Paul Samuelson (1915-2009), o maior pós-keynesiano Carlos Eduardo Lins da Silva Em uma de suas mais famosas entrevistas, em 1996, para a revista The New Yorker, Paul Samuelson disse: “Eu me chamo de um pós-keynesiano. O modelo A do keynesianismo de 1936 está ultrapassado. Claro que isso não significa que ele estivesse errado para o seu tempo (...). Mas ele é um modelo de análise. Não é uma teologia. Eu acho que sou hoje um keynesiano diferente do que eu era há dez anos (...)”. Samuelson encerrou esse raciocínio ao jornalista John Cassidy citando o próprio Keynes: “Quando minha informação muda, eu mudo meus pontos de vista. O senhor, não?”. O primeiro americano premiado com o Nobel de Economia morreu na crista da onda, com muitas de suas ideias baseadas no formulário de Keynes favorável à intervenção do Estado na atividade econômica em tempos de crise, adotadas pelo mundo afora, inclusive e principalmente nos Estados Unidos, onde sempre se concentrou o maior foco de resistência a elas. Lúcido e ainda participante no debate público, Samuelson – que tinha um sobrinho, o ex-secretário do Tesouro e reitor da Universidade Harvard, Larry Summers, na Casa Branca, no centro das decisões de política macroeconômica da administração Obama, na condição de assessor especial do presidente dos EUA – aprovou com entusiasmo o massivo estímulo na forma de gastos públicos para tentar tirar a sociedade americana da grave crise deflagrada em 2008 com o crash dos empréstimos imobiliários subprime. De fato, o reconhecimento de que sua tese segundo a qual quando se esgotam os recursos da política monetária para lidar com a recessão é preciso recorrer ao investimento estatal se deu ainda no governo de George W. Bush, que, em seus estertores e sem outra opção, deu início às medidas que Obama, ciente das decisões já presidente eleito, aprofundaria com apoio da maioria da opinião pública. Foi a vitória final de um duelo intelectual que Samuelson travou por décadas com Milton Friedman (1912-2006), o libertário da Universidade de Chicago, que, por sua vez, havia conhecido a glória de ver suas ideias adotadas pelo governo de seu país (e muitos outros) durante a onda conservadora da década de 1980, liderada nos EUA por Ronald Reagan. Esse debate estimulante Carlos Eduardo Lins da Silva é o editor da revista Política Externa, presidente do conselho acadêmico do IEEI/Unesp e membro do Gacint/USP. 151 16 - Passagem 3 - Paul.indd 151 VOL 18 Nº4 MAR/ABR/MAIO 2010 11.03.10 12:16:32 PASSAGENS dos dois mais influentes economistas americanos da segunda metade do século XX dava-se especialmente nas páginas da revista semanal Newsweek, em que ambos tiveram colunas durante muitos anos e se expressaram com vigor, mas absoluto respeito e honestidade intelectuais – traços infelizmente cada vez mais raros nas discussões políticas ou acadêmicas neste novo século. Foi o antagonismo com Friedman que provavelmente grudou de vez no nome de Samuelson o rótulo de “keynesiano”. Embora ele nunca tenha negado a enorme influência de John Maynard Keynes (1883-1946) em seu próprio pensamento, nem deixado de reconhecer no mestre inglês a condição de um dos maiores pensadores da História, Samuelson logo se liberou da condição de mero reprodutor de seu pensamento. Ele combinou desde cedo em seus escritos o keynesianismo com ideias clássicas da economia, no que se tornou conhecido como “síntese neoclássica”. O mercado não é perfeito, alertou sempre Samuelson, em oposição ao que Friedman pregava, na esteira dos ensinamentos de Friedrich Von Hayek (1899-1992), que protagonizara anos antes com Keynes uma dualidade de algum modo similar à de Samuelson e Friedman. No mundo real, dizia, raramente existem as condições necessárias para a atuação eficiente do mercado. Por isso, é indispensável algum tipo de regulação do Estado para a atividade econômica. “O livre mercado não se estabiliza por si só”. A justificativa para o Nobel que recebeu em 1970 creditou a seu trabalho o mérito de permitir à ciência econômica superar a discussão abstrata para se concentrar na resolução de problemas, graças à aplicação da clareza e do matemático. Seu livro mais conhecido, Economia, lançado inicialmente em 1948 e atualizado depois a cada três anos (nas edições mais recentes com a coautoria de seu discípulo William Nordhaus), é seguramente uma das obras que mais influenciaram o pensamento econômico em todo o mundo, traduzido para mais de quarenta línguas e vendendo seis décadas após