologia yorubá, no entanto, a influência africana na constituição das religiões de matriz africana não foi somente a yorubá. No sertão norte-mineiro a mitologia yorubá influenciou a Umbanda Sertaneja, mas percebe-se no seu Candomblé o domínio da mitologia bantu. Num mesmo terreiro Inquices (Candomblé) e Orixás (Umbanda) coexistem num processo de acomodação e re-significação do simbólico. Á luz de Pierre Verger, Sérgio Ferreti Homi Bhabha e Nestor Garcia Canclini , este trabalho objetiva compreender como se dá a articulação entre estas duas tradições religiosas a partir de suas deidades considerando a região fronteiriça, sincrética e híbrida em que estão inseridas: o sertão norte mineiro. Palavras-chaves: Identidade, Hibridismo, Inquices, Orixás, Sertanejo. Proponente: ADMILSON EUSTÁQUIO PRATES Título: A mística da linha de caboclo em pontos que cantam e contam Resumo: O texto pretende analisar as músicas que são cantadas na Umbanda Sertaneja, precisamente no ritual de caboclo. Para tanto, faz-se necessário uma hermenêutica e uma exegese das músicas para visualizar a mística presente nos versos cantados durante o ritual. Além de propor uma interpretação das músicas, o texto também apresenta uma análise descritiva e analítica do ritual de caboclo presente na Umbanda Sertaneja como síntese dinâmica e hibrida que expressa traços característicos do ethos do Sertão norte-mineiro a partir da cosmovisão Afro-Sertaneja. Podendo, desta forma, compreender o ethos do fenômenos religioso Afro-Sertanejo como uma cultura em trânsito e interligada a uma rede de significados e re-significados na músicas. Dessa forma, é possível visualizar traços da identidade do Sertão norte-mineiro manifestado na religiosidade. Palavras-chaves: Umbanda Sertaneja, Caboclo, Músicas, ethos.