ser lançado, mais de 50 mil cópias por ano só nos Estados Unidos (cerca de quatro milhões no total no mundo em sessenta anos). Feliz com seu êxito, Samuelson brincava: “Não me importa quem escreva as leis econômicas de um país se for eu quem escreva os livros-textos de suas escolas de economia”. E era ele mesmo quem o fazia no mundo todo. Samuelson nunca assumiu cargos públicos. Mas foi conselheiro não formal de vários presidentes norte-americanos, a partir de John Kennedy, com quem teve uma conversa considerada decisiva para os rumos de política econômica de sua administração, logo após sua vitória sobre Richard Nixon, em 1960. Kennedy convidou-o para presidir o Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca, mas Samuelson recusou com o argumento de que não queria assumir posições nas quais ele não pudesse falar ou escrever todas as coisas em que acreditava. Assim, ele passou a vida na universidade, a maior parte dela no Massachusetts Institute of Technology. Filho de um farmacêutico na cidade de Gary, Indiana, mudou-se com a família para Chicago ainda criança. Estudou na Universidade de Chicago, onde seu rival Friedman imperaria no Departamento de Economia, em que Samuelson descobriu sua vocação acadêmica. Foi lá que os dois se conheceram em 1933, quando Samuelson estava na graduação e Friedman na pós-graduação (embora fosse três anos mais velho que Samuelson, Friedman ganhou o Nobel de Economia seis anos depois do seu cordial adversário). Apesar dos inúmeros debates públicos, muitas vezes travados diante de comissões do Congresso, Friedman e Samuelson se mantiveram amigos durante os 73 anos seguintes ao de seu primeiro encontro. De Chicago, Samuelson seguiu para Harvard, atraído pelo pensamento do mais famoso keynesiano da época, Alvin Hansen, que ensinava lá. Conhecido por desafiar intelectualmente os professores, inclusive em trabalhos formais como sua tese de mestrado (1936) e sua dissertação de doutoramento (1941), e reunindo duas condições que – segundo se dizia na época – pratica- 152 16 - Passagem 3 - Paul.indd 152 POLÍTICA EXTERNA 11.03.10 12:16:34 PAUL SAMUELSON (1915-2009) mente eliminavam a chance de algum professor ser bem-sucedido em Harvard (de judeu e keynesiano), Samuelson se fixou no MIT, onde trabalhou durante a Segunda Guerra Mundial no desenvolvimento de computadores para aviões militares, e depois se tornou a principal referência da pesquisa e do ensino de economia na instituição. Paul Samuelson foi influente em praticamente todos os campos da economia teórica e aplicada. No que se refere aos temas prioritários desta Revista, também foi um autor importante no que diz respeito ao comércio internacional. Ele formulou uma estrutura matemática para estudar o impacto do comércio em grupos diversos de consumidores e trabalhadores. No teorema, que ficou conhecido como Teorema Stolper-Samuelson, mostrou que a importação de roupas e outros bens oriundos de países menos desenvolvidos em que os operários ganham substancialmente menos do que os das nações industrializadas, podia levar ao rebaixamento de salários e condições de trabalho nas sociedades mais desenvolvidas. Esse estudo foi muitas vezes utilizado como argumento de oponentes do livre-comércio nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Mas Samuelson sempre foi um defensor do livre-comércio que – segundo ele – aumenta o padrão de vida médio em todos os países que nele se engajam, de tal modo que compensa os que sofrem mais e ganham menos. Samuelson argumentava que o protecionismo não ajudava a ninguém e que o aumento da produtividade, sim, era capaz de reverter as eventuais perdas de rendimento de setores operários nos países industrializados. Paul Samuelson morreu aos 94 anos, no domingo 13 de dezembro de 2009, em sua casa em Belmont, Massachusetts, perto de Boston. Deixou sua segunda mulher, Risha (a primeira, também economista, Marion, havia morrido em 1978), seis filhos do primeiro casamento (os três caçulas, trigêmeos), o irmão Robert, professor de Economia da Universidade da Pensilvânia, e 15 netos. Entre seus alunos preferidos e sobre quem exerceu mais influência, estão o atual presidente do FED, Ben Bernanke, o também Nobel de Economia e colunista do New York Times, Paul Krugman, e a atual diretora do Conselho para Assuntos Econômicos da Casa Branca, Christina Romer, além do já mencionado sobrinho Larry Summers. 153 16 - Passagem 3 - Paul.indd 153 VOL 18 Nº4 MAR/ABR/MAIO 2010 11.03.10 12:16:35